O que é que todos e cada um de nós temos que ver com Trump

Notícias Magazine

Desculpem voltar ao assunto. Ao inominável, como diz uma amiga. Donald Trump, sim, claro. Podia concordar com ela, não fosse o caso de esta pessoa da qual não queremos dizer o nome ter sido eleita presidente dos Estados Unidos. É aqui que estamos: a barreira do que julgávamos impossível foi quebrada. Este é o patamar para todas as análises, e as primeiras têm vindo do campo da política. Isolacionismo, nacionalismo, termos na nomenclatura ideológica tradicional.

Pouco temos falado de um facto central no fenómeno Trump: ele é um caso mediático. O primeiro presidente da era dos reality shows – o que era The Apprentice, o programa que o catapultou quando já era um tycoon duvidoso, habitué das revistas cor-de-rosa e estrela das redes sociais.

Obama tornou-se coqueluche mediática, é certo, entre discursos emocionantes e passes de dança. Mas não o era antes. Ronald Reagan foi estrela de cinema antes de presidente, mas fora governador da Califórnia, e antes ainda já era altamente politizado, quando Hollywood era um campo de batalha ideológica – foi presidente do sindicato dos atores e ativista do Comité para as Atividades Antiamericanas do macartismo, nos anos 1950.

Com Trump na Casa Branca chegámos ao nível não da realidade feita espetáculo – como num reality show –, mas no espetáculo feito realidade. Como se provou na polémica «a minha inauguração é maior do que a tua»: ele usou a sua versão contra os factos. Com a naturalidade de uma pessoa para quem a noção de verdade há muito se esbateu da vida, entre os boatos sobre ele nas capas de revistas e o aparecer todos os dias na televisão.

O discurso de tomada de posse foi baseado nos mesmos princípios: a retórica do sound bite. Nisso, Trump foi tão básico como sempre fora – repetindo ideias e palavras como «great» e «terrific». Trump é, no fundo, um conteúdo viral vivo. Incorporou as caraterísticas dos conteúdos que se tornam virais e fê-las trunfo eleitoral. Simples, direto, consumível. E quem poderá atirar a primeira pedra? Nós, que vivemos disto há anos nos meios de comunicação social? Tantas vezes perante notícias falseadas, agendas escondidas, conteúdos populistas, encolhemos os ombros.

Precisamente por termos atingido este patamar de gravidade, chegou a altura de parar para pensar. Trump pode ser a nossa chamada de despertar. O problema com Trump… bem, são vários, mas o menor deles não é ter sido eleito, ter havido tantos a votar nele. Por que o fizeram? Não nos devemos esquecer disso, distraídos entre os memes humorísticos, as críticas à sua forma de dançar ou à relação com a mulher. Ou mesmo perante as medidas com que já está a mudar a face da política americana. Quem votou Trump fê-lo envolvido neste caldo cultural e mediático em que vale tudo, em que o que é «giro» e «impactante» vence o que é importante e verdadeiro.

Como dizia o diretor da Vanity Fair, populistas como Trump chegam à Casa Branca por causa de mentiras. Só podem ser destruídos por verdades.

[Publicado na edição em papel da Notícias Magazine de 29 de janeiro]