Drama global, dilema europeu

Nos últimos anos, sucessivas vagas de refugiados chegaram à Europa. Só em 2015 terá sido mais de um milhão de migrantes. Homens, mulheres e crianças obrigados a fugir de guerras, misérias e morte anseiam por respostas mais céleres. Quem está no terreno a ajudar lamenta não conseguir fazer mais. O que falha? Como se pode melhorar a ajuda humanitária a quem mais precisa?

 

No campo de refugiados de Skaramagas, nos arredores de Atenas, Grécia, a distribuição de comida é feita pela marinha. Três vezes por dia, crianças, mulheres e alguns homens dirigem se a um pavilhão para levarem a sua parte. Alguns alimentos voltam a ser cozinhados com as especiarias e os sabores tradicionais de quem vive nos contentores. O pão acaba muitas vezes no mar, servindo de isco para a pesca à linha dos homens que, contemplando o Mediterrâneo, aguardam em silêncio. Outros montaram lojas provisórias de venda de alimentos e pequenos espaços onde cozinham o falafel. Outros, ainda, regressam ao campo ao fim da tarde carregados de fruta e legumes comprados na cidade. Romãs para as crianças, pimentos vermelhos para secar ao sol. Cheiros e sabores que lhes lembram a casa que tiveram de deixar.

Neste campo vivem 2200 adultos, mil crianças e jovens. Sírios, iraquianos, curdos, afegãos, libaneses. As casas são contentores partilhados por duas famílias. Há tendas montadas para cinquenta pessoas que aguardam por um desses blocos. É o segundo inverno que ali estão. No meio do campo constrói se um centro comunitário com biblioteca, salas, um café. As crianças brincam num parque infantil improvisado. Fazem pulseiras de lã, correm, tentam passar o tempo. Uma mulher libanesa com a filha bebé ao colo, doente, pergunta a uma voluntária pelo marido que foi tratar de papelada. Não há respostas para as inquietações dela.

No contentor onde a Cruz Vermelha se instalou, crianças aguardam as vacinas que terão de tomar para frequentar a escola grega. Ao fim da tarde, quando enfermeiros e médicos deixam o campo, este espaço é usado para aulas de dança organizadas por um grupo de voluntárias. Arrumam se as mesas, as cortinas brancas, e o espaço clínico dá lugar à música e à dança de meninas, adolescentes e mulheres. Os risos, os saltos, o movimento, tomam conta do tempo e do lugar, e esquecem se os caminhos difíceis percorridos para ali chegar. Num contentor deste campo, vedado com arame farpado, dança se livremente. A ajuda humanitária chega de vários países. Em agosto do ano passado, Sofia Lobo, 50 anos, atriz da companhia A Escola da Noite, de Coimbra, partiu para Skaramagas como voluntária da organização não governamental (ONG) norueguesa A Drop in the Ocean. Regressou em dezembro para voltar a ajudar gente que não lhe sai da cabeça e do coração. «Há muitos refugiados a viver em casas ocupadas e sem aquecimento, há muitos a viver e a sofrer em tendas por toda a Grécia», diz a atriz. «Muitos morrerão de hipotermia, tenho a certeza. Muitos, depois de perderem tudo – casa, família, um país, a dignidade – estão atolados num gelo doloroso. A Europa pela qual deram tudo o que tinham, e na qual acreditaram, trata os de um modo sub humano.»

Sofia trabalhou sobretudo com crianças e jovens. «Foi triste encontrá los de novo ali, muitos sem perspetivas de data ou local de destino. Passam grande parte do dia em filas nas quais têm de se identificar sempre. Os garotos, e são muitos, não vão à escola, estão muito mais agressivos e impacientes, as pessoas não trabalham, não se sentem úteis, têm as famílias dispersas por vários países. Não sei como aguentam. Não sei como não se revoltam mais.»

Andreia Cardoso, 24 anos, licenciada em Marketing e Publicidade, também esteve em Skaramagas pela mesma ONG, entre agosto e dezembro. As notícias sobre refugiados levaram na a fazer as malas. Quis ajudar a preencher dias cheios de nada. Dinamizou atividades para raparigas, liderou uma equipa de voluntários do mundo inteiro. «Estas pessoas apenas precisam que lhes devolvam a dignidade, que desapareceu ao longo de todo este doloroso percurso onde foram deixadas e esquecidas», diz. Mas não é fácil. Este trabalho exige mais de nós, exige sermos, de facto, humanos.»

Em contextos de ajuda humanitária, tentar fazer tudo a partir de quase nada é o dilema do médico anestesista e intensivista Gustavo Carona, há oito anos nos Médicos sem Fronteiras (MSF). «É tentar agarrar os resquícios de humanidade que ainda sobram e catapultá los para salvar vidas.» Fala em dor quando vê que a vida não tem o mesmo valor em diferentes partes do mundo. «Mas sentir que podemos, de alguma forma, ambicionar equilibrar estes pratos da balança é o que me leva a fazer a mala e partir.»
Num centro de acolhimento do Serviço Jesuíta aos Refugiados em Atenas, onde estão voluntários portugueses da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), há famílias ainda mais fragilizadas. Vivem ali cerca de quarenta pessoas. Enquanto as crianças mais velhas saem de manhã para a escola grega, as mais novas participam em atividades educativas e alguns adultos aprendem inglês – a educação não formal é uma das prioridades da PAR. A poucos quarteirões deste centro de acolhimento, um antigo hotel foi ocupado por refugiados que recusam a ajuda prestada pelas ONG e procuram, pelos próprios meios, resolver a sua vida.

Em maio de 2016, a Cimeira Humanitária Mundial das Nações Unidas, proposta pelo então secretário geral Ban Ki moon, resultou em três mil compromissos e iniciativas que compõem uma ambiciosa agenda para a humanidade. Nesta cimeira, a União Europeia e os Estados membros apelaram à criação de uma parceria global capaz de respostas humanitárias mais eficientes e efetivas. Desde abril de 2016, a Comissão Europeia concedeu 186 milhões de euros a agências da ONU e ONG destinadas a cuidados de saúde, abrigo, educação não formal, cuidado de menores não acompanhados e apoio financeiro de refugiados, especialmente na Grécia.

Mas para quem está no terreno e presta ajuda humanitária em contextos de conflito, como os MSF, a reflexão e crítica necessária sobre a ação humanitária ficou aquém do esperado, face às violações dos tratados e leis internacionais e dos direitos humanos que têm submetido populações migrantes e refugiadas a tratamentos desumanos. Os MSF abandonaram, por isso, a cimeira que decorreu em Istambul.

Para a socióloga Marisa Matias não se vive uma crise dos refugiados, mas sim «uma crise humanitária gigante em que o principal rosto são os refugiados». Desde 2014 que a eurodeputada representa a delegação europeia para as Relações com os Países do Maxereque e visita regularmente campos de refugiados na Jordânia, Líbano e Síria para perceber as causas e os desafio clara agenda política de natureza securitária. A solidariedade e a tentativa de adotar mecanismos comuns foram abandonadas antes de começarem. O mais grave é que não falamos de falta de recursos no caso da resposta europeia – os montantes dedicados ao acordo com a Turquia são disso um exemplo claro –, mas antes de uma agenda política distinta da que seria necessária para responder a esta crise», refere. Na sua opinião, a União Europeia está a tratar mal do assunto, uma vez que, sublinha, «nenhuma medida de resposta real foi acionada e não há um verdadeiro empenho no combate às causas.»
Segundo uma porta voz da Comissão para as Migrações e Assuntos Internos, a Comissão Europeia apelou repetidamente a todos os Estados membros para que respondessem aos seus compromissos e se solidarizassem com os Estados membros mais afetados pela crise dos refugiados. «Até agora, mais de 7500 pessoas foram realocadas e este número aumenta todos os meses», acrescenta aquela responsável de Bruxelas.

Mamadou Ba, dirigente da SOS Racismo, chama a atenção para a urgência de adequar os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais de gestão dos migrantes refugiados. Mas, independentemente do empenho e da intervenção humanitária da sociedade civil, o problema «ultrapassa a generosidade do assistencialismo e exige respostas públicas fortes e estruturais dos Estados.»

Rui Marques, coordenador da PAR, admite que, muitas vezes, não é possível resolver o essencial como, por exemplo, o estatuto de refugiado num país desejado. «Trata se de um trabalho que, acima de tudo, procura restituir dignidade e restaurar a esperança. É sempre possível cuidar e animar, particularmente os mais vulneráveis, entre os quais as crianças», afirma, reforçando o balanço positivo do acolhimento de refugiados em Portugal. Dentro de semanas, a PAR acolherá membros da minoria religiosa yazidi.

Afirmando não se tratar de política mas de responder a um imperativo humanitário, a Comissão para as Migrações e Assuntos Internos realça que os fundos europeus de ajuda humanitária e reforço da segurança têm sido usados para apoiar as autoridades gregas no terreno. Mas isto não é suficiente, defende a socióloga Marisa Matias. «No caso dos refugiados, e apesar da rejeição pública em muitos países, as respostas desadequadas, insuficientes e tardias das autoridades têm convivido com movimentações significativas de pessoas que têm dedicado parte das suas vidas a tentar minimizar os impactos desumanos», diz Marisa Matias. O assunto é delicado. «Há muita dignidade presente num quadro de decisões desumanas e indignas. Agora, estas deviam ser uma parte complementar e não o centro da resposta. É nos maiores casos de dignidades que se põe a nu o nosso total falhanço coletivo», diz Marisa Matias.

Bruno Sena Martins, cocoordenador executivo do programa doutoral de Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, realça a importância de se reconhecer que na discussão política e no debate público é essencial que «a Europa se confronte com a necessidade de pensar o mundo e as crises contemporâneas fora de uma perspetiva eurocêntrica». Há seres humanos, há vítimas de conflitos. Gente que luta, sobrevive e tenta dar um significado às suas vidas «a partir da riqueza das suas referências culturais e dos saberes que forjam e mobilizam para dar sentido a um mundo convulso».

O campo de Skaramagas está a tornar se um lugar cada vez mais permanente, e não o lugar temporário imaginado. Percebem se as tensões, o desalento, as vidas suspensas. Mas as mulheres dançam, enquanto lá fora a União Europeia, o Danish Refugee Council e muitas ONG gerem a sua vida, a sua identidade, o seu futuro.

 

 

ACOLHIMENTO E INTEGRAÇÃO
Há neste momento 902 refugiados de dez diferentes em Portugal (a maioria sírios e eritreus), ao abrigo do Programa de Recolocação. Estão espalhados por 82 municípios. O acolhimento de refugiados em território nacional é uma das questões mais prementes para o Alto Comissariado para as Migrações (ACM). Em 2016 foi criado o Gabinete de Apoio à Integração de Refugiados, os Centros Nacionais de Apoio à Integração dos Migrantes passaram a disponibilizar assistência aos refugiados, e o serviço de tradução telefónica passou a ter tradutores de árabe, tigrínia e curdo. O ACM produziu um kit de boas vindas a Portugal para refugiados, elaborou um manual de procedimentos para as instituições de acolhimento. A Direção-Geral da Saúde produziu um manual com recomendações em termos de saúde, incluindo questões nutricionais e alimentares. O ACM é uma das entidades do Grupo de Trabalho da Agenda Europeia das Migrações e apoia as entidades de primeira linha que acolhem refugiados. «No seio do grupo de trabalho da Agenda Europeia das Migrações estão representados diversos serviços públicos que asseguram uma resposta integrada do ponto de vista do acolhimento e da integração.

O facto de termos representantes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, da Direção-Geral da Educação, da Direção-Geral da Saúde, do IEFP, da Segurança Social, entre outros, garante uma resposta integrada às questões que a integração das pessoas refugiadas suscita», diz Pedro Calado, alto comissário para as migrações.