João Reis: «Se há pessoa que não é deslumbrada, sou eu.»

Entrevista Alexandra Tavares-Teles| Fotografia Rui Oliveira/Global Imagens

A meio da manhã, João Reis chega ao Teatro Nacional São João, na praça da Batalha, no Porto, onde entrou pela primeira vez há 21 anos, a convite de Ricardo Pais. Está em casa. Traz um pé magoado pelas horas de treino de esgrima, com espadas pesadas e muitos dias de ensaio. No salão nobre, em contagem decrescente para a estreia de Macbeth, o ator fala de si, da paixão por Shakespeare e do desejo de ver de perto o pior e o melhor da humanidade. Da infância feliz e da necessidade adolescente de romper caminho De como um anúncio no jornal o levou à representação e o fascínio por Corto Maltese à Marinha e a mar alto. E do Porto, a opção certa num certo momento da vida.

Essa barba é sua ou é de Macbeth?
Esta barba já é de Macbeth, e vai ficar a crescer até à estreia. Trouxe para a peça uns restos de barba de uma participação pontual numa novela da SIC – Amor Maior – mas era rala. Nos trabalhos que se seguirem, manter a barba é condição sine qua non.

Foi a única alteração física que o papel exigiu?
A única. A barba pretende dar um ar mais pesado, mais guerreiro. Mais rude. Sem barba pareço um puto ao pé do Macbeth.

Macbeth é conduzido à violência e à loucura, corrompido pela sede de poder. É uma peça sobre a ambição, o bem e o mal, a confiança e a traição, o abuso de poder, a culpa. É a peça mais sombria de Shakespeare. Por onde começou a preparação?
Pela violência, precisamente. Não sou, por natureza, uma pessoa violenta. Mas sou capaz de ser muito assertivo e determinado. Como prezo muito a sinceridade e a honestidade, a falsidade pode levar-me a ter um discurso inapropriado e violento. Comecei, portanto, por instigar em mim aquilo que me provoca a violência física. Mas comecei também pelo desejo. Onde é que está o desejo na cabeça de Macbeth? Não tenho a certeza absoluta de que esteja claro, por exemplo, o desejo de ser rei. Penso sim, que pela sua imaginação, é terreno fértil a todas as instigações. As das bruxas e as de Lady Macbeth. «Se não conseguires fazer isto não és homem.» Por outro lado, e por paradoxal que pareça, há também um lado melancólico que contamina e configura uma boa parte do seu discurso na tentativa de dominar o tempo e portanto o seu destino.

É por aí que vai esta versão do Nuno Carinhas?
Há entre mim e o Nuno, uma espécie de compromisso: eu vou trabalhando e o Nuno vai vendo, ouvindo, sugerindo e encaixando o meu trabalho naquilo que é a sua noção do espetáculo. Há uma enorme cumplicidade entre nós, possível porque o Nuno dá uma enorme liberdade criativa aos atores. E fazer Macbeth em 2017 significa acrescentar-lhe alguma coisa.


[Ontem] Fizemos duas vezes o último ato da peça. Macbeth está desesperado, leva tudo à frente, numa catapulta de emoções e incertezas. Fiquei arrasado, praticamente sem voz. Lanço-me completamente e isso deixa marcas. Há papéis em que parece que somos atropelados por forças que não dominamos.

Orson Welles, Roman Polanski, Akira Kurosawa, entre outros grandes, retrataram a personagem. Este Macbeth é, sobretudo, à sua maneira?
Vi partes do filme de Polanski, umas imagens brutais, se bem que menos sombrias que os filmes de Kurosawa ou de Welles. Fui lendo muito material que o próprio Teatro [TNSJ] forneceu e, claro, não sou alheio ao que já foi produzido. Mas a partir de determinada altura fecho as portas e fico apenas comigo, com o meu instinto, com as minhas convicções e com o que vamos discutindo e descobrindo nos ensaios.

Já fez várias peças de Shakespeare. Este papel é o mais intimidador?
O grau de responsabilidade é imenso mas as coisas difíceis não me intimidam. Shakespeare é sempre difícil mas todos, enquanto humanidade, conhecemos muito bem aquelas personagens. Esta é, sem dúvida, a mais sombria e violenta.

Quais são os custos físicos e emocionais de um processo tão sombrio?
Uma ressaca brutal. Ontem, por exemplo, fizemos duas vezes o V ato, o último da peça. Macbeth já está por tudo, desesperado, leva tudo à frente, numa catapulta de emoções e incertezas. Fiquei arrasado, praticamente sem voz. Lanço-me completamente e isso deixa marcas. Há papéis em que parece que somos atropelados por forças que não dominamos.

Uma «ressaca brutal» diária. Portanto, quando os atores dizem que são pessoas normais estão mesmo a mentir?
Para mim, a profissão de ator é totalitária. Totalitária, no sentido em que não consigo deixar de pensar no que estou a fazer durante as 24 horas de um dia. O meu objetivo é ir ao âmago das coisas e quando se interpretam personagens desta dimensão a intensidade é enorme. Consigo, claro, ter uma vida normal porque tenho família e filhos mas há uma presença constante da energia e da natureza do Macbeth no meu dia-a-dia. Todos os dias penso como vou resolver algumas partes. Nos ensaios e no trabalho de casa.

Qual está a ser a maior dificuldade?
As mutações rápidas da personagem. Macbeth tem uma imaginação prodigiosa e portanto qualquer sinal o contamina. Essas mudanças obrigam a automatismos que temos de criar sob pena de o texto perder verosimilhança.

O ator é interpelado pela personagens mas também interpela. Que perguntas faz àquele homem desesperado, obsessivo, manipulável, com ânsia de poder?
A pergunta que mais tenho repetido é «o que é que tu queres fazer, qual é o teu desejo, o teu objetivo?». Fiz essa pergunta tantas vezes que fui chegando à conclusão que talvez Macbeth não queira ser rei. O que na verdade quer é ser contaminado, instigado, convencido, ser posto à prova, e portanto está à mercê das mais diversas intempéries.

Todas a pessoas são capazes das melhores e das piores coisas?
Em graus diferentes, sim. Todas as pessoas têm na sua natureza um lado mais violento e mais negro que pode produzir coisas nefastas. A empatia enorme que a personagem suscita vem do facto de em parte nos reconhecermos nela. Matar é o extremo, mas se olharmos para o mundo de hoje vemos que está cheios de carniceiros e de sanguinários num grau ainda mais exacerbado, alguns com laivos de cobardia.

A partir de certa altura não há retorno ou redenção?
Para algumas criaturas não há redenção possível.

Já pensou no que poderia levar Macbeth a mudar de ação?
Na minha cabeça, a Lady Macbeth. A paixão, que Macbeth tem por ela poderia ser o princípio da mudança ou da incerteza.

O que tem em comum com Macbeth?
A determinação. A imaginação. Trabalho muito a partir da imaginação e gosto de ser contaminado por coisas que aparentemente não têm nada a ver com o espetáculo. Também a preocupação com a lealdade. Macbeth é tudo menos leal mas há um código de honra e uma angústia que tantas vezes o fazem hesitar.

Shakespeare exige o tempo e a destreza que não está ao alcance de todos. Há uma espécie de empoderamento quando se faz Shakespeare. Nas cenas no Hamlet em que lhe aparecia o fantasma do pai, o que ele dizia era de tal forma poderoso e operativo que o trabalho estava desde logo facilitado.

Macbeth tem medos. Quais são os seus?
Têm muito a ver com o caminho que este mundo está a tomar, com o que será o futuro dos meus filhos. Medo também de me poder «fartar» da minha profissão de deixar de me entusiasmar, de ser seduzido. É uma profissão em que a sedução tem de ser operativa. Temo chegar a um ponto em que faça as coisas só para garantir a minha subsistência e a da minha família. Assusta-me pensar que isso pode acontecer.

Emília Silvestre, que conhece bem, é Lady Macbeth. Partilham muitas cenas, silêncios. É essencial existir empatia pessoal?
É possível trabalhar sem empatia mas a empatia abre caminhos e portas. Neste caso junta-se à empatia um conhecimento mútuo que, tratando-se de uma relação tão intensa, facilita o processo. No entanto, trabalhar com alguém que não se conhece tem um lado de mistério que é apetitoso. Aliás, defendo que os atores, tanto quanto possível, devem manter um lado mais sombrio e misterioso.

Que resposta esperam do público?
Ao contrário do que possa pensar-se, Shakespeare é um autor muito popular. Mesmo sabendo que há zonas difíceis de decifrar, as pessoas vêm ver Shakespeare e saem consoladas.

Trabalhar para uma sala esgotada ou para meia dúzia de pessoas – o que muda?
A energia do público contamina o espetáculo e os atores, e ter uma sala esgotada é sinal de contentamento e eficácia. Mas há muitas variantes e muitos enganos nestas leituras. Há espetáculos belíssimos que às vezes correm mal de público e espetáculos pouco interessantes que podem ser um sucesso. Fazer um espetáculo pouco concorrido pode ser estimulante. Um suplemento energético na nossa cabeça que faça ver aos poucos que vieram que valeu a pena.

A peça marca o reencontro com Nuno Carinhas.
Lembro-me do almoço em que o Nuno me convidou, ainda era segredo. Foi em 2015 e disse-me que antes de sair do São João gostava de fazer um Shakespeare.

Qual foi a reação?
De grande discrição e contentamento. Primeiro, por fazer Macbeth, enorme desafio. Depois, por me reencontrar com o Nuno. Desde A Ilusão Cómica, de [Pierre] Corneille, que não trabalhava com ele no São João. Já lá vão quase vinte anos.

Em 1995, foi convidado por Ricardo Pais para trabalhar no São João. Faz o primeiro espetáculo [D. Duardos, de Gil Vicente] no ano seguinte, aceitando o convite contra todas as opiniões.
Todos me diziam para não vir para o Porto «porque lá ninguém te conhece», «porque lá não se passa nada». Ainda para mais, estava na Cornucópia a trabalhar com o Luís Miguel Cintra e até já tinha sido abordado para o trabalho seguinte. Curiosamente, Cintra foi dos poucos que me disseram que poderia ser uma boa experiência. Vim. Porque me apetecia mudar de ares, conhecer outras pessoas, criar algum distanciamento em relação a Lisboa e porque era um enorme desafio reabrir o São João e trabalhar com o Ricardo neste contexto.

Falava há pouco no instinto.
Sigo muito o meu instinto. Nem sempre é certeiro mas a maior parte da vezes não me desilude. E, seguindo o meu instinto, ter vindo para o Porto foi das melhores decisões que tomei na vida. Vim para o Porto numa altura em que ninguém viria mas seis anos depois, ou nem tanto, já toda a gente queria vir ao São João fazer qualquer coisa. Porque se criou aqui uma história de unidade, de bom gosto, de eficácia. No fundo, no fundo, criou-se uma escola.

Macbeth vai condicionar o seu trabalho futuro?
Não pode. Já em junho vou começar um trabalho para televisão. Nunca podemos marcar ou decidir o que vamos fazer.

É possível fazer bem teatro e televisão ao mesmo tempo?
Já fiz mas não é nada aconselhável. O grau de cansaço é de tal forma extremo que estamos a lutar contra os deuses. Quando encenei Neva [Guillermo Calderón] estava a fazer novela. Entrava todos os dias as 8 da amanhã, saía às seis da tarde e ia a correr para os ensaios, que duravam das sete à meia-noite. Saiu-me do corpo. Para o trabalho de junho coloquei como condição que não contem comigo para mais nada nos dias de espetáculo.

Quantas horas consegue trabalhar por dia?
Tenho uma grande resistência, mas há dias e dias. Nesta fase, às vezes tenho esgrima de manhã, ensaio à tarde e, de novo, à noite. Contabilizando os trabalhos de casa – e trabalho bastante em casa –, oito, dez, doze horas, no mínimo.

Que características o distinguem como ator?
Talvez a paixão, a intensidade e a discrição.

Macbeth, que estreia a 1 de junho no Teatro Nacional São João, no Porto

Dizia, antes de a entrevista começar, que Fassbender não é um ator para Shakespeare. O que é ser um ator shakespeariano?
Dizia isso num contexto muito particular, influenciado pelo filme dele [Macbeth, 2015] de que não gostei. Gosto muito do Fassbender mas há atores que não têm a destreza necessária para fazer Shakespeare. Porque é necessária uma relação única com o texto, uma relação poderosíssima com a palavra, com as imagens sugeridas, uma boa dicção e agilidade. Shakespeare exige o tempo e a destreza que não está ao alcance de todos. Há uma espécie de empoderamento quando se faz Shakespeare. Nas cenas no Hamlet em que lhe aparecia o fantasma do pai, o que ele dizia era tal forma poderoso e operativo que o trabalho estava desde logo facilitado.

Em Hamlet tinha acabado de perder o pai. É um exemplo muito especial.
A morte do meu pai, a 15 dias da estreia do Hamlet, foi um momento particularmente difícil. O Ricardo (Pais) ponderou a possibilidade de se adiar a estreia mas isso seria a pior coisa a fazer, até porque corria-se risco de ser um adiamento ad aeternum. Nessa fase, entrei numa espécie de buraco negro. Por sorte, as grandes questões do Hamlet já estavam resolvidas na minha cabeça, nomeadamente a relação com o meu pai na peça e os efeitos de contaminação foram quase nulos. Obviamente, quando comecei a ensaiar parei muitas vezes, em pranto, com a lembrança do meu pai. Mas nunca me deixei ir pela memória afetiva. Considero-a muito falível.

O pai nasceu em Guimarães. Tem ligações fortes ao Norte.
Nunca lá vivi mas passava grandes temporadas em Guimarães e numa aldeia a poucos quilómetros. Eu e a minha mãe é que somos de Lisboa.

Tenho mais dificuldade em entusiasmar-me e, na profissão, é como nas relações amorosas: precisamos de estímulos. Não têm de ser estímulos intensos, de grande paixão, mas preciso que sejam renovadores. Começo a sentir-me estimulado para estar mais vezes do lado de cá, como encenador.

Reconhece em si um lado minhoto?
O lado destemido é a minha costela minhota. A relação foi-se perdendo – excetuando com o clube – mas a minha memória afetiva desses tempos é poderosíssima e muito agradável. Era mesmo um puto feliz. Com muito pouca coisa, porque a minha família era uma família humilde, mas muito feliz.

Começou a trabalhar aos 16 anos.
Por vontade de não ter de depender com ninguém, de romper, de começar a abrir caminho.

Primeiro com o pai, que tinha uma loja de material elétrico em Lisboa.
Mas não só. Fiz muitas coisas. Vendi porta-a-porta, trabalhei numa livraria, no Frágil (nos tempos do Manuel Reis).

O que vendia porta-a-porta?
Bíblias, extintores, alarmes, aparelhos de medir a tensão.

É bom vendedor?
Por acaso, sou. Num grupo de seis vendedores – cinco raparigas e eu – destacava-me. No entanto, nos bairros muito pobres, quando coisa estava já a concretizar-se, cortava o vínculo. Incomodava-me bastante ver aquelas pessoas tão pobres a gastarem dinheiro motivadas pela saúde.

Qual é o melhor argumento para vender uma bíblia?
Era uma bíblia ilustrada, tinha muitas figuras.

É crente?
Sim, sou cristão.

Ganhava o suficiente?
Ganhava o suficiente para ser independente.

Que expetativas tinha esse miúdo?
Andava à procura, numa espécie de uma demanda.

Pensou seguir filosofia. Porquê?
Sempre me interessei muito por filosofia. Lia muito, por vezes autores completamente indecifráveis para um puto da minha idade, como Nietzsche ou Kant. No exame ad hoc para entrar na faculdade saiu Kant, Platão e Descartes. Ia mais bem preparado para Kant, mas o texto vinha em alemão. Nem fui ver as notas. Mas sim, andava numa demanda.

Macbeth, que estreia a 1 de junho no Teatro Nacional São João, no Porto

Já sem a felicidade da infância?
Absolutamente. Na adolescência, houve um rombo muito grande na minha vida. Primeiro, com a morte da minha avó materna aos 52 anos, com a qual tinha uma relação extraordinária e poderosa. Pouco depois, com a separação dos meus pais. Aos 14 anos foram dois vendavais.

Como pode um adolescente controlar/resistir a dois vendavais?
No meu caso, à minha maneira: sempre para dentro. Podia ter-me dado para as drogas até porque os meus rasgos eram sempre na música e tive até uma fase punk, mas não. Foi para dentro.

Música e dança. Esteve no conservatório de dança.
Quatro meses, uma coisa terrível. Procurava-se uma relação narcísica com o corpo que não reconhecia em mim.

«Ser para dentro». Mas também já referiu o lado «histriónico» e até reivindicativo.
Tenho, é verdade. Se bem que agora me apeteça estar longe das confusões. Estou bastante mais cauteloso e mais sensato.

Resumindo, mais velho?
Mais sábio. E mais introspetivo, mais contemplativo.

Onde foi buscar a ideia da representação?
A um anúncio no jornal Sete para um curso e formação de atores no IFICT (Instituto de Investigação e Criação Teatral). Via muito teatro e muita dança e já na escola tinha facilidade em ler um texto e convocar alguma atenção. O que já revelava, creio, o meu lado mais teatral e apaixonado pelas palavras. Foi em 1989. Fiz os testes e entrei. A partir daí nunca mais parei. Ainda ponderei ir para o conservatório, para o curso de teatro, mas comecei logo a trabalhar.

Vinte e oito anos depois, em que fase do percurso profissional se encontra?
Numa fase de muitas dúvidas. Tenho mais dificuldade em entusiasmar-me e na profissão é como nas relações amorosas: precisamos de estímulos. Não têm de ser estímulos intensos, de grande paixão, mas preciso que sejam renovadores. Começo a sentir-me estimulado para estar mais vezes do lado de cá, como encenador. Na construção do edifício.

Nesta fase, o que é realmente importante?
Ter tempo. E espaço. Tempo para meter-me no carro e ir para o meio do campo, para ler, para observar e estar em silêncio.

Como é a sua vida aqui no Porto?
Relativamente tranquila. Ando muito a pé. Por vezes, vou ao fim-de-semana a casa, porque tenho muitas saudades e dois filhos pequenos que precisam muito. Todos eles precisam, mas mais os mais pequenos, sentem muito a minha falta.

É muito reconhecido na rua?
Muito. Normalmente as pessoas são muito agradáveis. Mesmo quando faço de vilão.

O sucesso muda as pessoas ou mostra as pessoas?
Em mim não mudou nada. Se há pessoa que não é deslumbrada, sou eu.

Como se relaciona com a invasão da privacidade e a intrusão?
Nos momentos que faz sentido, porque faço parte de um pacote ou de um produto que precisa de ser promovido, estou lá e cumpro a minha função como ator – e sempre como ator. Fora disso, acho que já nem preciso impor regras. Mas nem sempre foi assim: pouco depois do meu casamento [com a apresentadora e atriz Catarina Furtado], quase corria à paulada as pessoas que tinha sistematicamente à porta de casa. Sou como os lobos, marco território. E às vezes tinha de ser agressivo ou ameaçador.

Da necessidade precoce de se tornar financeiramente independente, o que passa para os [quatro] filhos?
A ideia de que cada conquista tem um valor muito grande e que as coisas se conquistam pelo esforço, pela determinação e pela convicção.

Que dizem eles quando vêm fotos o pai vestido de marinheiro [serviço militar obrigatório, 1986]?
Ficam a saber que o pai adorava o Corto Maltese. Mas depressa percebi que nada tinha a ver com o que imaginava. Como estava na esquadra da NATO do Atlântico, pelo menos viajei. Era o 1328.

Enjoou?
Na primeira viagem, à Escócia, próximo do Golfo da Biscaia, enjoei que nem um cão. Três dias a pão, maçãs e a ponderar sinceramente sair do navio. Mas todos me diziam que não era possível porque, trabalhando com radares, tinha tido acesso a códigos secretos da NATO.

Entrar num país estrangeiro pelo porto de mar é uma coisa do outro mundo. Do ponto de vista humano, uma experiência extraordinária. Pessoas que vinham do fim do mundo, que comiam desalmadamente coisas às vezes incomestíveis porque sabiam o que era ter fome e ficavam meses sem ir a casa.

Voltamos a Macbeth. A peça maldita, associada à tragédia de vários atores. Muitos temem pronunciar-lhe o nome. Chamam-lhe «a Peça Escocesa». Não é o seu caso.
Há dias, no meu Instagram, fiz uma brincadeira a propósito do Macbeth. Era até divertida mas não consegui deixar de pensar nas maldições e cinco minutos depois retirei o post. Tenho um respeito enorme.

Que las hay, las hay?
Ai sim, sim. Não sou muito místico, mas acho que de vez em quando há umas energias.

A estreia está marcada para dia 1 de Junho. Algum ritual especial?
Não uso amuletos mas trago um espanta-espíritos na minha cabeça. Às vezes entro com o pé direito e gosto muito de ter uns bons cinco minutos de silêncio absoluto. Ando pelo palco, pelos corredores, pelos bastidores, para reconhecer o espaço. Antes da estreia fico muito introspetivo. Nessas fases em particular, evito as pessoas mais histriónicas.

Quanto tempo leva a preparar-se para uma peça desta natureza?
Atendendo à situação económica precária, os tempos de ensaio estão reduzidos aos mínimos e os mínimos não são muitas vezes suficientes. Não sou apologista de o ator aparecer no primeiro ensaio já com o texto memorizado. Parece-me um método perigoso. Os atores devem vir razoavelmente preparados, sim, mas não com texto decorado. Nesse sentido, nunca menos de oito a dez semanas. E mesmo assim, às vezes é insuficiente.

O primeiro ensaio ainda é uma novidade?
Depende das casas. Aqui é sempre um reencontro.

Ao fim deste tempo ainda há mistérios?
Ainda, estamos sempre na expetativa.

Como é o meio teatral em Portugal?
Não é um meio fácil, porque está cheio de preconceitos, ódios de estimação, rancores e desconfianças várias. Mas há também pessoas extraordinárias, muitas, do ponto de vista artístico e humano.

Lembra-se do primeiro dia?
Estava cheio de medo. Fazia uma coisa mínima em D. João e a Máscara [de António Patrício] mas ao lado da Eunice Muñoz, do Rui Pedro, do João Grosso. Enfim, estava cheio de medo.

E hoje?
Hoje vou de peito aberto, no sentido de total disponibilidade. Sem medo mas sempre cauteloso.

Qual é o maior pesadelo de um ator?
No meu caso, tem mudando ao longo dos anos. Mas é sobretudo o medo de não conseguir fazer a gestão certa da energia ao longo do espetáculo.

Em Shakespeare, a improvisação é quase impossível. Como é que se resolve uma branca?
Em regra, se num texto clássico se perde o verso, «já foste». Já me aconteceu retardar um verso, uma fala, por não estar seguro do que vinha a seguir, sobretudo quando o débito do texto é mais acelerado ou quando há uma fuga do pensamento – basta uma distração de fração de segundo –, mas ter uma branca completa é raro acontecer.

Depois de Macbeth, o que seria um grande desafio?
Gostava de fazer um filme com um papel estimulante. Há muito que não faço cinema. Falávamos há pouco do Fassbender. Um filme do género do Hunger [Fome, 2008], intenso e certeiro. Ou um filme que falasse das novas gerações, dos seus problemas.