Nuno Artur Silva tem um plano para a televisão portuguesa

Texto Ricardo J. Rodrigues | Fotografia Orlando Almeida/Global Imagens

Esta manhã, Nuno Artur Silva foi à Assembleia da República ver os deputados ovacionarem os irmãos Sobral. «Quantas vezes vemos artistas e criadores receberem um aplauso de pé de todos os parlamentares deste país?», perguntava à chegada ao seu gabinete na RTP, horas mais tarde.

Junto à janela, uma pilha de revistas portuguesas e estrangeiras, muitas com a cara do cantor português, outras com ele e Luísa Sobral, a irmã, compositora do tema Amar pelos Dois – que deu a primeira vitória a Portugal na Eurovisão.

O administrador com a pasta de conteúdos do serviço público de televisão e rádio conseguiu que o país voltasse a vibrar com o festival da canção, após duas décadas de afastamento. E o que agora diz é que limitou-se a usar a mesma fórmula que quer aplicar ao resto da programação: «apostar na originalidade e no talento dos autores portugueses».

Nuno Artur na sala da rádio Antena 3.

Parar para pensar. Foi essa a primeira abordagem ao festival da canção. «Esta administração tomou posse em 2015 e, no primeiro ano, decidimos que não íamos fazer o certame. Sentíamos que tinha havido um divórcio do público com um dos mais marcantes eventos da história da televisão portuguesa e precisávamos de tempo para recuperá-lo».

Em 2016, então, Portugal nem sequer foi à Eurovisão. Mas isso deu espaço a Nuno Artur Silva para montar uma estratégia. «Reuni algumas das pessoas que mais entendem de música neste país e perguntei-lhes como achavam que isto devia funcionar.» A resposta, na verdade, foi bastante simples: se a RTP queria um festival relevante, era preciso que ele tivesse boas canções. Então nasceu a ideia de convidar nomes com créditos firmados na música portuguesa a criar os seus temas. «O mote era sempre este: músicas bem compostas, bem interpretadas, com qualidade.»

Um dos maiores tesouros que Nuno Artur Silva guarda no seu gabinete é uma velha bola de futebol, à qual aplica pontapés certeiros enquanto resolve a vida da televisão por telefone. Chuta-a contra as paredes e contra o sofá, e quem entra naquele espaço sem aviso arrisca-se a levar com uma bolada na cara.

Uma grande parte do trabalho de organização do Festival foi feita por telemóvel, no meio desses golos em nenhuma baliza. Coube a Nuno Galopim, crítico musical, ex-editor de cultura do Diário de Notícias, fã incondicional do Eurofestival, e a Henrique Amaro, locutor da Antena 3 e divulgador essencial da música portuguesa, a organização propriamente dita.

«Eles convidaram uma lista enorme de compositores e houve menos recusas do que eu esperaria. Um dia, reuni-me com os autores todos na RTP e a única coisa que lhes pedi foi para se preocuparem em fazer boas cantigas. Não estávamos interessados em copiar o caminho que muitos países europeus hoje cumprem, de grande espetacularização, de fogo-de-artifício. Queríamos boa música e pronto.» Não foi, em boa verdade, apenas isso.

O festival da canção, há de ter pensado Nuno Artur, não servia apenas para conquistar público para um espetáculo que fora marcante para várias gerações. Com uma cartada bem jogada, também podia potenciar alguma retoma do orgulho perdido dos trabalhadores na RTP. «As pessoas aqui estão desgastadas por mudanças constantes, despedimentos, a insegurança e o desinvestimento a que a empresa foi votada quando se começou a falar de privatização.»

Mesmo que esta administração – presidida por Gonçalo Reis e com dois vogais (Nuno Artur Silva, nos conteúdos, e Cristina Vaz Tomé, a tratar dos assuntos financeiros) – tenha sido a primeira a ser nomeada não pela tutela mas sim por um Conselho Geral Independente, o administrador da área de conteúdos é o primeiro a dizer que foram recebidos com natural desconfiança.

Nuno Artur Silva à saída do estúdio da RDP.

Só que, ao aliar o festival da canção aos 60 anos da empresa, a administração ganhou uns quantos pontos. Porque aquela cerimónia era um sinal de respeito pelo passado. «A RTP é a marca mais forte do país», e o dedo em riste acrescenta convicção ao depoimento. «Depois da semiprivatização da TAP, esta é a empresa que melhor representa a portugalidade.»

No festival da canção, os irmãos Sobral não foram a primeira escolha do público português. Ainda assim, os votos dos júris regionais garantiram-lhes presença em Kiev. E era precisamente por isso que Nuno Artur Silva tinha dúvidas de que Amar Pelos Dois pudesse vencer o Eurofestival. «Eu tinha consciência, pelo que estava a acontecer nos dias antes, que podíamos ter uma boa pontuação dos jurados, mas tinha mais dúvidas que o público europeu gostasse de uma opção tão diferente.»

Estava em casa com os filhos a assistir às votações e o Benfica, o seu clube, tinha acabado de se sagrar tetracampeão. «Foi um dia perfeito. De repente, a ver as votações, comecei a sentir uma alegria infantil. Foi mesmo isso, uma alegria infantil como sentia ao ver a Eurovisão há 30 ou 40 anos. E depois ganhámos [suspira]. Passei a noite agarrado ao telefone, a falar para a Ucrânia, a falar com uma série de pessoas que tinham trabalhado para isto em Lisboa. Foi incrível.»

O país voltou a vibrar com o festival da canção e é essa fórmula que Nuno Artur quer aplicar na televisão pública. «Apostar na originalidade e talentos dos autores nacionais.»

No dia seguinte, no aeroporto de Lisboa, quando centenas de pessoas saudavam a chegada de Salvador e Luísa Sobral, a delegada da RTP que tinha acompanhado a comitiva a Kiev entregou-lhe um dossiê volumoso e pesado. Era o caderno de encargos da EBU (European Broadcasting Union).

Para quem está nos bastidores, a alegria dura até ao momento em que se percebe a tarefa hercúlea que se tem pela frente. «A Eurovisão é de uma exigência enorme. É o maior evento europeu na área do entretenimento e isso significa uma grande responsabilidade.»

Nos próximos meses, uma boa parte da sua vida será passada a tratar de uma final inédita em Portugal. Mas Nuno Artur Silva não parece estar minimamente assustado. Diz, aliás, que «a RTP tem todas as capacidades para montar um evento memorável». E talvez nem seja preciso gastar um balúrdio para fazer uma grande festa [ver caixa].

Uma coisa é certa, o festival da canção continuará a seguir a mesma fórmula: convidar os mais relevantes compositores da música popular portuguesa para criarem cantigas originais e de qualidade. «Talvez com o tempo possamos abrir candidaturas espontâneas e democratizar o processo, mas agora é necessário fazer apostas em autoria e qualificação do que apresentamos.»

Mesmo com a primeira vitória no festival da Eurovisão, Nuno Artur Silva acredita que continua a faltar espaço audiovi­sual para destacar o que tem sido esquecido. «Há mesmo boa música em Portugal. E há que valorizá-la.» É como se estivesse a dizer que não basta uma andorinha para fazer a primavera. Ainda que a andorinha seja um pássaro que conquistou a Europa inteira, chamado Salvador Sobral.

A mesa onde Nuno Artur Silva trabalha é de uma organização meticulosa. A papelada está organizada em montes encostados uns aos outros, um por cada tema, um por cada projeto. É aqui que se pode ver a pequena revolução que o administrador quer operar na RTP. «Somos serviço público e, para nós, as audiências não podem ser tudo», repete uma e outra vez. Diz-se cansado de uma programação que aposta na importação de formatos estrangeiros. Diz que quer dar espaço aos autores, renovar a ficção, com o tempo vender séries e documentários para fora.

«Em Portugal a televisão produz um único produto de ficção, que é a telenovela. Está na altura de mudar isso.» O fascínio português por um conceito que foi desenvolvido na América Latina é um caso único na Europa e, na sua opinião, explica-se pela História. «A ditadura habituou Portugal a um entretenimento ligeiro. A RTP era o único canal e tornou-se numa estação de variedades e de apresentadores. Depois do 25 de Abril o canal passou Gabriela, Cravo e Canela e isso teve um impacto brutal na sociedade. Então as novelas, primeiro brasileiras e depois portuguesas, passaram para a hora de primetime. Mas nunca tiveram grande densidade política ou literária. São folhetins amorosos e pouco mais.»

Para explicar o que quer fazer com a televisão portuguesa usa muitas vezes o exemplo da Dinamarca, «um país mais pequeno que o nosso, com uma língua falada por muito menos gente, mas que consegue vender séries para o mundo inteiro». Em termos globais, esta é a época dourada das séries televisivas.

«Precisamos de autores que pensem neste formato, porque não há muitos e temos de criá-los. Mas, se demorou uns anos a conseguirmos produzir novelas com qualidade técnica, também precisamos de tempo para fazê-lo com as séries.»

Para já, a ideia é estrear oito por ano. No verão estrea­rá Madre Paula, uma série histórica que conta um enredo de transgressão. Por enquanto, o administrador regozija-se com sucessos como Terapia, «unanimemente avaliado um produto de qualidade», Hotel Vidago, «que está a ser distribuído em França, Itália e Polónia» ou Ministério do Tempo, «que, não sendo um conceito absolutamente original, conseguimos adaptá-lo à realidade portuguesa e está a ter grande êxito na audiência infanto-juvenil». O caminho faz-se caminhando.

«É preciso criar um caminho do meio para a produção audiovisual portuguesa, que ou tem novelas ou tem cinema de subsidiação – e esse não está minimamente interessado em pactuar com o público.»

Não é propriamente surpreendente que Nuno Artur Silva queira apostar na ficção. A sua carreira, afinal, foi toda construída como argumentista. Estreou-se em 1990 como autor de sketches de humor para televisão no programa Joaquim Letria, da RTP2 e fez as entradas para Parabéns, de Herman José. Depois, fundou as Produções Fictícias, onde escreveu textos para programas como Herman Enciclopédia (um dos seus trabalhos preferidos), O Programa da Maria, Contra-Informação, Os Contemporâneos ou o jornal satírico Inimigo Público. A aposta pelas séries parece um caminho natural para quem criou tanto conteúdo de ficção televisiva.

A sua aposta também tem outro argumento. «É preciso criar um caminho do meio para a produção audiovisual portuguesa, que ou tem novelas ou tem cinema de subsidiação – e esse não está minimamente interessado em pactuar com o público.» Diz que, apesar de a RTP financiar o cinema português, os autores habituaram-se a virar costas à televisão e às audiências, «o que é terrível para um país tão pequeno». Mas acredita que as coisas estão a mudar, que há novos cineastas e são menos preconceituosos, que perceberam o momento que vivemos. «Se formos ver bem as coisas, o cinema infantilizou-se e as séries tornaram-se adultas.»

Haverá dinheiro para criar produtos competentes? «Temos de diversificar o financiamento, fazer coproduções. É o que se faz em todo o mundo e não se pode esperar que a RTP seja o único motor de desenvolvimento do género. A nós cabe-nos manter as séries em primetime, mesmo que isso signifique menos audiências.»

À conversa com David Ferreira, que conta as histórias que há nas canções.

De repente batem à porta da sala, uma emergência. «Uma boa parte deste trabalho é apagar fogos.» Daí a nada, Nuno Artur Silva há de sair para dar uma volta pelas instalações, cumprimentar as equipas de trabalho, hábito que tenta cumprir todas as semanas. «Quer dizer, não gosto de ir ao estúdio do telejornal em cima da hora do noticiário, sei que os jornalistas têm de sentir autonomia para fazer o seu trabalho.»

Então hoje vai dar uma volta pelos estúdios da RDP, distribui abraços por jornalistas e locutores. Ainda uma passagem pela RTP Memória, o canal que deixou de transmitir o Benfica-Boavista de 1993 e introduziu um grafismo arrojado. «A história, lá porque é história, não tem de ser pesada», há de dizer o administrador da RTP depois de se despedir da equipa.

Uma parte do seu ofício é «apagar fogos». Mas, uma vez por semana, gosta de dar uma volta pelas instalações para cumprimentar as equipas de trabalho. Hoje passa pelos estúdios de rádio e da RTP Memória.

Na informação não há reforço na grande reportagem. «A televisão pública vai continuar a oferecer espaço de reflexão no Linha da Frente e investigação no Sexta às 9.» Aquilo em que o canal quer inovar é no espaço que concede ao documentário e às séries documentais. «Ofereceremos mais documentários aos telespetadores portugueses e também produziremos mais conteúdos próprios, de grande qualidade.»

Além dos projetos propostos pelos jornalistas da casa – Jacinto Godinho é um bom exemplo disso, ainda no 25 de Abril lançou o documentário Quando a Tropa Mandou na RTP –, também haverá encomendas a produtoras exteriores. A Panavídeo, por exemplo, está a produzir uma série documental em quatro episódios. «É sobre o futuro. Por causa dos 60 anos da RTP tentamos imaginar o mundo daqui a 60 anos, em 2077.»

«Não cabe à administração da RTP definir os conteúdos informativos, mas podemos dar orientações do caminho a seguir.» E houve duas decisões na informação de que Nuno Artur Silva se orgulha particularmente. A primeira foi deixar de ter políticos a comentar a atualidade sozinhos em estúdio. «São muito bem-vindos para vir falar de assuntos pertinentes quando convidados, mas não para falarem sozinhos em estúdio.»

Também se reduziram os tempos de noticiário para uma hora e reforçou-se a aposta na secção internacional. A outra decisão que considera marcante é a abertura do arquivo da RTP ao público. «É um património português que tardava em chegar a toda a gente. Quando sair daqui, orgulhar-me-ei sempre de ter feito isto.»

No desporto a ideia é dar menos, mas melhor. Nuno Artur Silva admite que há excesso deste segmento na televisão portuguesa e por isso aponta as baterias para a qualidade. «Temos a Seleção e queremos continuar a ter a Liga dos Campeões (têm contrato de transmissão até 2018), porque é o melhor campeonato do planeta. Nos programas apostamos no Grande Área e no Trio d’Ataque, não mais do que isso.»

Não serão formatos demasiado presentes nos canais nacionais? Tantos programas de comentário sobre futebol não saturam as audiências? «Claro que sim, e há operadores a insistir nisso com a única preocupação de ter audiências. Mas na verdade temos dois programas que tentam ser competentes, mais um quando há jogos na Champions. Além, claro, de darmos espaço às modalidades na RTP 2. Parece-me o indicado para o serviço público de televisão. Não vamos encher a RTP de desporto porque não precisamos de viver obcecados com as audiências.»

Quando foi convidado para ser administrador da estação pública, no início de 2015, Nuno Artur Silva tinha acabado de estrear uma peça de stand-up comedy chamada Agora a Sério. Passou os primeiros meses a trocar os dias no gabinete com as noites em cima do palco. Mas não foi por isso que a CRESAP, o organismo público que supervisiona as compatibilidades das contratações na administração pública, indicou que o seu perfil era «adequado mas com limitações». É que era ele que estava à frente do canal Q e isso poderia significar uma incompatibilidade. A propriedade da empresa continua a ser sua, mas não a gestão. «Afastei-me totalmente do projeto. Não faria sentido se não o fizesse, e na verdade não teria tempo para dar-lhe a atenção devida. Mas, ao fazê-lo, anulei qualquer limitação que pudesse existir.»

«Em Portugal produz-se um único género de ficção: a telenovela. Está na altura de mudar isso.» A ideia é apostar nas séries. Neste momento, estreiam oito por ano.

Os administradores da RTP podem agora cumprir dois mandatos de três anos e, se for novamente nomeado, é bem possível que só volte ao Canal Q e às Produções Fictícias em 2021. Admite que continua a ter um carinho especial pela operadora televisiva que fundou e depois conta uma história que não conhecíamos.

Em 2011, muito antes de vir para a estação pública, o gigante americano HBO esteve quase a comprar o canal de humor português. «Tínhamos tudo fechado mas uns dias antes de assinarmos o contrato a troika entra em Portugal e o negócio caiu. Tinham uma política de empresa de não investir em países intervencionados pelo FMI e não havia nada a fazer. Para mim, foi como se a Gisele Bündchen tivesse aceitado o meu pedido de casamento e depois me deixasse especado no altar.» Ri-se, são águas passadas. O vento agora corre para a estação pública portuguesa e ele diz que este sim, vai ser um matrimónio feliz.

«Temos todas as condições para montar uma grande Eurovisão»

A cidade onde se realizará o Eurofestival de 2018 ainda não está escolhida, mas a capital portuguesa parece ser a aposta de meio mundo. «Ainda está tudo em aberto. Mas tem de ser um lugar com capacidade não só hoteleira como de acolhimento para os múltiplos eventos que a Eurovisão acarreta. Não são só a final e as semifinais. São semanas de preparação e desmontagem, receção de canais da Europa toda.»

A RTP conta com um orçamento anual de 258,3 milhões de euros e a organização do Eurofestival custará no mínimo trinta milhões. «Se saísse do nosso budget seria demasiado caro. Mas, além de a EBU suportar uma parte dos custos, há um potencial que vai permitir congregar financiadores e mecenas.»

Os tempos, e Nuno Artur Silva sabe-o perfeitamente, ainda são de aperto de cinto. «Tecnologicamente vai ser um desafio mas temos todas as condições para montar uma grande Eurovisão.» O caderno de encargos não dá grande margem para manobra, são regras bastante rígidas – «e tem mesmo de ser assim, porque são muitos países e muito diferentes». A certeza é esta: em maio de 2018 a Europa inteira virá cantar a Portugal.