Timidez? Faça como a Lady Gaga

A ideia que o público faz de Lady Gaga enquanto mulher inabalável não coincide nada com a realidade. Vê-se a artista em palco e imagina-se uma Afrodite poderosa, que veste roupas extravagantes e desafia a gravidade nos seus saltos. Os homens ficam loucos, as mulheres ciumentas. Na verdade, a cantora é reservada, enerva-se em festas e ao conhecer pessoas novas, inibe-se diante dos homens (mesmo considerando-se sexy) e pedia à mãe que a acompanhasse para ter coragem de atuar em bares quando tinha 14 anos e ainda usava o nome de Stefani Germanotta.

«A timidez está enraizada em pensamentos. As pessoas socialmente ansiosas sentem que os outros pensam mal delas ou estão a julgá-las, e daí resulta o seu potencial para a humilhação e para o embaraço», explica a psicóloga clínica Gillian Butler, investigadora no departamento de psiquiatria da Universidade de Oxford e autora do livro Ultrapassar a Ansiedade Social e a Timidez. «Os tímidos sentem que as coisas que supõem que os outros estão a pensar são verdade. “Eles não me querem com eles. Eles pensam que eu sou esquisito. Eles não gostam de mim.” Assim, podem acreditar que são diferentes ou estranhos, que não se integram e têm a certeza de que vão fazer alguma coisa embaraçosa ou absurda, que vai revelar as suas inaptidões ou fazer com que sejam rejeitados.»

A dificuldade que se prende com os altos níveis de ansiedade, avisa a especialista, é o facto de interferirem com as atividades comuns e com capacidade de pôr planos em ação. «Uma certa dose de ansiedade é útil se se tiver de ir a uma entrevista ou fazer um exame: pode dar energia, motivação e ajudar à concentração.» Mais do que isso, impede que as pessoas façam aquilo que querem no imediato e, a longo prazo, pode ter diferentes efeitos nas carreiras, nas relações pessoais, nas amizades, no trabalho, nas atividades de lazer e na qualidade de vida.

As estatísticas de diversos grupos de estudo revelam que cerca de 80 por cento das pessoas viveram períodos de timidez fortemente marcada durante a infância e a adolescência, algumas das quais resolvendo-a posteriormente e mais de 40 por cento continuando a descrever-se como tímidas no presente. Ninguém gosta de se sentir angustiado, mas é possível viver bem com a timidez desde que se impeça que seja ela a dominar – roubando oportunidades que outros tomam por garantidas – e se tire partido dos pontos fortes de cada um.

No caso de Lady Gaga, para contrariar o nervoso que a inibia de subir ao palco, mudou radicalmente a imagem. Encarnou uma personagem confiante, destemida e segura do seu talento. Trocou o cabelo escorrido e o rosto juvenil por maquilhagem carregada e os modos de uma gata selvagem, capaz de levar tudo à frente num assomo de energia criativa. Em vez de ganhar a vida a cantar êxitos de terceiros (como fazia na altura em que era agenciada pelo empresário Bob Leone), transformou-se na diva loura que rivaliza com Madonna nos espetáculos conceptuais e na estranheza do vestuário que, ou é escasso, ou chocante. Para rematar, tornou-se a primeira pessoa a chegar aos 18 milhões de seguidores no Twitter (menos de um ano depois de ter batido o recorde dos dez milhões) e conta com mais de 46 milhões de fãs no Facebook.

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Levado pelos arranques do seu entusiasmo profissional, também Rui Unas explora bem a imagem de homem extrovertido, irrequieto, nada acanhado a falar de temas constrangedores ou a inventar piadas. «Publicamente, a minha persona laboral está nos antípodas da timidez», admite o apresentador, autor, produtor e ator, que fora dos estúdios evita os holofotes, mas frente às câmaras tanto é capaz de ser o «ganda maluco» do Cabaret da Coxa (programa irreverente de entretenimento transmitido na SIC Radical entre 2002 e 2005), como fazer filmes, teatro, projetos televisivos de ficção e ter conversas picantes com senhoras cinquentonas, quando tinha 19 anos e começou na Rádio Seixal.

«Parece contraditório mas eu gosto de comunicar, de falar com pessoas. Num registo profissional, não sinto qualquer dificuldade em fazê-lo», afirma. Num círculo de relações mais pessoal, todavia, Rui não gosta de ser o centro das atenções. Não bebe, não gosta de sair até de madrugada, não se obriga a marcar presença nas festas de social (a sua agente insiste para ele deixar de ser bicho do mato, mas o desconforto é grande). Tão pouco se revê no personagem que criou para o Cabaret, desbocado e rodeado de mulheres nuas e de um papagaio que dizia asneiras. Prefere passar despercebido e é reservado a falar para muita gente, o que no seu caso é por vezes confundido com arrogância ou pretensiosismo.

«Na adolescência, a timidez funcionava na hora de arranjar namoradas e o que sucedeu foi que comecei a utilizar o humor para me afirmar nos meus grupos de amigos», conta o apresentador. As miúdas só o viam como o amigo que as fazia rir, mas a tática foi aperfeiçoada com tal requinte que ainda hoje, nos momentos em que se sente mais nervoso ou inseguro, é quando dá por si mais rebelde e extrovertido. «A determinada altura, a única opção é baixar totalmente as defesas a ficar imune à autocrítica, como se saltasse de um bungee jump. Claro que há que ter uma segurança para não nos estatelarmos ao comprido, no meu caso a corda é o bom senso», diz. Quando tem que comunicar num âmbito mais pessoal e não há câmaras, nem microfones, nem público a servirem-lhe de rede, o treino também o ajuda a superar-se: «Basta fazer um clique e ser um bocadinho a pessoa da televisão. Que no fundo sou eu também, não é um falso Rui. Mas descobri-o através da minha atividade profissional.»

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Luís Fernando Veríssimo é outra figura apta a descrever o sentimento, não só por ser um tímido notório, mas porque é escritor, jornalista e reputado cronista brasileiro, natural de Porto Alegre e filho de um dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa, Erico Veríssimo. Aos 80 anos, a timidez ainda o atrapalha na comunicação com os outros e na vida social, levando-o a admirar os que dominam o dom da oratória e a facilidade da conquista amorosa que lhe faltam por vergonha, apesar de ter controlado a sua para namorar, casar e ter filhos, com tudo o que isso implica.

«Todo o mundo é tímido, os que parecem mais tímidos são apenas os mais salientes», sustenta o autor na sua crónica Da Timidez, defendendo a tese de que não adianta um tímido tentar convencer-se de que só tem problemas com multidões, já que duas pessoas são uma multidão para ele. «O extrovertido faz questão de chamar atenção para a sua extroversão, assim ninguém descobre a sua timidez. O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as atenções se voltam para ele. Se cochicham, é sobre ele. Se riem, é dele. Vive acossado pela catástrofe possível: vai tropeçar e cair, vai descobrir que estava com a braguilha aberta o tempo todo. E tem a certeza de que, cedo ou tarde, vai acontecer o que o tímido mais teme e lhe tira o sono: alguém vai-lhe passar a palavra.»

Atualmente, aceita-se como principais causas da timidez os fatores biológicos como o temperamento ou o sistema de alerta com que nascemos, as vivências de infância e as relações com os pais, as oportunidades de aprendizagem social, as experiências más ou traumáticas, a dificuldade em lidar com as exigências de diferentes fases da vida, as pressões que afetam as relações com os outros e a experiência de se ser avaliado, elogiado ou criticado. Numa época de domínio da imagem, dos reality shows e do imediatismo, em que a regra é aparecer a qualquer preço, são os tímidos quem mais sofre.

«Perdemos a tolerância com quem precisa de mais tempo para tomar as suas decisões e essa é justamente uma das características dos tímidos», constata Bernardo Carducci, diretor do Instituto de Pesquisa da Timidez da Universidade de Indiana e autor do best-seller Timidez, salientando que no topo das situações mais constrangedoras se contam falar em público, ser elogiado, pedir aumentos ao chefe, fazer reclamações e negociar preços. Ainda assim, a timidez tem vantagens: ao mesmo tempo que existe menos propensão para internamentos e acidentes, o tímido mantém melhor as relações afetivas, pensa com mais cuidado, tem maiores capacidades de liderança porque ouve e implementa ideias dos outros, foca-se no essencial e é mais produtivo a organizar os locais de trabalho.

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O trabalho é igualmente a arma de eleição de Maria Rueff, como se criar personagens lhe permitisse escudar-se do mundo e chegar aos outros pelo riso. «Continuo a ser como nasci, a ter nervos, ansiedade, a roer as unhas. O mais difícil é mesmo fazer de mim própria», conta a humorista, figura de destaque no teatro, cinema, televisão e rádio, e genial a criar figuras conhecidas do público como o Zé Manel Taxista, Dona Rosete, a manicura Maria Delfina ou Idália, esposa de Nelo (Herman José) na rubrica Nelo e Idália. Nunca foi objetivo seu ser vedeta: tímida para lá do imaginável, incapaz de ultrapassar a barreira de ir a castings por detestar a pressão de mostrar o que vale em cinco minutos, as coisas aconteceram-lhe naturalmente, convidada uma e outra vez por responsáveis que a viam atuar e adoravam o estilo da atriz.

«Mesmo quando estou à civil, fora do meu ambiente familiar, sirvo-me de um lado mais histriónico para enfrentar as pessoas. Sou timidíssima», faz notar Maria Rueff, capaz de caricaturar qualquer mulher da sociedade portuguesa, mas nunca de participar num reality show, onde morreria de vergonha. Ainda miúda encarnou o papel de palhaço de serviço da família: um modo de chamar a atenção, disfarçando a dificuldade em socializar. Passou a ser essa a sua âncora para chegar aos outros e lidar com os fãs, já que não tem manhas e se aflige com a competitividade e os olhos postos nela. «Sou privilegiada por fazer o que gosto com quem gosto. O humor só se faz bem em família e a mim ajuda-me imenso por ser como sou.»

Segundo o psicólogo e investigador Thiago de Almeida, especialista em relacionamentos amorosos e consultor em gestão de recursos humanos e qualidade de vida, a timidez existe desde os primórdios e terá contribuído para a evolução da humanidade, de outro modo não teria resistido como traço de personalidade. Alguns cientistas que estudam o comportamento animal associam a timidez ao instinto de lutar ou fugir dos primeiros homens diante dos predadores: mesmo que um deles sucumbisse ao atacar a fera, a fuga dos outros garantia a sobrevivência da espécie.

«A exemplo deles, sentimos que qualquer aproximação perigosa para a nossa integridade moral ou física deve ser evitada e é isso que fazemos», observa o estudioso, substituindo os mamutes e os leões de tempos antigos por um chefe inacessível, uma mulher deslumbrante que se quer convidar para sair, um grupo de ouvintes particularmente crítico ou um colega de trabalho mais agressivo.

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Luís Filipe Borges recorda-se do momento preciso em que deixou de ser um tímido introvertido para passar a tímido extrovertido: estava ele a começar o seu segundo ano em direito quando o grupo de teatro da faculdade, Direito Cénico, abriu inscrições e acabaria por escolher meia dúzia de pessoas. «Foi o teatro universitário, essa enriquecedora experiência de sete anos (ainda lá fiquei após terminar o curso), que me fez dar o salto no que à timidez diz respeito», adianta o apresentador e comediante, eternamente agradecido aos colegas que o inscreveram no último dia do prazo.

Hoje em dia é raro Luís corar, exceto se lhe acontece recordar tantos momentos da juventude que o fizeram ficar afogueado. «Penso que foi esta profunda timidez, aliada ao facto de ser açoriano de uma pequena ilha com 70 mil habitantes (a Terceira), que inconscientemente me fez refugiar nas palavras escritas.» Sentindo-se impedido de abordar as meninas bonitas que o intimidavam, atirava-se aos livros. Ainda agora, quando entrevista alguém que admira, faz questão de conversar um pouco com a pessoa antes de começar, para quebrar o gelo e impedir-se de corar logo na primeira pergunta.

«Se for uma situação particularmente difícil, lanço a mim mesmo o desafio de provar que sou capaz.» Nos diretos de TV ou diante de plateias, sente sempre uma injeção de adrenalina que o transforma numa espécie de versão melhorada. «Os nervos antes do evento existem como da primeira vez, mas basta ouvir o genérico, o aplauso, e esqueço tudo.» E sim, é possível viver a vida que sempre se sonhou ter apesar dos constrangimentos, confirma. Enfrentar a timidez com coragem é o segredo.