Eusébio, a lenda continua a crescer

Notícias Magazine

No próximo dia 23 estreia-se um filme de tributo ao maior jogador da história do futebol português. Mas Eusébio – História de uma Lenda, realizado por Filipe Ascensão e produzido por Sandra Ferreira, filha do futebolista, leva também a assinatura do Pantera Negra. Era este o filme que Eusébio gostaria de ter deixado pronto. E é também mais um dos muitos capítulos de uma série de homenagens que já lhe fizeram, dos livros ao teatro, da ilustração à poesia.

Eusébio tratava Filipe Ascensão como um filho. É a filha do jogador, Sandra Ferreira, quem o garante. Eusébio – História de Uma Lenda é a primeira obra realizada por este fã lusodescendente, que conviveu muitos anos com o Rei. Mas o filme tem uma particularidade – tem também a assinatura do próprio Pantera Negra. Este era o retrato, o legado que quis deixar, um sonho antigo do futebolista. «A minha grande mágoa é ele ter ido embora antes de o filme terminar. Ele queria muito ter visto este filme que ambos idealizámos», diz o realizador com um português ainda com sotaque francês.

O documentário não engana ninguém: é uma homenagem ao mais lendário futebolista português no ano em que cumpriria 75 de vida (nasceu em 1942), com testemunhos do próprio e de alguns cúmplices admiradores (uma lista que inclui Sir Bobby Charlton, Hilário, Figo, Cristiano Ronaldo, Simões, Rui Costa e tantos outros). Tem também uma aposta substancial em imagens de arquivo e uma viagem a Moçambique com Eusébio.

 

Filipe nasceu em Paris há 34 anos e os pais, da Beira Alta, nunca o incentivaram a gostar de futebol. «O meu pai nunca ligou muito à bola, a paixão nasceu mesmo comigo.» O cinema foi igualmente um caminho, estudado em Paris, a par de cursos de interpretação. O documentário sobre Eusébio foi uma das primeiras ideias que teve.

A mitologia em torno do Pantera Negra foi sedutora para um jovem parisiense que nunca quis deixar para trás a herança portuguesa. Filmar com Eusébio foi um sonho que começou há 14 anos, mas nessa altura havia um problema: não conhecia o homem. Foi através de um primo que tinha um amigo que tinha o telefone de Eusébio. E foi assim que conseguiu. Um dia apanhou um avião para ir almoçar com o seu ídolo na Adega da Tia Matilde, o restaurante lisboeta que foi a segunda casa do Rei. «Depois tornámo-nos amigos. Tivemos uma proximidade muito grande e almoçávamos quase diariamente, depois de eu vir para Lisboa. Por razões de produção, o projeto acabou por não arrancar nessa altura, apenas em 2010. Quis muito fazer este filme para mostrar uma nova faceta dele que as pessoas não conheciam. Em frente aos media era uma pessoa muito tímida, mas ele não era assim. Quando ele falava na intimidade, todos ouviam! E isto é o que está neste filme que fizemos juntos, o Eusébio na primeira pessoa…»

 

Entre Eusébio e este jovem houve uma troca de confiança. Eusébio deu-lhe a sua história e Filipe, em troca, deu-lhe a sua palavra. Mesmo sem currículo feito, o craque confiou na visão do realizador. Sempre acreditou que era com ele que a sua história poderia ser levada ao cinema. Filipe acredita que o facto de o filme ter sido pensado para o cinema foi a grande atração do Pantera Negra. Na verdade, Eusébio gostava e ia muitas vezes ao cinema. Eusébio, Pantera Negra, filme espanhol de Juan de Orduña, de 1973, com a participação do próprio, terá sido malfadado mas não lhe matou o desejo.

Este Eusébio – História de Uma Lenda foi feito inteiramente com o investimento pessoal do realizador e através de investidores privados. Sandra Ferreira confirma que a simpatia em torno da figura do pai abriu muitas portas para a cedência de imagens de jogos em que entrou. «Nos últimos anos da sua vida, o meu pai estava muito entusiasmado com o projeto. Depois de nos deixar, também nos envolvemos muito para que tudo se concretizasse», diz a filha mais nova de Eusébio. O realizador não está muito preocupado com a «clubite aguda» atual, que pode afastar muitos adeptos que não sejam benfiquistas. Filipe acredita que fez um filme para lá das preferências clubistas. O que o fez ficar obcecado com Eusébio foi um episódio que viu em criança num vídeo da final da Taça dos Campeões entre o Benfica e o Manchester United: o avançado remata e o guarda-redes defende e, em seguida, Eusébio vira-se e aplaude. O fascínio começou aqui. «São atitudes que marcam.»

«Agora que estou a acabar o filme e a ver todo este material de arquivo percebo melhor porque o Eusébio quis mesmo fazer este filme – aqui está o legado da sua vida!» O objetivo era retratar o homem para lá do jogador. Ascensão garante que está lá a intimidade do homem como nunca se viu. Um filme que lhe saiu do pelo horas obsessivas a pesquisar imagens e a necessidade de mudar de vida – saiu de Paris para vir viver para Lisboa a fim de não largar por um minuto o trabalho de amor. «O Filipe acompanhou muito o meu pai na sua vida, tiveram uma relação muito próxima», diz Sandra Ferreira. «O filme é mesmo aquilo que o meu pai queria!» Juntamente com a irmã Carla, Sandra está à frente da Associação Art Eusébio Heart, criada para preservar o mito do ídolo português.

Porque não há mais nenhum objeto de cinema feito sobre esta lenda? Filipe Ascensão tem uma teoria. «Acho que ninguém se terá interessado em fazer um filme com ele porque o seu português não era assim tão bom. Nunca tive esse preconceito. Só as pessoas que têm grandes diplomas é que podem falar para uma câmara!?» Para o realizador, que assume ser do Benfica («tantas horas ao lado dele era impossível não ser benquista»), o importante é perceber que este projeto foi uma viagem emocional para Eusébio.

Além do filme prestes a estrear, a figura do Eusébio não tem deixado indiferentes artistas das mais variadas áreas. O jogador foi um mito para além dos relvados. O poema escrito por Manuel Alegre (e lido pelo próprio nas cerimónias fúnebres do jogador) parece resumir tudo. Um poema que ganhou culto e que sintetiza o brilho de um dos maiores símbolos de Portugal e onde surge a ideia de que os seus golos se transformavam em poema. Para o político poeta, o amigo era um traço de união. «Ele era um símbolo de Portugal e de Moçambique!», diz Alegre. «O Eusébio uniu-nos depois de a Guerra Colonial nos ter separado. Foi um símbolo da união e da fraternidade, da lusofonia.»

 

Ana Rangel, produtora e promotora de espetáculos, acreditou que a simbologia de Eusébio poderia dar um musical de sucesso e escreveu em 2015 Eusébio – Um Hino ao Futebol, estreado nos coliseus de Lisboa e do Porto. Para ela, tratava-se de um espetáculo que defendia a garra do goleador. A garra, a vontade e a sua luz. «O espetáculo tinha uma inevitável conotação com o SLB e isso, de facto, de alguma forma afastou portugueses de outros clubes, o que é uma pena. A história não se pode apagar, e ainda bem. Eusébio guardava o Benfica no coração, mas foi um português que elevou o nome de Portugal aos quatro cantos do mundo, e dos momentos que nos ofereceu ao serviço da seleção nacional nenhum português se deveria esquecer.»

De uma outra forma, através de uma moeda comemorativa, cunhada pela Casa da Moeda, André Carrilho também trabalhou artisticamente a memória do jogador. «Suponho que eu olhe mais para o Eusébio como mito e ideal do que pessoa de carne e osso», diz o ilustrador sobre a forma com a sua geração vê o Pantera Negra. «A primeira vez que fui a Londres, em meados dos anos 1990, sempre que dizia que era português respondiam-me “oh, Benfica, Eusébio!” O nome dele foi o meu primeiro passaporte enquanto português, um salvo-conduto que servia em todo o mundo e nos retirava um pouco o sentimento de inferioridade em relação às outras culturas europeias.»

 

Nos livros, José Jorge Letria imaginou uma história infantil. O Rei da Bola (Texto Editora) foi a forma que o escritor encontrou de contar a história do mítico jogador aos mais novos. Uma história ilustrada por Alberto Faria onde o Rei Eusébio sai da sua estátua, ganha vida e conta o seu percurso a um grupo de amigos. Na semana passada, a editora Guerra & Paz lançou O Kaputo Camionista e Eusébio, do angolano Manuel Rui, a história de uma boleia de um pendura num camião no Lubango (Sá da Bandeira) de 1966. Uma viagem que decorre durante o relato do jogo Portugal-Coreia do Norte no Mundial de Inglaterra de 1966. A inspiração de Eusébio além-fronteiras…

Voltando ao cinema, a indigesta mistura entre ficção e documentário que foi Eusébio, Pantera Negra não ajudou muito a obra filmada com financiamento espanhol. O filme de 1973 foi engolido pelo 25 de Abril do ano seguinte e mesmo a sua reposição nos anos 1980 no Coliseu dos Recreios foi ignorada. Jorge Leitão Ramos, crítico e historiador de cinema português, lembra-se bem dele: «Fez três esquálidas semanas perante a indiferença do público e os apupos da (pouca) crítica que se deu ao trabalho de sobre ele falar.»

 

MAIS CINEMA EM BREVE

António Pinhão Botelho, filho do cineasta João Botelho, começará em abril a rodar a sua primeira longa-metragem. Ruth é a história de como Eusébio não foi para o Sporting. O jovem realizador filmará em jeito de filme de espiões a chegada de Eusébio a Portugal, entre 1960 e 1961. Segundo ele, é um retrato de um país no pior dos anos do salazarismo. «Todo o filme é uma guerra aberta entre os clubes lisboetas. Entre os dirigentes, através de influências dos diferentes órgãos do regime, dos adeptos e das suas “bocas” nos cafés lisboetas e de Lourenço Marques. Eusébio chega quase de paraquedas e vê-se envolvido num país absorto numa picardia infantil, ao mesmo tempo que o mundo lá fora muda.» Ruth Malosso seria o nome com o qual aterrou em Portugal, um estratagema usado pela direção do Benfica para não chamar a atenção em Alvalade. A produção de Paulo Branco deverá chegar aos cinemas no próximo ano.