Há quem continue a achar que depressão não é doença. E isso não ajuda ninguém

Notícias Magazine

Texto de Sofia Teixeira | Fotografia de Shutterstock | Infografias de Lília Gomes

António da Veiga tem 80 anos e mil ocupações, entre as quais a de voluntário a acompanhar idosos, alguns bastante mais jovens do que ele. Não sente constrangimento em assumir que tem uma depressão, que tentou o suicídio mais do que uma vez, que toma medicação, que pede ajuda e faz psicoterapia quando acha que está a sentir-se menos bem. Mas António é a exceção, não a regra.

A maioria dos doentes com depressão continua a sentir-se dominada pela culpa, pela vergonha, pelo estigma e até pela incredulidade em relação ao diagnóstico.

Partimos pernas, temos dores de barriga, gripes, diabetes, hérnias discais, AVC, insuficiência renal, asma, cancros. E dizemo-lo livremente, com maior ou menor à-vontade perante a gravidade da situação. Mas se avaliássemos a prevalência da depressão pela quantidade de pessoas que a admitem, poderíamos julgar que é um fenómeno raro. As estatísticas, porém, contam uma história muito diferente: o último censo de morbilidade psiquiátrica (2010-2011), realizado em mais de cinquenta países, estima que a prevalência de depressão seja de oito por cento entre a população adulta mundial.

Não, não estamos perante uma doença rara. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que a depressão afete mais de 300 milhões de pessoas no mundo inteiro, razão pela qual definiu a doença como tema do próximo Dia Mundial da Saúde, a 7 de abril, e lançou a campanha Lets Talk (Vamos Falar), que defende que conversar abertamente é a melhor forma de entender a doença e eliminar o estigma que ainda lhe está associado.


VAMOS FALAR DISSO?

É urgente normalizar a doença mental, depressão incluída – Let’s Talk, como apela a OMS. Porque enquanto não falarmos sobre isso, enquanto não formos tão informados sobre a doença mental como somos, todos os invernos, sobre a prevenção da gripe, há pessoas doentes, num sofrimento indizível, porque não acreditam que estejam doentes, porque sabem que estão doentes mas não querem ir ao «médico dos doidos»,porque não querem tomar medicamentos que «viciam, engordam e não fazem nada» e porque sabem que quem se queixa desse tipo de coisas são pessoas «fracas da cabeça». Informações sobre a campanha aqui.


E é isso que António faz: falar. Por isso pertence ao grupo Vozes de Esperança, que faz apresentações públicas (em escolas, por exemplo) sobre a experiência de viver com um problema de saúde mental. Ao mesmo tempo que, através deste diálogo, dá um passo em frente no seu processo de recuperação, transmite informação pertinente que, espera-se, ajudará a aumentar a informação e a reduzir o preconceito.

Na apresentação que costuma fazer, António conta que, quando andava na escola primária, mesmo não sabendo ainda o que era o suicídio, queria morrer. E que, pelos 18 anos, a mãe o chamou à atenção por causa da tristeza e irritabilidade sem motivo. «Ralhou comigo e não pensou no que poderia haver em mim que causasse essa atitude. » Apesar de dizer que não sentiu muito o estigma, admite que a ignorância generalizada dos outros o prejudica. «Acusam-me de ter mau feitio. Isso magoa-me.»

Magoa-o a incompreensão que nasce do preconceito. Porque o preconceito, por definição, não se refere às caraterísticas das coisas, mas antes à leitura social, quase sempre errada, que é feita delas. E o estigma associado à depressão nasce, como todo o estigma, do desconhecimento e da tendência inata que temos para produzir explicações para o que não percebemos.

Combater a falta de informação

Ricardo Gusmão, psiquiatra e presidente da Eutimia – Aliança Europeia contra a Depressão em Portugal, garante que a falta de informação se deve sobretudo a um fator: as políticas de promoção da saúde mental são inexistentes em Portugal. «Talvez por falta de literacia em saúde mental dos próprios decisores», aponta.

E diz que é essencial educar as pessoas com sintomas para não levarem mais de seis meses a um ano a irem ao médico. «Pode parecer muito mas, neste momento, o tempo médio entre os primeiros sintomas de depressão e o pedido de ajuda são quatro a seis anos. E isso é muito tempo.» Como em quase todas as outras doenças, o diagnóstico precoce pode fazer a diferença.

A esta falta de literacia acresce o problema de não haver noção dela. Está instalada e profundamente enraizada a convicção oposta, que é perigosa: o não deprimido julga que sabe perfeitamente o que o deprimido sente. Afinal, também ele às vezes não tem vontade de se levantar quando o despertador toca. E também ele se sente triste e desanimado em alguns momentos.

«O que sente o deprimido são coisas que fazem parte da vivência de todas as pessoas em alguns momentos, e tendemos a atribuir a nós próprios a responsabilidade de contrariar isso. Não percebemos que, para quem está doente, a capacidade de agir está dominada pela doença», diz Filipa Palha, professora da Universidade Católica no Porto.

Quando a depressão surge associada a uma perda ou a um luto, as pessoas compreendem e aceitam melhor, diz Filipa Palha. Mas nem sempre é isso que acontece.

A psicóloga sabe do que fala: filha, neta e irmã de psiquiatras, presidente fundadora da Encontrar+se – Associação para a Promoção da Saúde Mental, coordenadora da primeira campanha nacional de combate ao estigma e à discriminação da doença mental, em 2007, o movimento UPA, Unnidos para Ajudar, anda há décadas nesta luta.

Em primeiro lugar, com os próprios pacientes. «O estigma começa com o autoestigma: o primeiro preconceito é o da própria pessoa, que acha que não tem justificação para se sentir assim e se culpabiliza.»

Quando a depressão surge associada a uma perda ou a um luto, as pessoas compreendem e aceitam melhor, defende Filipa Palha. Mas nem sempre é isso que acontece. «Como com outras doenças, pode acontecer independentemente dos eventos de vida. E ninguém pergunta a um doente oncológico: “Como é que tens um cancro, se tens uma vida ótima?” Temos de tratar a doença mental como tratamos a doença física.»

Toda a gente tem uma opinião

«Só está assim porque quer», «isso é coisa de quem tem tempo», o deprimido «é um fraco, que devia lutar conta isso», «doença de gente rica». Os preconceitos sucedem-se. E frequentemente o doente deprimido ouve outros dizerem-lhe coisas que – apesar de bem-intencionadas – roçam a perversidade. A pior talvez seja «tens de ter força de vontade», o que encerra em si um paradoxo.

«A força de vontade é a função mental que está mais afetada na depressão. A pessoa não pode ter força porque é precisamente isso que está deficitário, que está quebrado», esclarece Ricardo Gusmão. «São conselhos que provocam no doente um sentimento de invalidação do seu estado, uma enorme frustração, grande revolta, e podem fazê-lo sentir-se ainda mais inadequado e mais doente.»

Por essas e por outras, Joana, 45 anos, começa a conversa com um aviso: aceita contar a sua história se for possível não revelar a identidade. Para ela a depressão manifestou-se por um cansaço físico extremo, dores no corpo e uma falta de concentração que a levava a sair de casa para ir buscar um dos filhos à escola e a acabar, sem saber como, à porta da escola do outro. Uma exaustão e uma falta de energia extremas que teimou em ignorar. Até que um dia, mais de um ano depois, o corpo se recusou a mexer mais e foi levada pela família a uma consulta de psiquiatra, embora achasse que o seu problema não teria nada de mental.

Está de baixa por doença há dez meses e na empresa ninguém sabe porquê. «Exatamente por causa do estigma. Porque sei que se dissesse que estou com uma depressão os comentários da chefia e dos colegas seriam qualquer coisa como “não tem é vontade de trabalhar”.»

Mesmo entre família há olhares desconfiados, batem-lhe na tecla de que a vida tem de continuar. Não acreditam que esteja verdadeiramente doente, com uma doença «de verdade». «Acho que a falta de credulidade das pessoas também parte de não haver um exame que confirme a doença. Como não há uma análise ao sangue que dê positivo e é uma doença mental, as pessoas acham que estamos assim por opção.»

O facto de não serem usados meios complementares de diagnóstico que permitam «comprovar a doença», como nas doenças físicas, facilita as dúvidas sobre a precisão do diagnóstico

Hoje sabemos que o cérebro de um doente deprimido não é igual ao de uma pessoa sem depressão. Através da tomografia por emissão de positrões (PET) e da ressonância magnética funcional (fMRI) são visíveis alterações da atividade neuronal nos doentes com depressão.

Mas estes meios complementares ainda não estão disponíveis na prática clínica. Isso não quer dizer que o diagnóstico – feito através de exame clínico e entrevista – não seja muito exato, mas o paciente parece tender a confiar mais em máquinas do que noutras pessoas.

«O facto de não serem usados meios complementares de diagnóstico na prática clínica, que permitam “comprovar a doença”, como acontece com algumas doenças físicas, leva a que as pessoas tenham mais dúvidas sobre a precisão do diagnóstico e mesmo na sua aceitação», revela o psiquiatra Diogo Guerreiro. «E há casos em que um diagnóstico de depressão coloca as pessoas num estado de grande angústia e descrença porque têm ideias erradas ou nem sequer não acreditam que a doença exista.»

O estigma sobre a depressão é como um vírus

E os vírus alastram. Há um efeito de contágio que toca tudo o que está relacionado com a depressão – e os profissionais de saúde que trabalham na área não são exceção. Quem nunca ouviu dizer que os psiquiatras são os médicos dos loucos?

Quando um paciente se senta pela primeira vez na cadeira à sua frente, referenciado por outro médico, pelo psicólogo ou por iniciativa própria, Diogo Guerreiro já sabe que é provável ouvir esta frase no início da consulta: «Doutor, nunca pensei vir ao psiquiatra.» «Isto não deve ser ouvido por outros médicos de outras especialidades e mostra bem o estigma associado à psiquiatra.»

É frequente ler que «os portugueses tomam antidepressivos em excesso». Mas a designação «antidepressivos» é um saco grande onde cabem tranquilizantes, hipnóticos, sedativos…

O especialista conhece bem o rol de preconceitos em torno da área: «Os psiquiatras põem o doente pior, ir a um psicólogo é a mesma coisa que falar com o amigo no café, os medicamentos não fazem nada…»

É frequente ler que «os portugueses tomam antidepressivos em excesso». Mas a designação «antidepressivos» é um saco grande onde cabem também estabilizadores do humor, tranquilizantes, hipnóticos e sedativos. Há uma confusão instalada sobretudo entre antidepressivos e benzodiazepinas – um grupo de medicamento vulgarmente chamados de «calmantes».

«Há imenso estigma em relação aos tratamentos biológicos da depressão», diz Ricardo Gusmão. «Os antidepressivos não causam dependência, não dão efeitos secundários que impeçam uma vida normal e não alteram a personalidade. Mas o discurso – até de algumas autoridades de saúde – não distingue antidepressivos e benzodiazepinas e alguns profissionais de saúde não estão bem informados sobre o peso que estas podem ter sobre os pacientes.» ♦


DE PAÍS PARA PAÍS

O estigma sobre a depressão não é igual em todo o lado. Muda o contexto cultural, mudam as caraterísticas do mesmo. Um estudo de 2007 realizado pela investigadora brasileira Virgínia Moreira, da Universidade de Fortaleza, avaliou as associações feitas à depressão no Brasil, no Chile e nos EUA e concluiu que, havendo preconceitos comuns, há algumas variações culturais. Os EUA foram o único dos três países onde os entrevistados se sentiam estigmatizados principalmente por serem incapazes de produzir. O Chile – defende a autora que por causa das suas caraterísticas geográficas que estimulam o isolamento – foi o único onde a depressão foi associada tão fortemente à vergonha e à falta de privacidade. Já no Brasil, surgiu um tipo de estigma que não foi apontado em nenhum dos outros dois países e que revela a famosa cultura brasileira do «dar um jeito» em tudo: os entrevistados apontaram o estigma de se sentirem incapazes de encontrar soluções para evitar o próprio estigma.