A vida de Mundo Segundo dava um álbum inteiro de hip hop

Mundo Segundo
Mundo Segundo

É um dos nomes mais marcantes do hip hop nacional e figura incontornável da música no Porto. Edmundo Silva tem 38 anos mas o seu alter ego artístico já leva 25 de carreira. Mundo Segundo faz parte dos Dealema, é produtor, acaba de lançar um EP a solo e já tem outro a caminho. O homem que se virou para a música depois de um acidente de trabalho lhe tirar dois dedos continua a somar projetos: agora quer abrir uma escola de hip hop para miúdos. Pelo meio joga futebol e basquetebol em quatro equipas.

Edmundo Silva. O nome pouco dirá à grande maioria, mesmo aos seguidores mais atentos do movimento hip hop. Se falarmos, todavia, em Mundo Segundo, a reação será bem mais calorosa, tão indissociável é a carreira da própria ascensão deste género no meio musical português. Hoje, «tirando duas ou três pessoas», já ninguém o trata pelo nome de batismo. «A minha mãe chamava‑me Mundo e a coisa foi ficando. O “Segundo” e mais recente e deve‑se ao facto de o meu estúdio, por onde passavam muitos amigos e músicos, ficar nesse andar.»

Oriundo de uma família gaiense de poucos recursos – o pai era eletricista e a mãe dona de casa –, teve, apesar de tudo, «uma educação privilegiada», graças a bolsa para estudar no Colégio de Gaia. Nesses seis anos, marcados por «professores muito atenciosos e uma disciplina pouco habitual nas escolas portuguesas», foi criado pela avó, que vivia nas imediações.

O futebol era, então, a única paixão de Edmundo, mesmo que a ligação familiar à música fosse evidente: a mãe cantava fado e o irmão mais velho fazia parte de um grupo de música popular portuguesa. Jogava no Futebol Clube Candal e sonhava seguir os passos dos grandes ídolos da altura, André, Fernando Gomes e João Pinto. A morte abrupta do pai, quando Edmundo tinha apenas 14 anos, mudou tudo. Passou a frequentar o ensino público e foi viver com a mãe. O choque da mudança, somado «a uma certa revolta por ter perdido o meu pai tão cedo» fez‑se sentir. No primeiro ano na Escola Secundária Almeida Garrett (sétimo de escolaridade), em Gaia, chumbou. «Os meus pais sempre me protegeram muito. Quando isso deixou de acontecer, comecei a andar na rua e a ter outras companhias.»

Edmundo não tinha completado 15 anos quando descobriu o hip hop. Primeiro, através dos artistas mais comerciais da altura, como MC Hammer, Vanilla Ice ou Dr. Alban. Um primo que vivia na Suíça pô‑lo em contacto com bandas como Public Enemy. Descobriu então que o rap não era apenas a ostentação de bens materiais, com «um discurso vazio e inconsequente», mas podia ser também «uma escola de vida».

Não se tornou simples entusiasta do género. Foi um estudioso das suas raízes e influências, absorvendo a cultura dos quatro elementos que a compõem: o rap, o DJing, a dança e os graffiti «Hoje posso dizer que fui salvo pela música. Em larga medida, sobretudo na transmissão de valores, foi o meu pai substituto.»

Com DJ Guze, colega de escola que viria a acompanhá‑lo nos Dealema, criou os Fator X. À enorme vontade de aprender somou‑se outra coincidência: Nuno Carneiro, MC Ace dos Mind Da Gap, era seu vizinho e desempenhou o papel de tutor, transmitindo‑lhe dicas sobre métricas e batidas que se revelariam preciosas nos anos seguintes.

A escola ressentia‑se cada vez mais da paixão musical. Mas foram sobretudo as dificuldades financeiras que o levaram a abandonar os estudos quando estava no 11.º ano. A mãe, já reformada, ganhava apenas 150 euros e Edmundo, «cansado de não ter dinheiro para comprar o que os meus colegas tinham», decidiu‑se pela saída. Assim, poderia ajudar em casa e, ao mesmo tempo, ir juntando algum dinheiro para os projetos musicais.

Durante dois anos fez «de tudo» Trabalhou nas obras, em lojas de calçado e streetwear e até em fábricas de ar condicionado. Se todas as vidas têm o seu instante decisivo, o de Mundo Segundo aconteceu tinha apenas 19 anos. Trabalhava na construtora Soares da Costa, como o pai e o irmão. Apenas uma pequena distração do jovem precipitou um acidente de trabalho e fê‑lo perder dois dedos. «Por sorte, tinha seguro.»

Recebeu quatro mil euros de indemnização, que gastou num único dia. Qual criança numa loja de doces, entrou no estabelecimento mais próximo e comprou tudo com que sempre sonhara para seguir o sonho musical. «Cheguei a casa cheio de caixas! Eram gravadores de pistas digitais, samplers, compressores, amplificadores… A minha mãe passou‑se, compreensivelmente. Foi o ato de loucura que mudou a minha vida.»

Já muito presente na sua vida, a música transformou‑se em autêntica obsessão. Na década seguinte, «quase só saía do quarto para ir comer e comprar tabaco». Ao seu pequeno estúdio afluíam os restantes elementos dos entretanto criados Dealema (Maze, Guze, Expeão e Fuse), mas também artistas ou candidatos à tal da cada vez mais pujante cena hip hop portuense, que, no final dos anos 1990, se mostrava cada vez mais pujante.

Na gravação do primeiro disco a solo do amigo e colega Expeão chegou a fazer uma maratona de 15 dias. Sem interrupções pelo meio, exceto as escassas horas mal dormidas e as refeições supersónicas. «Eterno aprendiz», Mundo não se limitava à exploração de sons e palavras. Como promotor de festas de hip hop durante mais de uma década, criou as lendárias Nova Gaia Sessions, nas antigas instalações do Hard Club, nas margens de Gaia, e trouxe aos palcos nortenhos pela primeira vez os principais nomes do género em Portugal como Sam the Kid, Micro ou Chullage.

Em 2004, já com passagens pelos maiores festivais portugueses no currículo, seguidores de norte a sul do país e com um bem-sucedido registo de estreia, Expresso do Submundo, os Dealema eram uma certeza. Em conjunto, optaram pelo tudo ou nada: despedir‑se dos respetivos empregos para se dedicarem apenas à música. Edmundo tinha 25 anos. À distância de uma dúzia de anos, Mundo Segundo diz que «foi a melhor coisa que poderíamos ter feito». «Não fazia sentido estarmos num grupo em que metade dava tudo e a outra não.»

Entretanto, as coisas mudaram bastante. A experiência e a maturidade deram‑lhe outra forma de ver o mundo e até de encarar a principal ocupação. «No início disparava para todo o lado para tentar acertar em algo, agora não preciso dizer com tanta fúria para causar ainda mais estragos.» Para o músico, foi «a transformação da rebeldia em maturidade e consciência». A adesão popular ao hip hop também sofreu enormes mudanças. De género minoritário da contra cultura tornou‑se no tipo de música que quase toda a gente ouve, fomentando o surgimento de «artistas que nada dizem nas letras mas têm muito público. Mas Portugal está felizmente a salvo, porque o meio é pequeno e a cultura do hip hop é forte»

A dedicação total à música não impede que todos os membros se envolvam em projetos paralelos. Esse é mesmo, reforça o músico, um dos segredos da longevidade do grupo, porque a criatividade sai fortalecida assim que cada um regressa de uma colaboração ou parceria externa.

Nesse capítulo, Mundo distingue‑se pela energia constante. Há dias lançou Sempre Grato, um EP com sete temas distribuído gratuitamente com uma publicação musical em que colabora com artistas como Macaia, Bezegol ou Roger Plexico. Do já longo currículo constam palcos partilhados com os influentes Pharaoh Monch, Marco Polo, Masta Ace e M.O.P. Com Sam the Kid construiu uma sólida relação de amizade que não só resultou numa digressão conjunta, no final do ano passado, como vai dar origem a um disco, a sair ainda neste ano. Apesar de ter uma base sólida de seguidores, «a instabilidade da música» tornou‑o cauteloso, distante do tempo em que a rebeldia lhe marcava os dias. «Temos de estar sempre um passo à frente. Lancei agora um disco, mas já tenho mais dois ou três na calha.»

Ao fim de tantos anos, assegura que continua a criar cada nova rima, beat ou sampler como se fossem os primeiros. Da expressão latina carpe diem («aproveita o dia») fez, mais do que uma frase tornada banal, uma verdadeira filosofia de vida. «Procuro otimizar o meu tempo ao máximo.» Por isso, tenta que cada dia seja produtivo, através de uma canção, de uma letra ou de um concerto.

É precisamente essa vontade de evitar os tempos mortos que explica que tenha ainda encontrado tempo para tirar um curso de barbeiro, ter o seu programa semanal de hip hop na Rádio Nova Era – em que tanto divulga as novidades como recorda clássicos do género – e vá planeando também um dos seus grandes projetos de vida: uma escola de hip hop direcionada para os jovens que permita ensinar os quatro pilares desta cultura. «Gosto de saber que muita gente jovem me procura e pede opiniões. Hoje é fácil gravar e ter concertos, mas, por outro lado, poucos conseguem sobressair. É preciso ser muito especial.»

Se a música é uma paixão inesgotável e os Dealema «a fortaleza» a que recorre sempre que pode, o desporto assumiu‑se nos últimos anos como «um vício saudável» que o ajuda a manter‑se «desperto e com a mente limpa», substituindo o tabaco, companheiro inseparável durante grande parte da juventude.

Depois de dez anos sem qualquer tipo de atividade física, Mundo Segundo reconciliou‑se com os treinos desportivos, importantes para aliviar a tensão. «Durante os minutos que estou em campo, deixo de ser o Edmundo e passo a ser apenas o número dois da equipa». Até porque o desporto «é uma ótima forma de transmitirmos valores como a disciplina e a entreajuda».

De momento compete em quatro equipas, três de futebol de sete – Rossoneri FC(Super Liga), Manga FC (Liga Empresarial/Master Foot) e Vila Nova FC (Super Liga – veteranos) e uma de basquetebol (Núcleo de Veteranos da Senhora da Hora, na Liga Inatel), acumulando as funções de treinador/jogador. Em algumas delas joga ainda ao lado de amigos de infância, como os irmãos Guedes, ligados à moda durante muitos anos. Não é por coincidência que isso acontece. Os amigos são «como irmãos de diferentes pais». E como os Dealema: «Só fazemos sentido os cinco. Se alguém sair, não entram substitutos.»

Dealema

UMA HISTÓRIA EM CAPÍTULOS
A celebrar vinte anos, os Dealema podem não ter um disco novo (Alvorada da Alma foi o último que lançaram, em 2013), mas os fãs não vão ficar de mãos vazias. Ao longo dos próximos meses, o coletivo portuense vai disponibilizar no YouTube um documentário da sua história, repartido por vários capítulos, composto por entrevistas dirigidas pelo jornalista Rui Miguel Abreu aos elementos da banda e a músicos que acompanharam o projeto ao longo dos anos. São prometidas imagens inéditas, de concertos, ensaios e bastidores. As datas de lançamento serão divulgadas nas redes sociais. Só depois é que os Dealema vão decidir se faz sentido uma edição em DVD.