Como as telenovelas brasileiras ditaram as tendências de moda

Texto de Maria João Martins

Em Portugal, o pecado não morava ao lado. As viúvas amortalhavam-se atrás de um lenço preto para o resto das suas vidas (e a Guerra Colonial produziu tantas e tão novas) e o casaco de malha, sem forma, constituía um sinal exterior de autoinfligidas modéstia e penitência.

Em 1977, a produção da Rede Globo de Televisão, Gabriela, Cravo e Canela, transmitida pela RTP, tomou de assalto uma sociedade a que o escritor brasileiro Antônio Torres chamara «o país dos homens dos pés redondos», paisagem humana onde não só a televisão era a preto e branco. De norte a sul, do Parlamento ao mais remoto monte alentejano, a telenovela brasileira surpreendeu tudo e todos, não apenas com uma nova forma de representar e contar uma história no pequeno ecrã, mas também com outros modos de viver a sensualidade e o corpo.

Gabriela foi uma explosão de erotismo e liberdade no horário em que, poucos anos antes, se viam e ouviam as Conversas em Família de Marcelo Caetano ou os telejornais retalhados pela Comissão de Censura ou do Exame Prévio.

Num tempo em que escasseavam as revistas femininas, e num país sem indústria de moda digna desse nome, só a televisão tinha capacidade de influenciar o consumo da classe média. E as novelas começaram a mudar a forma de vestir, sobretudo por adolescentes.

Mas a adaptação do romance de Jorge Amado (com os decotes generosos da protagonista ou de Glorinha, na janela do coronel que a mantinha) foi apenas o início de uma febre coletiva, que levava frequentemente a desmandos, que incluíam fugas de casa e negligências conjugais. Seguir-se-iam O Casarão, Escrava Isaura, O Astro, Água Viva, todas com um sucesso tal que pôs meio país a discutir apaixonadamente os amores, os desencontros, as vilanias das personagens de cada trama. Isto sem esquecer a pergunta mais formulada nos lares portugueses ao longo do ano de 1979: «Afinal, quem matou Salomão Ayala? – o grande mistério de O Astro, só desvendado, como era sacramental, no último episódio.

Da paixão ao mimetismo da linguagem, das atitudes e do vestuário das personagens mais carismáticas não demorou muito. Num tempo em que escasseavam as revistas femininas (a mais popular era a Crónica Feminina, muito tradicional nas suas opções) e num país sem indústria de moda digna desse nome (Ana Salazar começaria a afirmar-se junto da classe média-alta no final dos anos 1970 e os restantes criadores, mais tradicionais, trabalhavam apenas para as elites) só a televisão tinha capacidade de sugerir consumos à classe média, nomeadamente aos adolescentes.

Em breve, veremos as raparigas das escolas a comprarem réplicas do crucifixo de Escrava Isaura ou do brinco em forma de raio ou da bolsa de franjas usados por uma muito jovem Glória Pires na telenovela Água Viva.

Um breve olhar pelas publicações da época demonstrará que, graças à novela Dancin’ Days, marcas brasileiras como os jeans Staroup entrarão pela primeira vez no nosso país, prometendo aos seus potenciais compradores o charme das noites cariocas, as mesmas onde se movimentavam Cacá (António Fagundes) e Júlia (Sónia Braga), com os seus soquetes de lurex colorido, bem à vista sob as sandálias vermelhas de salto, e top minúsculo.

Este impacte dos figurinos telenovelescos nas escolhas dos espetadores também se fizera sentir no Brasil. Na novela Água Viva (responsável por um assinalável recrudescimento de interesse pelo lifestyle associado ao surf) a atriz Betty Faria, que interpretava a personagem de Lígia Prado, soltou um desabafo aparentemente inócuo, reclamando que não aguentava mais a cor roxa, forte tendência de moda no momento.

Nos poucos dias que se seguiram à transmissão desse episódio, o roxo encalhou nas prateleiras, provocando uma crise com os lojistas e fabricantes de tecidos e confeções que tinham apostado na tendência. Para evitar males maiores, o argumentista, Gilberto Braga, viu-se forçado a escrever nova cena, em que a mesma personagem elogiava a cor.

Esta forte relação entre o glamour que entrava na casa de cada um, todas as noites, à hora de jantar, e a moda remonta à segunda metade da década de 1970 e teve como pioneira Marília Carneiro, uma mulher que vendia roupa às vedetas da Globo, mas que tinha uma forte intuição para o garimpo em feiras e em vendas de segunda mão, muitas décadas antes de o vintage se tornar tendência.

O Clone (2001), em que a personagem Jade (Giovanna Antonelli) despertou em muitas telespetadoras o gosto pela joalharia de inspiração oriental, mas também Cobras e Lagartos (de 2006) com o cabelo louro platinado e as botas de couro de Leona (Carolina Dieckemann) a serem copiadas um pouco por todo o Brasil.

Foi Dina Sfat (a popular “Zarolha” de Gabriela) quem sugeriu a Daniel Filho que a convidasse para conceber os figurinos da novela Os Ossos do Barão em 1973. A partir daí, foram mais de 30 novelas e muitas tendências lançadas nas lojas e nas ruas a partir do pequeno ecrã.
Embora Marília Carneiro sempre frise que a sua atividade não pode ser confundida com os objetivos de um editorial de moda ( «o figurino é para assessorar, não para brilhar mais do que o texto», como explicou numa entrevista à Globo em 2015), está consciente da cumplicidade há muito estabelecida entre as duas linguagens.

Em 2010, chamada a conceber o guarda-roupa do remake de Ti-titi (novela ambientada no mundo da moda, com uma primeira versão datada de 1985), ela estudou a figura de Anna Wintour. «Precisava entender sua motivação, seu trabalho. Ela não serve de referência para nenhuma personagem em especial, mas o ambiente é muito rico, dá a sensação de poder e riqueza que a moda costuma transmitir.»

Ao longo da década de 1980, a importância crescente que a moda e os seus protagonistas assumiram no imaginário global inspirou, com efeito, as primeiras novelas ambientadas no mundo da moda, dos modelos e dos estilistas, dando que sonhar a muitos jovens com ambições. Assim surgiram Ti-ti-ti e Top Model (1990), em que ombros com chumaços e amplas cabeleiras tiveram, pelo menos, tanto protagonismo como os protagonistas do enredo.

Mostrava-se um mundo hostil, povoado por megeras dispostas a tudo? Melhor ainda. O look de yuppie, com blazers e minissaia, assentava-lhes como uma luva. Nesta galeria de inspirações e inspiradores há ainda que destacar novelas como O Clone (2001), em que a personagem Jade (Giovanna Antonelli) despertou em muitas telespetadoras o gosto pela joalharia de inspiração oriental, mas também Cobras e Lagartos (de 2006) com o cabelo louro platinado e as botas de couro de Leona (Carolina Dieckemann) a serem copiadas um pouco por todo o Brasil.

Não se pense que o público só copia o outfit de personagens simpáticas ou sofisticadas. Caso de estudo é a popularidade do look de Carminha (a vilã de Avenida Brasil, de 2012, Adriana Esteves), cuja rápida ascensão social a torna viciada em marcas e luxo, ou ainda o da viúva Porcina (de Roque Santeiro, 1985), espécie de mix entre o guarda-roupa de Madonna e Carmen Miranda, que, contra todas as expetativas, foi imitado por espetadoras. Betty Faria teve tal impacte como a capitosa Tieta do Agreste (de 1989, adaptação do romance de Jorge Amado) que chegou a criar uma marca para comercializar a roupa e os acessórios que apresentava na novela.

Não há, no entanto, uma receita garantida para o sucesso, afirma Marília Carneiro. Os figurinos, como os argumentos ou a interpretação dos atores, depende dessa eterna incógnita que é a adesão do público. «Uma peça de roupa, diz, só acontece se a personagem acontecer. Não adianta colocar uma roupa esplendorosa se a personagem for rejeitada.»

 

DANCIN’ DAYS: O PONTO DE VIRAGEM

Exibida pela RTP entre novembro de 1979 e julho do ano seguinte, Dancin’ Days, com o selo da Rede Globo, revelou ao nosso país um Rio de Janeiro sofisticado e moderno, com uma atmosfera mais semelhante à do filme Febre de Sábado à Noite (com John Travolta) do que à de qualquer outra cidade de língua portuguesa.

Com um elenco composto por Sónia Braga, Joana Fomm, Reginaldo Faria, José Lewgoy, Cláudio Corrêa e Castro, Mário Lago, Ary Fontoura ou Antônio Fagundes, revelaria também aos espetadores uma nova geração de atores (Glória Pires, Lídia Brondi, Lauro Corona) que teve grande impacte junto dos adolescentes portugueses e brasileiros. A moda, as atitudes, o vocabulário, entraram facilmente no quotidiano de escolas, empregos e jantares de família.

Como símbolo de tanta exuberância ficariam as meias de lurex brilhante usadas com sandália de salto alto, imitadas até à exaustão deste e do outro lado do Atlântico.

A histórica figurinista da Globo, Marília Carneiro, recordaria, mais tarde (em várias entrevistas e nas suas próprias memórias, No Camarim das Oito, edição SENACRJ, 2006), como o sucesso da telenovela marcou um ponto de viragem para o público e, naturalmente, para todos os envolvidos na produção: «Dancin’ Days foi um divisor de águas na minha carreira. Antes, eu só tinha feito Rebu e Gabriela, meu trabalho tornou-se muito mais reconhecido. Foi um momento mágico. O texto do Gilberto Braga era ótimo, uma obra-prima. A classe A começou a acreditar em novelas porque se viram bem retratados ali. Antes, novela era coisa apenas dos empregados. Só se falava nisso!» (entrevista ao site da Globo, aquando da reposição da novela no canal “Viva” da estação).

Os figurinos desempenharam papel determinante neste resultado. «Em breve o Country Club começou a dar festas temáticas. As mulheres iam fantasiadas de Júlia Matos. Na mesma época, o Morro da Urca virou point e As Frenéticas (banda que cantava a canção tema da novela) eram febre. As roupas eram muito extravagantes, cheias de lantejoulas, cabelo volumoso… Foi uma prévia dos anos 1980.»

Como símbolo de tanta exuberância ficariam as meias de lurex brilhante usadas com sandália de salto alto, imitadas até à exaustão deste e do outro lado do Atlântico, possivelmente contra todas as previsões da sua “criadora”: “Vi na capa de um disco o pé de uma mulher usando a meia com salto alto e trouxe para a novela. Não imaginava que ia fazer esse sucesso todo. Até minhas filhas queriam usar, mas eu proibia. Virou um fenómeno, se espalhou da noite para o dia.”

 

* Maria João Martins é jornalista e escritora. Trabalhou durante vinte anos no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias e é colaboradora regular da Vogue Portugal e da Máxima. Professora de História Social da Moda em várias instituições.