O homem que toca para Katia Guerreiro

Texto Catarina Guerreiro | Fotografia Paulo Alexandrino /Global Imagens

Foi numa noite de guitarradas no restaurante Taverna do Embuçado, no Bairro Alto, em Lisboa, que se conheceram por acaso. Ele, músico e guitarrista, já com nome no mundo do fado, foi totalmente surpreendido quando ela, uma jovem de 24 anos, estudante do último ano de Medicina, começou a cantar, de olhos fechados e mãos atrás das costas.

«O João puxou a cadeira, sentou-se à minha frente e, quando acabei de cantar os três fados que sabia – Lágrimas, Amar, Amar e Lisboa à Noite –, agarrou-me no braço e disse que tinha de cantar mais.» Katia Guerreiro, hoje com 41 anos, lembra-se bem de como aquilo foi. Não teve alternativa e interpretou Foi Deus.

Nunca mais se separaram. No dia seguinte, a jovem foi a casa de João Mário Veiga, em Linda-a-Velha. «Começámos logo a pensar no disco», garante o músico, lembrando que mal a ouviu no dia anterior percebeu que estava perante «algo diferente e muito melhor do que tudo o que andava por aí». Naquele ano de 2000 tudo aconteceu a uma velocidade estonteante. Em poucos meses, com a ajuda do também compositor e poeta de 61 anos, Katia Guerreiro fez-se fadista.

Katia já tinha experiência a cantar, mas não fado. Na ilha açoriana de São Miguel, onde nasceu em 1976, tinha tocado viola da terra, um instrumento tradicional, no rancho folclórico de Santa Cecília. Depois de se mudar para Lisboa, onde estudou Medicina, integrou como vocalista uma banda de rock, os Charruas (foi com o baterista da banda, João Baptista, que tinha ido naquela noite à Taverna Embuçado, a convite de Teresa Sequeira, a dona, que uns tempos antes a tinha ouvido cantar um fado, por brincadeira).

A jovem passou a frequentar regularmente a casa de João Mário, e, ao longo dos meses, foram trocando opiniões, cantando, e até descobriram que eram familiares. «O meu bisavô era irmão do bisavô da mãe da Katia», diz João Mário.

Kátia Guerreiro e João Mário Veiga já deram mais de mil concertos juntos e fizeram centenas de viagens para atuar. Há uns anos, João Mário começou a colecionar os cartões-chave dos hotéis por onde andaram.

A fadista continuou a estudar para ser médica e em junho desse ano deu o primeiro concerto em Porto Santo, na Madeira. Em setembro, exatamente no dia em que fez o último exame do curso, e no meio de tantos telefonemas a darem-lhe os parabéns, foi surpreendida quando percebeu que do outro lado era João Braga a convidá-la para atuar no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, numa homenagem a Amália Rodrigues por altura do primeiro aniversário da morte da fadista. «Eu até lhe disse: “Mas nunca me ouviu cantar…” Ele respondeu que confiava totalmente na pessoa que lhe tinha falado de mim.» Essa pessoa era João Mário.

«Ela foi o sucesso daquela noite no Coliseu», lembra o músico, que ao ver a onda de elogios em relação à nova fadista tomou uma decisão: «Nessa altura pensei logo que o primeiro disco dela tinha de ser gravado imediatamente.» E assim fizeram: em dezembro o disco estava pronto e em 2001 editaram-no com o nome Fado Maior. Desde então deram juntos mais de mil concertos e fizeram centenas de viagens para atuar. Há uns anos, João Mário começou a colecionar os cartões-chave dos hotéis por onde andaram.

«Já tenho mais de setecentos.» Não esquecem o concerto em Nagasaki, no Japão, em 2003, onde todos acabaram a chorar, o espetáculo no meio da selva na Nova Caledónia, que os surpreendeu, e a atuação, em 2012 no Olympia, em Paris, que os marcou. Nas viagens fazem questão de ir os dois a lojas de antiguidades e quando podem passeiam.

«Ele é o melhor companheiro de viagem», diz Katia. Foram fortalecendo esta amizade, ao mesmo tempo que a fadista ia dando concertos e gravando discos – ao todo lançou seis álbuns e três compilações. João Mário acompanhava sempre à viola, com a sua guitarra clássica, e juntos foram escrevendo algumas letras. «Quando canto, não há ninguém que me conheça melhor do que o João», garante a fadista.

Sempre gostaram de trabalhar em equipa e de conviver. Por vezes fazem caminhadas junto ao rio Tejo e ela, médica, foi tratando de alguns problemas de saúde do amigo. Em 2012, quando Katia teve a primeira filha, Mafalda, deixou completamente de exercer medicina. E em 2016, ao ter o segundo filho, decidiu fazer uma homenagem ao avô paterno, João, e ao avô materno, Mário, e juntar os dois nomes no novo descendente. Quando percebeu que o resultado seria «João Mário» ficou sem dúvidas que aquela era também uma forma de homenagear o homem que há 17 anos lhe mudou a vida depois daquela noite na Taverna do Embuçado.

Sobem juntos ao palco, respeitam-se, partilham segredos, tornaram-se amigos. Têm vinte anos de diferença (ela 41, ele 61), mas a cumplicidade que os une parece não ter idade. Ninguém conhece melhor a carreira de Katia Guerreiro do que João Mário Veiga.