Emprestas-me a tua família?

Notícias Magazine

Era uma espécie de mistério para mim. Ou uma realidade distante, talvez. «Os amigos são a família que escolhemos.» A frase causava-me alguma estranheza, um misto de «credo, que exagero», com «raios, há pessoas com famílias mesmo estranhas». Eu não entendia bem aquilo. Quer dizer, entendia o significado e todo o tratado que o sustenta sobre os valores da amizade a de como esta se pode tornar tão estruturante e segura como uma família. Isso para mim era claro. O que eu não percebia, não conseguia ter empatia suficiente para interiorizar, é como é que a possibilidade de escolher uma família podia ser, para tanta gente, um alívio quando comparada com a árvore genealógica onde deu fruto.

«Havias de ter a minha família e logo vias se falavas assim.» Bem sei. Bem sei que tenho uma fortuna danada em ter uma família de ninho e aconchego, de proteção e valores, a que posso recorrer quando preciso. E onde posso dar quando precisam de mim. Não é bem uma famiglia, à italiana, ou uma espécie de clã escocês. É só uma família beirã, que gosta da casa da aldeia, de pão e azeitonas na mesa e couves no natal, com avós que cuidam dos netos pequenos e lhes dão uma moeda para pôr no mealheiro e netos que agora conduzem os avós a consultas porque já lhes custa conduzir e não se entendem nos corredores do hospital. E isso, eu sei, não é coisa que toda a gente tenha. Toda a gente devia ter direito a ter. Mas nem todos têm. Nem todos tiveram.

Com o tempo, com as histórias que fui conhecendo e de que ouvia falar e com que me chocava, lá fui entendendo. Isto não tem grande ciência, na verdade. Não é preciso ser sociólogo, psicólogo familiar ou entendido em relações parentais de longa duração para perceber por que carga de água é que há tanta gente que prefere, de longe, os amigos que foi conquistando ao longo da vida, em vez dos pais e mães, madrastas e padrastos, irmãos e irmãs que lhes calharam em sorte. Se, contas feitas e anos vividos, depois de todas as hipóteses que demos e nos deram também, continuamos a achar que não é ali que pertencemos, não é ali que fazemos falta ou nos desejam bem, então é capaz de valer a pena escolher outro caminho. Fechar algumas portas, na esperança que assim passemos a ter disponibilidade para abrir outras janelas e deixarmos que outras famílias entrem na nossa vida. E nos deixem entrar nas delas.

Isto nada tem a ver com os laços de sangue, entenda-se. Os nós da família não se atam apenas em cima de troncos comuns de apelidos e genética. Pai e mãe não são apenas os que deram o material biológico. São os que cuidam e amam. Os que, pela sua responsabilidade e relações que assumiram, deviam saber cuidar e amar dos filhos do outro, mas que, algures ao longo do caminho não conseguiram manter esse foco. Ou que apenas souberam dar o calor de um cobertor mas não deram o calor de um abraço. Apenas souberam dar o prato de comida mas não conseguiram dar o aconchego de uma refeição partilhada. Apenas souberam dar a educação para ensinar as letras, mas nunca foram capazes de ler uma história para adormecer.

«Os amigos são a família que escolhemos.» Mas não é com os amigos que se vive anos a fio, não são os amigos que deviam proteger e desleixam o cuidado, não são os amigos que pensam em filhos de primeira e filhos de segunda, não é junto dos amigos que se acumulam décadas de coisas que ficam atravessadas na garganta, que não se disseram na hora em que foram vividas e que vão pesar toda uma vida. Com os amigos é diferente. Os amigos são para as ocasiões. As famílias deviam ser para sempre. Mas há algumas que não merecem esse nome. «Família» devia ser um estatuto que se conquista por mérito, não por herança.