Manuela de Azevedo: «Fui uma jornalista igual aos outros»

Recordamos esta entrevista com Manuela de Azevedo, concedida em 2013 à Notícias Magazine.

Em 1938, trocou Lisboa por Viseu, o colégio onde dava aulas pelo convite do jornal República, o casamento por uma carreira. No Diário de Notícias ganhou um estatuto ímpar. Desceu às misérias da ditadura e assinou reportagens sobre os bairros degradados de Lisboa, os campos de arroz do vale do Sado, a caça aos cachalotes no mar da Madeira – mesmo sem saber nadar. Entrevistou Hemingway, Eva Perón e o rei de Itália. Escreveu contos, romances, poesia, teatro, ensaio. Publicou recentemente outro livro e ainda este ano uma peça sua voltará à cena.

Se estivesse deste lado do gravador, que pergunta escolheria para abrir a entrevista?
A alguém com a minha idade e percurso começaria por perguntar que diferenças encontra entre o jornalismo do seu tempo e o atual. Mas, sabe, não é pergunta a que responda facilmente. Atualmente não leio jornais, não posso, vejo muito mal. Enquanto viveu, o meu cunhado trazia todos os dias o Diário de Notícias [DN] e eu ainda lia as gordas, os títulos, mas agora nem isso. Ainda sai em formato tabloide? Sabe, antes de mudarem o formato, os responsáveis máximos do jornal não deixaram de pedir a minha opinião. Fui uma redatora do jornal com alguma importância, considerada internamente e junto do público. Muito trabalhei no DN em artigos, reportagens e investigação. Gostava de ir ao fundo das questões. Dá-me ideia de que hoje já não se pensa assim. Há talvez uma certa leviandade. Seja como for, o jornalismo escrito não acaba. Nenhuma sociedade pode passar sem jornalismo e sem jornalistas.

Recorda um trabalho de investigação de que tenha gostado particularmente?
O meu último trabalho no DN foi uma investigação sobre São Frei Gil, imagine onde eu me fui meter. Não sou nada religiosa, fascinava-me, sim, o imaginário, a fantasia, e a história era apelativa: dizia-se que, aberta a campa de São Frei Gil, tinham encontrado flores frescas, rosas frescas. Olha que coisa tão bonita, pensei, e lá fui eu investigar a história desse homem. Reformei-me em beleza.

Contar histórias: escrevia com facilidades ou sentia a chamada angústia da escrita?
Nenhuma angústia. Sempre escrevi com muito à-vontade, com muita segurança. Ainda hoje assim é. Juntamente com uma prima e com o antigo diretor do arquivo do Diário de Noticias, estou a selecionar algumas das muitas cartas que recebi ao longo dos anos – cartas de figuras de relevo como, por exemplo, Marcelo Caetano – para um livro a publicar futuramente. E tenho escrito alguns textos, sempre com muita facilidade. Mas, coisa curiosa, nunca escrevi à máquina. Uma das razões por que pedi a reforma – a mais importante foi a vontade de sair pelo meu próprio pé – foi saber que teria de passar a escrever num computador.

Mas nem à máquina? Porquê?
A minha imaginação era muito rápida, fluída, e só o pulso acompanhava a cabeça. A verdade é que sempre me facilitaram a vida. No Diário de Notícias, designaram uma pessoa para passar os meus textos.

Referiu um livro de cartas. Já tem data para publicação?
Ainda estou na fase de seleção. Leem-me as cartas e eu escolho apenas as que julgo terem mais interesse para o país, não aquelas que mais me interessam pessoalmente ou porque me elogiam ou porque me atacam Sim, porque também recebi dessas.

De quem?
De leitores. Recebia centenas de cartas por ano.

Já trabalha num novo livro, mesmo acabando de publicar Sinfonia Completa, livro de contos escritos aos 101 anos – e a poucas semanas da reposição em cena da peça Camilo e Fanny, que escreveu nos anos 1960. Vida agitada.
Hoje mesmo, ao folhear Sinfonia Completa, cheguei à conclusão de que é um livro insignificante, os contos são muito pequeninos, nada comparável a Filhos do Diabo, que mereceu o prémio Fialho d’Almeida. Gosto da capa, uma reprodução de um guache meu, feito tinha 19 ou 20 anos. Quanto à peça, vejo com muito gosto esta reposição. O tema é muito romântico, o enredo e as personagens são reais. No fundo, é a história de um triângulo amoroso – Fanny Owen, José Augusto Magalhães e Camilo Castelo Branco – de final infeliz. Espero que seja um sucesso e uma festa bonita como o Carlos Avilez sabe fazer. Na altura teve muito sucesso e foi muito elogiada pelo Igrejas Caeiro. Lembro-me muito bem de a ter escrito. Demorei duas ou três horas, sentada nesta mesma secretária.

Diz que há uma renovação por cada novo livro que publica. É esse o segredo da longevidade?
Não tenho segredo nem explicação para a minha longevidade. A minha mãe morreu com 72 anos, o pai tinha 90 e a minha irmã, 85. Fiz uma vida muito simples, nunca perdi a simplicidade.. Nunca fui uma «atiradiça», com comas, a não ser se metesse na cabeça que tinha de fazer certo trabalho. Aí, era dura. No DN não tinha agenda, a minha agenda era feita por mim, mas tive grandes pegas no jornal por causa dos meus artigos.

Então?
Não deixava mexer nos meus textos. Certa vez, fiz uns trabalhos sobre Camões e as ruínas da casa do poeta – seriam em Constância ou em Avis? Fui saber. Escolhi para antetítulo dessas reportagens o título de um romance de Camilo: Cavar em Ruínas. O diretor, Fernando Fragoso, discordou. Achava ele que o título iria ser lido como uma métafora do país. Foi uma luta séria, a ponto de eu dizer que ou publicavam aquele antetítulo ou não havia texto.

Como acabou?
O antetítulo foi publicado. É preciso ter algum prestígio dentro de um jornal para assumir uma atitude dessas porque o que eu escrevia era do jornal, não era meu.

Era um osso duro de roer.
Era. Mas com razão. Quando pelos anos 1930 cheguei ao jornal República, o meu primeiro jornal, esperava-me uma secção criada de propósito para mim chamada «Tribuna da Mulher». Recusei imediatamente. Era só o que faltava, nem tribunas de homens nem de mulheres, ali havia jornalistas e quem tivesse unhas tocava guitarra. E eles lá cederam. Mas também encontrei «ossos» tão duros quanto eu.

Por exemplo?
Por exemplo, a Legião Portuguesa, que a determinada altura decidiu distinguir-me enviando-me um punhal desenhado numa folha de papel. Não foi a única ameaça porque a escrever era dura. Cheguei a queixar-me de mim própria a outros jornalistas. Diziam eles que não era dureza mas sentido de justiça. Acredito. Em contrapartida, lembro-me de ser considerada uma pessoa muito importante da situação por ter ótimas relações com Veiga de Macedo, ministro das Corporações e homem de Salazar, mas pessoa finíssima e de uma grande dignidade.

Nunca tentaram aliciá-la?
Saio do jornalismo com as mãos limpas. Nunca aceitei um tostão a mais, nunca ganhei um tostão fora dos jornais. Mas, certa vez, aconteceu receber no DN um envelope com mil escudos, uma fortuna na altura. Resumidamente: o dono do Diário de Lisboa, Alfredo Vieira Pinto, era sogro do poeta e grande amigo meu João de Barros. Um dos filhos do João de Barros, diretor da União Eléctrica Portuguesa, do Alentejo, tinha uma obra social perto de Setúbal, destinada aos filhos dos funcionários da empresa. Obra bonita que no meu entendimento merecia um trabalho. E fui lá em reportagem. Quando no dia seguinte abri o tal envelope, vindo da parte dele, fiquei estarrecida. Era muito dinheiro, mas fosse o que fosse. Enfiei pelas escadas abaixo, direta ao gabinete do Vieira Pinto, e disse «tome e faça favor de devolver a nota e o cartão». «Senhora dona Manuela, olhe que está a exagerar», desculpou ele, mas eu, zangadíssima, recomendei que fosse à Bénard, uma casa no Chiado que vendia artigos infantis de luxo, e comprasse brinquedos para dar a crianças que deles precisassem. E julgo que ele assim fez. Acho que essa Bénard já não existe. Era na Rua do Carmo. Sabe, eu era muito chiadeira, os jornais ficavam por ali perto e, por isso, eu frequentava muito aquela zona.

Aquilino Ribeiro prefaciou o seu primeiro livro, um livro de poemas, Claridade. Em carta que lhe escreve, reproduzida em Memória de Uma Mulher de Letras, o escritor diz a certa altura, referindo-se-lhe: «A pessoazinha de V. Exa. é três vezes gentil.» Revê-se também nessa fragilidade?
Com certeza.

Enganou-se bem, o médico que lhe prognosticou uma vida curta. Não passaria dos 5 ou 6 anos de idade, dizia ele.
Esse médico disse aos meus pais que eu não passaria dos 5, 6 anos de idade porque era muito frágil. Frágil mas saudável, e ainda hoje não tenho doenças. Tenho problemas inerentes à idade, uma coisita no coração e alguma má circulação que me obriga a tomar meio comprimido de dois em dois dias. E é só, felizmente.

Nasceu em 1911, numa família laica e republicana. Que primeiras lembranças da infância?
Das brincadeiras, de andar muito ao colo dos meus pais, de, com 4 ou 5 anos, ir ao teatro com eles. Vi a grande Palmira Bastos – a fazer revista, veja lá – e a Mercedes Velasco, antecessora da Beatriz Costa.

E da adolescência? Começa aí a revelação para as letras?
Fiz os primeiros versos com 11 anos, dediquei-os à minha irmã, Maria Alexandra, que tinha 3. Foram publicados num suplemento infantil d’O Século. Ainda na escola primária, num teste, surgiu a primeira revelação. Disse o professor ao meu pai, que ao meu texto só lhe faltava «o coaxar das rãs», tão realista era. A expressão pegou. Sempre que comentava um trabalho meu lá lembrava o meu pai o «coaxar das rãs». Todo este interesse começa muito cedo.

O seu pai foi diretor do jornal Diário da Beira Alta e correspondente de O Século. Os jornais estiveram sempre presentes.
A ligação do meu pai ao jornalismo ajudou muito. A minha mãe, eu e a minha irmã nascemos em Lisboa mas vivemos 13 anos em Mangualde. Eu estudava em Viseu mas nas férias devorava jornais.

Imagino que o seu pai tenha visto com bons olhos a inclinação da filha. E a sua mãe?
Sim, o meu pai apoiava-me muito. A minha mãe era mais discreta. Assistia. Apoiava e gostava, mas deixava a ação para o meu pai.

Ainda na infância e adolescência: Primeira Guerra Mundial e Fátima… Lembra-se de Fátima?
Lembro mas não queria falar sobre isso. O nosso médico de família emprestou-me na altura um livro sobre Fátima, duzentas e tal páginas assinadas pelo bispo de Leiria. O bispo insurgia-se contra os que estavam a explorar aqueles três inocentes pastores. Anos depois, acompanhei os meus alunos numa visita a Fátima e vejo esse mesmo bispo a fazer sessões religiosas no local. Enfim…

Como surge o convite para o República?
Escrevi um artigo a favor da eutanásia e enviei-o para o jornal República dentro do meu livro Claridade. Chamei-lhe «Matar por piedade» e, claro, foi imediatamente riscado pela censura. Uns tempos depois, mando um novo artigo, agora sobre a crise da Sociedade das Nações. Veja bem, uma miúda, em Viseu, a escrever sobre política internacional. Mas o artigo algum miolo tinha porque a censura voltou a cortar. Como o jornal continuasse a pedir-me artigos, vi-me obrigada dizer-lhes que precisava de ganhar dinheiro e, por isso, não podia perder tempo a escrever para a censura. «Se precisa de ganhar dinheiro, as portas do jornal estão abertas», respondeu o diretor. Aceitei o convite, deixei o ensino e parti para Lisboa, com a minha mãe e a minha irmã.

É então que o noivo a confronta: ou a carreira ou o casamento. Foi uma escolha difícil?
Foi uma escolha. Eu era uma mulher de ação e sabe qual foi o meu primeiro trabalho no República? Limpar e pintar de fresco a tabuleta do jornal que estava uma desgraça. Fi-lo com gosto. O mesmo gosto com que recusei escrever numa secção chamada «Tribuna da Mulher».

Estamos em 1938. Tem 27 anos. Entre 1942 e 1945 é chefe de redação da Vida Mundial, uma revista de atualidades. Segue-se o Diário de Lisboa. Não se sentia feliz num cargo de chefia de uma revista semanal?
Não me sentia feliz, faltava–me o prazer de ver reproduzido imediatamente aquilo que escrevia. A palpitação da vida.
Tanto era uma mulher de ação que chegou a acumular o Diário de Lisboa com o Diário de Notícias.
Fiquei como colaboradora, com um ordenado fixo. Fechava o Diário de Lisboa, lanchava, e ia para DN, onde deveria ficar até à hora de jantar. O problema é que me davam tanto trabalho que dias houve em que saí de lá às duas da manhã. Andava de tal forma cansada que o médico obrigou-me a escolher. E eu escolhi o Diário de Lisboa porque na altura o DN era um pastelão e o chefe de redação, o Tomé Vieira, um analfabeto. Mas voltei mais tarde, como redatora. Na altura, era diretor o Augusto de Castro e alguém lhe disse que iria arrepender-se de ter contratado «essa comunistazinha». E ele respondeu com verdade: «É da oposição mas não é comunista.»

Foi bem recebida pelos jornalistas?
Sem euforia, com cordialidade. Eu caí no jornalismo de para-quedas, ou melhor, sem paraquedas. A princípio, claro, cometi algumas gafes. Não soube identificar o cardeal-patriarca, confundi o bastonário da Ordem dos Advogados com uma famoso camiseiro de homens – o Pitta camiseiro – e outras, engraçadas até. Quer dizer, também eu tive de adaptar-me. Mas devo dizer, foram sempre muito respeitosos. No Diário de Lisboa, o Luís Salgado, chefe dos fotógrafos, chegou a dizer na redação, de maneira a que eu ouvisse: «Não nos bastava a censura lá fora, agora também a temos cá dentro.» Sorri e respondi-lhe que me bastava que falassem comigo tal como falavam com as mães ou com as filhas. No República, trabalhava num pequeno gabinete, mas a porta estava sempre aberta. Um dia passou lá um grafólogo, reparou na minha letra e vaticinou: «Vai longe.» Ainda hoje, dizem, tenho uma letra linda. Mas não consigo ler nada do que escrevo.

Uma mulher no jornalismo mereceu com certeza reações menos positivas.
Por exemplo, a do Manuel Múrias, diretor do Diário da Manhã, um jornal do regime. «Anda aí uma serigaita a saracotear-se nas letras», disse ele quando eu pus em polvorosa os meios literários porque no­ticiei que o prémio atribuído pela Academia das Ciências a um romance de Virgílio Godinho vinha acompanhado de uma nota que denunciava erros semânticos do autor.

E galanteios?
Era feminil mas não bonita. Faltava-me, sobretudo, sex-appeal. Tinha os dentes bonitos e mãos, mais nada. Mas gostava de me vestir bem e fazia alguma da minha roupa. Fiz um solidéu de veludo de que gostava muito, carmesim, uma cor muito bonita e sentia-me muito bem com ele. E fiz vários vestidos. Nas redações eram muito discretos e eu também não dava confiança, nem tinha relações pessoais ali dentro. Apesar de sermos todos muito amigos. Um pormenor engraçado: na fase em que fui colaboradora do DN, os jornalistas colocavam uma bandeirinha branca no candeeiro mal eu entrava na redação para avisar quem chegasse que a Senhora Dona Manuela estava na casa. E, mais curioso, quando saí, o discurso de despedida esteve a cargo do redator a quem chamavam o malcriadão.

Foi sempre a senhora dona Manuela?
Sempre. Diretores, donos dos jornais, todos sem exceção me tratavam assim..

Quais as reportagens que mais a marcaram?
Recordo uma série de reportagens sobre barracas, denunciando as miseráveis condições de vida das pessoas que ali viviam ou um trabalho sobre as furnas de Monsanto que fiz no Diário de Lisboa. Não tinha um programa mas era assim que eu fazia jornalismo, sempre junto das pessoas. E não sei se mereço todo este espaço. Eu fui uma jornalista igual às outras. Ou melhor, aos outros, porque fui a primeira. Fui uma jornalista igual aos outros. Gosto desta frase.

Era uma especialista a lidar a censura, conta-se.
A redação do DN estava dividida em cacifos, pequenos gabinetes. Todos os dias, o subchefe de redação batia à porta e perguntava com um ar perverso e amigo: «Então, s enhora dona Manuela, qual é a metáfora de hoje?» Era assim que se diziam as coisas, de metáfora em metáfora. A censura espicaçava a criatividade, lá isso é verdade. E, por vezes, levava a situações anedóticas. Como quando proibiu que se citasse o apelido do presidente do Brasil porque remetia para o Leste Europeu. Nada de Kubitschek, o senhor passou a ser o Juscelino de Oliveira.

Amiga chegada de Maria Lamas, revela no Memórias que nunca falavam de política e que só depois do 25 de Abril soube da ligação da escritora ao PCP.
Sabíamos que éramos ambas de esquerda, claro. E quando digo que não falávamos de política refiro-me a conversas sobre partidos ou ideologias. Mas falávamos da miséria em que o povo vivia, das dificuldades de toda a ordem, da falta de liberdade de expressão. Não é preciso ser comunista para rejeitar uma ditadura. Eu nunca participei numa reunião política, não era militante, mas nem por isso deixei de combater o regime.

E privou com Humberto Delgado.
Ainda antes de o conhecer, estive em sua casa, a convite de uma tia. O general estava com a família nos Estados Unidos e a senhora, na ausência do sobrinho, resolveu oferecer um chá a alguns amigos. Recordo desse dia a sala, cheia de gladíolos. Passados uns tempos, estou eu à porta do Grandella quando sou surpreendida por um sujeito um pouco estouvado que se apresenta assim : «Ó Manuela de Azevedo, eu sou o Humberto Delgado e já esteve em minha casa.» Meteu-me o braço e levou-me, Chiado acima, enquanto confidenciava: «Sabe, vou candidatar-me à Presidência da República.» E eu ri-me. Ele, um homem do Salazar? A partir daí comecei a frequentar a casa dele e a conhecer melhor a família. Mas, engraçado, sempre tive a impressão, para não dizer a certeza, de que não seria um bom presidente da República.

Porquê?
Porque era estouvado. Mas chorei quando ele perdeu as eleições. Foi aqui em casa, nesta sala. Era um rádio pequenino. Estava comigo a irmã do Álvaro Cunhal e uma outra amiga. Mas nessa altura ainda não o conhecia bem.

Chegou a entrevistá-lo?
Não.

Um entrevistado mais carismático?
Hemingway causou-me uma forte impressão. Soube da entrevista na hora e faltava pouco para o fecho do jornal. Não queira saber a minha aflição. Bem aleguei que uma entrevista exige preparação, mas o Norberto Lopes, o diretor, atirou-me um «faça o que puder». Eu só conhecia o Hemingway de o ler, mas lá fui. O barco atrasou uma hora para que o Diário de Lisboa fizesse a entrevista e, confesso, a minha preocupação maior foi não perturbar muito a censura para não atrasar ainda mais o jornal. Saiu, portanto, uma coisinha. Mas foi uma enorme emoção.

Com que ideia ficou de Hewmingway?
Fiquei com a ideia de que era um homem muito firme nas suas convicções.

E de Eva Perón?
De uma atriz de revista.

Para entrevistar Humberto de Itália disfarçou-se de empregada doméstica. Como reagiu ele?
Riu-se. Salazar concedeu asilo ao rei Humberto com a condição de ele não dar entrevistas nem falar de política. Através de um primo, consegui fazer-me passar por candidata a criada, de forma a entrar na Quinta da Piedade e ter acesso ao rei. Não foi fácil. Até porque à porta estavam os homens da PIDE. Acabei por pedir ajuda à marquesa do Cadaval. A entrevista fez-se, em francês, numa sala vazia, apenas duas cadeiras e um maple de palhinha, uma penúria tremenda. No Diário de Lisboa foi uma festa por ter conseguido a entrevista. Eu vivia isto com naturalidade. Olhe, bem mais difícil foi tirar a carta.

Então?
Tirar a carta foi das coisas mais difíceis para mim. O jogo dos pedais era uma confusão tremenda. Fiz três exames.

Nesses tempos, quanto ganhava?
Lembro-me de ganhar trezentos escudos. Era bom. E gozava de certas prerrogativas. Recordo que o Diário de Lisboa pagou a toilette que levei ao espetáculo oferecido em honra da rainha de Inglaterra, quando ela visitou Portugal, e também ofereceu o vestido que usei numa receção oferecida pelos ex-reis d e Itália.

Entretanto, foram aparecendo mais mulheres no jornalismo. Como era a vossa relação?
Não havia mulheres. No início da década de 1970, continuava a ser a única mulher profissional de jornalismo. Depois do 25 de Abril fui saneada do DN com mais 23 jornalistas e quando regressei encontrei então a Alice Vieira e mais duas ou três mulheres. Mas dessas só a Alice Vieira continuou.

Fez as pazes com Saramago?
Fui saneada porque assinei um documento que denunciava a tomada do jornal pelos comunistas, ainda que o documento não falasse em comunistas. Muitos anos antes, na década de 1960, o Joaquim Benite, diretor do Teatro de Campolide, mandara-me uma peça intitulada Que Farei com Este Livro? sobre Camões, assinada por um autor que eu não conhecia mas de quem tinha ouvido falar, chamado José Saramago. O livro referia a história de Camões e o Benite queria saber se o livro tinha interesse. Disse-lhe que sim, a peça era boa. Passaram anos, veio o 25 de Abril, e parece que o Saramago esteve também na base do meu saneamento, pelo menos foi o que constou. Não sei, não sei. Ele fez no DN uma peça de teatro que não prestava para nada, mas em que ele aproveitou para fazer pouco de mim. Não me deu falas e pôs-me num cantinho da cena, em palco, a fazer croché. Apesar dessa malandrice infame a uma redatora ousadíssima e importantíssima do DN, no Dia de Camões, sugeri ao presidente da Câmara de Constância que representasse aquela peça do Benite. O Saramago, que eu conheci pessoalmente nessa altura, foi ver representar a peça a Constância e no intervalo veio ter comigo. Tirou a boininha que levava e disse: «Muito obrigado, senhora dona Manuela, a Ssenhora é melhor do que eu.»

Mágoas do jornalismo?
Nenhuma. Fazia tudo com tanto entusiasmo e gosto e naturalidade. Nunca disse que queria ser jornalista importante. Para mim foi como quem bebe um copo de água. As coisas iam acontecendo, eu ficava contente, nada mais. A minha timidez contrapunha -se à ousadia que revelava em trabalho. Havia duas personalidades.

Não se arrepende de nada? Nem de ter trocado o casamento pela profissão?
Não me arrependo. Sempre fui muito refletida, partia para os desafios com cabeça, tronco e membros. Mesmo quando arriscava. Por exemplo, a reportagem da caça ao cachalote. Perguntaram-me se sabia nadar. Eu, que nado como um prego, disse que sim. Arrisquei. A caça ao cachalote envolve perigos – conhecia-os e aceitei. Em Portugal, fui a primeira mulher a participar na caça ao cachalote. Treze horas dentro de um bote onde cabiam quatro pessoas. Em silêncio.

UMA VIDA DE TALENTO
Nasceu a 31 de agosto de 1911, em Lisboa, numa família da classe média. Passou a adolescência na Beira Alta, e a vocação para as letras e para o desenho cedo sobressaiu. Fez o curso dos liceus em Viseu, ensinou Português e Francês num colégio privado daquela cidade. Em 1938, ao serviço do jornal República, tornou–se a primeira jornalista profissional em Portugal. De 1942 a 1945 foi chefe de redação da revista Vida Mundial mas o registo semanal era demasiado lento e morno para a jornalista. Mudou-se para o Diário de Lisboa, destacando-se com várias reportagens de caráter social, talentos confirmados no Diário de Notícias onde foi grande repórter, já então figura prestigiada no meio. Publicou 19 títulos e foi fundadora da Casa-Memória de Camões em Constância. Ao longo de quase sessenta anos de jornalismo privou com as grandes figuras da política, da cultura, da sociedade. Mulher de esquerda, socialista, amiga de Maria Lamas e Geni Cunhal, visita de casa de Humberto Delgado, foi saneada do Diário de Notícias em 1975, no período de José Saramago. Acabaria por regressar mais tarde, sem mágoa. Reformou-se aos 85 anos.

[Entrevista publicada originalmente na edição de 27 de outubro de 2013]