O nosso avô Almada Negreiros

No dia 3 de fevereiro, a Fundação Calouste Gulbenkian abre ao público a maior retrospetiva alguma vez realizada sobre o modernista português, com direito a alguns inéditos do artista. As netas, Rita e Catarina Almada Negreiros, falam dos avós, da importância da família, do espólio que organizaram para a exposição e do peso do nome que herdaram.

Mal entrámos aqui, na sala do espólio da família, a vossa expressão foi «agora, vamos fazer de netas». Em que medida vos pesa o apelido?
Rita Almada Negreiros: Há uma profissão, a nossa, ambas somos arquitetas, e por ela passa muito da nossa construção pessoal. E depois há uma missão, que corre em paralelo – somos netas do Almada Negreiros.

Catarina Almada Negreiros: Ter vivido no estrangeiro – eu em Veneza, Londres e Bóston e a Rita em Barcelona e Paris – ajudou a esta construção a partir do nome próprio. Os nossos pais sempre nos estimularam a fazer as nossas vidas sem dependermos de dados adquiridos, por exemplo, o nome.

O peso do nome sentiu-se desde cedo, presumo.
Rita A.N.: Desde o jardim-de-infância. Para o melhor e para o mais chato.

O que era «o mais chato»?
Rita A.N.: A muita expetativa em relação a nós. E a ideia de que temos a vida facilitada.

Têm?
Rita A.N.: Só no sentido em que atendem os telefones quando digo o meu nome. Sou mais facilmente recebida, não mais do que isso. De resto, entre os nossos amigos somos apenas «as Almada»

Com que idade tiveram consciência do nome, da importância do vosso avô? [Rita nasceu em 1969, Almada morreu no ano seguinte, Catarina nasceu em 1972.]
Rita A.N.: O avô conheceu-me era eu bebé. O Almada esteve desde sempre presente.

Que vos contavam dele o vosso pai, a vossa tia, a vossa avó, Sarah Affonso?
Catarina A.N.: Uma das coisas que nos marcaram desde pequeninas foi a nossa mãe estar a fazer o livro Conversas com Sarah Affonso. E falava-se muito do Almada.

«O Almada.» Esta forma de se referirem ao vosso avô reflete a necessidade de uma distância em relação ao artista?
Catarina A.N.: Começámos a chamar-lhe Almada quando chamar-lhe avô nos pareceu um pouco ridículo. Julgo que foi a partir da comemoração dos 120 anos do seu nascimento (2013).
Rita A.N.: Entre as duas dizemos sempre o avô Almada. Não tem que ver com a relação netas-avô, mas com a nossa relação com pessoas à nossa volta. Esta missão é um segundo trabalho. Não faria sentido chamar avô ao Almada quando falamos da sua obra.

Como é que vos foi sendo contada a história desse avô?
Rita A.N.: Sempre soubemos que perdeu a mãe muito cedo e que, desde pequenino e com o irmão, António, viveu num colégio de jesuítas. Ali passou toda a infância e princípio da adolescência, praticamente sem visitas da família, sobretudo do pai. Saíram de lá com a implementação da República.

Órfão de mãe, pai ausente. Uma história triste para contar a crianças.
Rita A.N.: Só muito mais tarde percebemos o peso do abandono que devem ter sentido aquelas crianças. O pai teve um desgosto tremendo com a morte da mulher no parto do terceiro filho. Naquela altura, o cuidado com as crianças não era o mesmo. Os dois irmãos forem entregues aos cuidados do colégio e ali viveram tendo-se apenas um ao outro.

Um irmão que José, o mais velho, protegia como pai.
Rita A.N.: Muito protetor. Adoravam-se.
Em A Invenção do Dia Claro, Almada escreve, sobre a mãe: «Passa a mão pela minha cabeça e tudo será tão verdade.»
Catarina A.N.: Há frases sobre a mãe muito fortes mas nunca piegas ou lamechas. Almada era uma pessoa sem rancores. Não dramatizou a orfandade, o afastamento do pai ou a vida difícil. Ele só ganha verdadeiramente uma família aos 40 anos, quando, em 1934, casa-se com a Sarah (Affonso).

Tiveram dois filhos, Afonso, o vosso pai, e Ana Paula. Que dizia o vosso pai de ter sido filho de Almada?
Rita A.N.: Tinha uma enorme admiração, claro. Era uma família muito unida. O que ele dizia quando lhe perguntavam como era ser filho do Almada era que não sabia responder a essa pergunta porque nunca tinha sido filho de outro.

Nos jesuítas, já então Almada se destacava?
Rita A.N.: Sim, e esse destaque está documentado. Havia a clara noção de que aquela criança era especial. Por isso, tinha o seu espaço, a sua sala de trabalho, acesso livre à biblioteca. Alguém lhe perguntou no colégio: «Porque é que todos os rapazes têm olhos na cara e tu tens a cara nos olhos?!» Também soube há pouco tempo que havia um padre muito inteligente [Cabral] que foi muito formador para o Almada durante o internato. Com a implantação da República este padre foi para a Bahia. Um dos alunos dele foi o Jorge Amado.

Já então desenhava e escrevia?
Rita A.N.: Escrevia à família e temos algumas dessas cartas.

De Lisboa foi para Coimbra. Terminou o liceu e abandona os estudos. Como é que essa parte vos era explicada?
Catarina A.N.: Ele podia não ir à escola, porque era um génio. Mas nós não.
Rita A.N.: Ele era «o português sem mestre».

O que vos contava a vossa avó, que morreu em 1984?
Catarina A.N.: Não em lembro de falar dele. A nossa avó não era de falar do passado.
Rita A.N.: A nossa mãe, a nora, muito discretamente, colocava um daqueles gravadores antigos debaixo da mesa e pedia então «Senhora Dona Sarah, conte-me aquela história…» E a minha avó, com uma linguagem simples, ia contando. Foi uma precursora. Uma mulher que nos anos 1920, com 20 e poucos anos, pegou no dinheiro que o pai lhe deu e foi para Paris sozinha.
Catarina A.N.: Expôs e foi reconhecida. Mais velha de muitos irmãos, regressou por causa da doença e da morte da mãe.

Recordam-se da primeira vez que leram o Manifesto Anti-Dantas [publicado quando Almada 22 anos]?
Rita A.N.: Lembro-me de ouvir uma gravação e de pensar que com um avô como o meu não conseguiria ter um adolescência rebelde.

Pintura, desenho, teatro, romance, contos, ensaios, poesia, narrativa gráfica, pintura mural, artes gráficas. Qual Almada vos diz mais?
Catarina A.N.: Toda a parte de imagem é-nos já tão familiar que a surpresa, nessa área, é menor. Com o que me sinto mais surpreendida é com as coisas escritas.

A casa de Bicesse ou Quinta da Lameirinha é um lugar icónico na vossa história familiar, que continua na posse da família. Falem-me dela.
Rita A.N.: O calor de Lisboa sufocava a nossa avó, de origem minhota e habituada à nortada. Então, criou em Bicesse [Cascais] um refúgio fresco. É uma quinta saloia, com uma casa que já existia e foi ampliada, e que tem realmente uma aura especial. Os cedros, plantados a toda a volta, fizeram um guarda- sol gigante. Foi uma casa muito vivida. O meu avô, o irmão, as brincadeiras de ambos com os papagaios de papel – tinham adoração por papagaios de papel. E eram muito físicos. Um dia apareceu na quinta uma carroça com um cavalo desenfreado. O meu avô foi a correr e conseguiu pará-la.

Dava-se bem com as crianças?
Catarina A.N.: Era incrível a relação dele com as crianças. Desde logo, tinha a jovialidade toda. A casa da Rua Filipe Nery, em Lisboa, era pequena. Pois ele ficava a desenhar e a trabalhar na sala, com crianças ao berros. Nada o perturbava. Era um homem muito gentil, muito humano.

Depois de morte de Almada [1970], a vossa avó continuou a ir a Bicesse?
Rita A.N.: Sempre, mas foi uma fase complicada. Ele morre em 1970, passados oito anos morre a filha, nós estivemos três anos em Moçambique.
Catarina A.N.: Depois de regressarmos, íamos lá todos os fins-de-semana com a nossa avó. Bicesse era uma casa encantada. E Sarah, a patriarca. Já não havia Aurora mas havia a Conceição.

As empregadas?
Rita A.N.: Aurora era a antiga. Há uma história muito engraçada. A minha avó percebeu que batiam insistentemente à porta e perguntou à Aurora quem era. E a Aurora explicou que se tratava de um senhor com uns livros a quem ela já dissera e repetira para ir embora, porque ali não queriam nada daquilo. Que fosse bater a outra porta. Era o Fernando Pessoa com A Mensagem.

Em Bicesse, o quarto de José e Sarah continua pintado de azul-cobalto?
Catarina A.N.: Sim, continua tudo na mesma. Tudo naquela casa foi feito pela Sarah. Colchas, almofadas bordadas, cortinados, recantos de leitura, o painel das conchas que estamos agora a restaurar. Vamos lá todos os fins-de- semana. E estão lá todos os objetos pessoais. Paletas, pincéis, as boinas, tudo pendurado no sítio onde Almada as deixou e que já todos pusemos na cabeça, claro.
Rita A.N.: A Sarah bordava muito bem. Bordava e fumava ao mesmo tempo. Todos fumavam muito.

As netas sabem bordar?
Rita A.N.: Não. Com a avó desenhávamos. Sarah fazia botões e alfinetes que vendia e que foi , em certas fases, o sustento da casa. Mereciam ter vivido com mais desafogo?

Sempre nos foi transmitido pelo nosso pai que viviam com muito pouco dinheiro e que a infância dele foi, desse ponto de vista, uma infância com dificuldades.
Catarina A.N.: Os meus avós trabalhavam sem galeristas e de forma independente. À avó nunca lhe foi encomendada uma obra, nem pública nem privada.
Rita A.N.: E, sobretudo, a verdade é que o Almada não ligava nenhuma ao dinheiro. E não fazia nada para o ter.

Nunca ouviram um lamento à vossa avó? Acham que teve uma vida feliz?
Catarina A.N.: Não deve ter sido fácil. Mas não se lamentava.
Rita A.N.: É um grande desafio ser casada com um homem destes. Mas não era mulher de grandes conversas desse género. Penso muitas vezes como seria a vida dela se não se tivesse casado e tido filhos, se a sua mãe não tivesse ficado doente. No fundo, é sempre a família que a limita na sua expressão. Não fosse aquele gravador indiscreto da minha mãe e pouco se saberia.

Como era Almada na fase de produção?
Rita A.N.: Um obsessivo, incansável.

Creem que há ainda quem o considere um artista do regime [Estado Novo]?
Rita A.N.: Almada trabalhou e viveu durante a época do regime. Nunca teve uma encomenda direta do regime, sempre através dos arquitetos ou privados.
Catarina A.N.: Quem o diz só o pode fazer por ignorância. Basta informar-se um pouco.

Tivesse vivido mais quatro anos e que acham que teria dito ou escrito sobre o 25 de Abril?
Rita A.N.: Teria ficado tão feliz quanto ficaram os seus filhos. Nesse dia foi-se para a rua.

«Eu sou um poeta português que ama a sua pátria.» Mas também diz que Portugal é um país de fracos. Achava-se pouco português?
Rita A.N.: Ele gostava muito de Portugal e sentia-se profundamente português. Lisboa era a cidade dele. Mas a verdade é que Portugal era um país muito atrasado, muito fechado. Em 1919 foi para Paris um ano – teve lá uma vida dura, viveu momentos de desespero, de solidão, desenhou para se aguentar. Depois viveu cinco anos em Madrid. Portugal, como digo era muito acanhado. Há um texto dele, chegado de Madrid a Lisboa, que abre assim: «Cheguei ao Rossio, estava tudo de risca ao meio.» Tinha um enorme sentido de humor.

Falem-me desse sentido de humor, através de algumas histórias.
Rita A.N.: Contava o meu pai que um dia alguém lhe disse: «Sabes, fui ver a exposição do Raul Lino e ele não me diz nada.» Resposta do Almada: «É normal, sabes, é que ele não fala com toda a gente.» Esta resposta pronta, inesperada, tornava-o temido.
Catarina A.N.: Era desconcertante e muito provocador.

Está a ser feita desde 2011 a inventariação do espólio da família, que acompanham muito de perto como herdeiras. Que surpresas têm tido?
Catarina A.N.: As grandes novidades são inéditos de textos, e a parte de geometria e matemática, temas de pesquisa incansável que o levaram a conclusões, que estão na última peça – o painel que está no átrio da fundação Calouste Gulbenkian.

Descobriram inéditos?
Rita A.N.: O mais importante talvez tenha sido o manuscrito de Nome de Guerra [escrito em 1925 e publicado em 1938].

Nessas descobertas, as netas comovem-se?
Catarina A.N.: Nós e a equipa. Foi muito comovente encontrar o livro de poemas do nosso bisavô [pai de Almada] para a nossa bisavô [mãe de Almada]. Era uma paixão louca.

A paixão que marcou a relação de Almada e Sarah?
Rita A.N.: Toda esta linhagem é de grandes paixões uns pelos outros.

Neste processo de inventariação do espólio da família qual tem sido o vosso papel?
Catarina A.N.: Em todos os momentos tentámos pôr-nos na cabeça dos nossos avós. Não queremos quebrar a coerência da coleção. O nosso avô deu muita coisa – vendeu pouca e deu muita. Quando morreu a Sarah fez-se uma venda grande à Gulbenkian, para permitir que uma grande instituição detenha a melhor coleção do Almada. Essa é, de resto, uma das grandes responsabilidades da Gulbenkian.

Se hoje pudessem interpelá-lo, o que lhe perguntariam, o que lhe diriam?
Rita A.N.: Que tenho pena de não me ter cruzado com ele pessoalmente. Muita pena. Mostrar-lhe-íamos também o monumento de homenagem aos seus 120 anos, na Ribeira das Naus, uma ideia minha e da Catarina.

 

ALMADA NEGREIROS, UMA MANEIRA DE SER MODERNO
A exposição Almada Negreiros, Uma Maneira de Ser Moderno estará patente ao público na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, entre 2 de fevereiro a 5 de junho. É uma mostra antológica da obra de um artista que catalisa a vanguarda nos anos 1910 e atravessa todo o século xx. A exposição vem colmatar uma lacuna deixada desde 1993, data da última grande exposição dedicada ao modernista, e mostrará vários inéditos.