Commedia a la Carte: são servidos?

Entrevista Ana Patrícia Cardoso | Fotografia Gustavo Bom/ Global Imagens

Tudo começou numa das salas do Chapitô já lá vão 17 anos. César Mourão, 38 anos, Ricardo Peres, 43, e Carlos Cunha, 55, juntaram-se para fazer aquilo que ainda não se fazia em Portugal – um espetáculo de improvisação. Sem texto ou piadas combinadas, os três começaram a subir aos palcos com apenas uma certeza: não há dois espetáculos iguais. Com os anos, veio a cumplicidade, o traquejo para dar a volta a qualquer situação e o reconhecimento do público. Há quem os siga para várias cidades e arraste os amigos e a família para ver mais do que uma vez. Mesmo com a possibilidade de ir parar ao palco. Uma conversa com os três membros do grupo com gargalhadas à mistura.

Qual é o maior desafio ao fazer humor?
César Mourão (CM): O mais difícil é estar calado. Não existe música sem silêncio.
É complicado estar em palco e saber o timing perfeito para esses momentos.
Carlos Cunha (CC): Às vezes, só com um olhar levamos o público para um sítio completamente diferente.
Ricardo Peres (RP): Para mim, é eu ter um problema e ter de ir para o palco fazer rir os outros.
CM: Eu vou discordar disso (risos). Quando estou com algum problema é quando tenho mais energia para subir ao palco. Dá-me mais pica dar a volta à situação.

«Se fossemos para o Markl, na TVI [em vez das manhãs da SIC), estaríamos aqui hoje? No patamar onde estamos e a esgotar salas? Não sei. Se calhar éramos uma coisa de culto, mas não chegávamos às massas»,
César Mourão

 

Passados 17 anos, já preveem quando vão discordar?
CM: Sabemos, mas somos contra na mesma. Claro que nos moldamos mais mas continuamos a ter as nossas diferenças. Por exemplo, o Carlos sempre gostou de carne e eu gosto de peixe. Mas eu agora já gosto de carne, Carlos.
CC: Está bem, mas agora não como eu carne.
CM: Lá está. É difícil e é um processo de conhecimento também.

Quando começaram no Chapitô, imaginaram que iam durar tanto tempo? Ou nem vos passava pela cabeça?
CM: Não, nem pensar.
RP: As coisas foram acontecendo…

Como foi esse início?
CM: Conhecemo-nos todos lá no Chapitô. Depois de terminar o curso, fui estudar para o Rio de Janeiro, o Ricardo foi para Nova Iorque, onde estudou improv comedy. Já admirávamos o trabalho uns dos outros. Não havia nada deste género e nós decidimos arriscar.
RP: Tinha trazido uns livros sobre improviso e fechamo-nos no Teatro da Graça, na Voz do Operário, durante noites a experimentar, só os três. Depois, ofereceram-nos o primeiro andar do restaurante do Chapitô para experimentarmos e construíram-nos um palcozinho que ainda está lá.
CM: O palco mínimo que está com mesas em cima. Muita gente não sabe que começámos aí.

Foram pioneiros na improvisação. Como se monta um espetáculo sem referências anteriores?
CC: Com muita discussão.
CM: Sempre discutimos. Porque eu gostava deste momento, o Ricardo do outro, o Carlos do outro mas não sabíamos se realmente funcionava. Uma das nossas maiores discussões foi sobre um dos maiores sucessos de sempre – os Jogos Olímpicos, uma espécie de slow motion até chegar às medalhas. Isto deu-nos discussões brutais. Acabamos por fazer e foi um sucesso tão grande que a Caixa Geral de Depósitos chegou a chamar-nos para fazer só este sketch no final das reuniões.
CC: Na altura também começamos a trabalhar com um sonoplasta, o Sérgio Mourato, que o César convidou…
CM: É verdade, essa foi outra inovação. Já gostava muito do Sérgio e eu lembrei-me de termos um gajo que nos ajudasse a improvisar no som. Ao início, discordámos porque era mais um cachet para dividir, mas depois o Sérgio acabou por ficar connosco durante anos.

E entretanto as pessoas começaram a vir em força aos vossos espetáculos.
CM: Sim, estávamos no Chapitô e houve um «boca-a-boca» sobre nós. Na altura não havia redes sociais, Facebook, Instagram, por isso a nossa publicidade era ir à janela e gritar com força.
RP: Tínhamos umas fotografias que o José Pedro Vasconcelos tirou a preto e branco ao pé do [bar] Avião, na 2ª Circular, e tínhamos um tripé à porta do Chapitô. Era isso.
CM: Aquilo começou a encher e tínhamos pessoas a ligar-nos para os telefones. E depois veio o Hugo Nóbrega, diretor da agência H2N, que estava a começar a empresa. Nós achámos que fazia sentido, fizemos o convite à meia-noite, num bar das docas, e estamos com ele desde então.

«Há um conhecimento tão grande uns dos outros, uma parceria enorme que nos permite fazer os espetáculos e divertirmo-nos mesmo que estejamos chateados uns com os outros»,
Ricardo Peres

Como chegaram à televisão?
CM: A dada altura, fomos convidados para ir ao programa da manhã da Fátima Lopes. Era um programa com muita audiência. À noite, íamos ao O Homem Que Mordeu o Cão, a convite do Nuno Markl. Públicos opostos. Qual o público que mais nos agradava? O do Markl. No final do programa da Fátima, improvisámos um bocadinho. Toda a gente adorou. Levaram-nos para uma sala e perguntam-nos se queríamos fazer isto todos os dias. Nós fomos apanhados de surpresa. Todos os dias como? Era bom dinheiro, nada comparado com o que ganhávamos na altura. Nós ficámos de pensar.

E foram ao O Homem Que Mordeu o Cão.
CM: Exato. E, no final, o Markl também nos convida para estarmos lá uma vez por semana. No mesmo dia! Já tínhamos dito que sim à SIC. E este era TVI. E é aqui que eu acho que se dividiram as águas. Se fossemos para o Markl estaríamos aqui hoje? No patamar onde estamos e a esgotar salas? Não sei. Se calhar éramos uma coisa de culto, mas não chegávamos às massas. Irmos para as manhãs tornou-nos comerciais mas trouxe-nos outras coisas.
CC: O que a televisão nos deu… deu-nos visibilidade mas retirou-nos da improvisação.
CM: Não nos tirou totalmente da improvisação. Fizemos improvisação durante um ano e depois disseram-nos para fazer umas personagens e correu muito bem. Na manhã éramos muito conhecidos.
RP: Depois acabaram por perceber que o César funcionava muito bem sozinho e nós fomos para a tarde.

Há uma divisão no grupo?
CM: Acaba por não ser uma divisão e isso é mérito nosso. Nós podíamos ter acabado naquela altura em que eu começo a trabalhar sozinho. Eles não tinham cabeça e não queriam trabalhar em televisão. Começo a ter uma franja de público que é fã das minhas personagens mas continuávamos com um ar cool e fora da caixa nos outros sítios.
CC: Aí, o Hugo Nóbrega foi importante, foi a cola.

Mas nunca pensaram em desistir?
CC: Não, não.
CM: Não, não… Quer dizer, pensamos todos os dias. Até hoje! Mas houve ali um momento em que… mais ou menos.
CC: O Nóbrega aí teve um papel fundamental. Era ele que ia falar com um ou com o outro e fazia a mediação. Porque mesmo com os trabalhos em televisão, nunca deixámos de fazer empresas e bares, ou seja, ele nunca deixou de vender.
RP: A verdade é que já há um conhecimento tão grande uns dos outros, uma parceria enorme que nos permite fazer os espetáculos e divertirmo-nos à brava mesmo que estejamos chateados uns com os outros. Já passámos por muitas fases e a verdade é que nunca nos desmembrámos. É este o fenómeno do palco. De repente chegas ali acima e só aquilo importa.
CC: Eu e o César fizemos uma temporada chateados. Não nos falávamos fora do palco mas divertimo-nos imenso a fazer o espetáculo.
CM: Pois foi! Essas coisas acontecem, mas nós ultrapassamos isso tudo.

«Na fase inicial, o facto de o César ser workaholic foi importante para o grupo. O Ricardo sempre foi o tipo fora da caixa. Às vezes, estamos em palco e ele dá a resposta mais absurda. E pura»,Carlos Cunha

Qual é a característica individual que cada um traz para o grupo funcionar há tantos anos?
CC: Na fase inicial, o facto de o César ser workaholic – o contrário do que eu era na altura – foi muito importante para o grupo. O Ricardo, para mim, sempre foi o tipo fora da caixa. Às vezes, estamos em palco e ele dá a resposta mais absurda que se imagina. E pura. E isto para o espetáculo é maravilhoso.
CM: Qualquer qualidade deles é também o seu defeito. O Ricardo é realmente o mais puro. Mas é como beberes um gin puro e pensas: «Eh pa, isto está puro, é melhor juntar uma água tónica.» Às vezes, diz coisas no palco que podia ter-nos dito no camarim mas está ali tão no momento que sai. O Carlos é paciente, também porque é mais velho. Nós somos mais ansiosos, achamos que um dia a bola vai mas não volta.
CC: Volta, volta.

Continuariam só com dois membros?
CC: Este grupo, não.
CM: Houve uma altura que aconteceu, mais ou menos. O Ricardo faleceu um ano (risos). Teve propostas irrecusáveis e nós tomámos a decisão de não chamar ninguém português para fazer o espetáculo durante esse tempo. O Carlos tinha ido ao Brasil e lembrou-se do Marco Gonçalves, um amigo do improviso e era perfeito. Seria os Commedia a la Carte com sotaque.
CC: Todos nós adorámos o Marco e a coisa deu-se mesmo muito rápido, num jantar fiz o convite, ele aceitou…
CM: E é uma coisa incrível. Ele vem de Madrid, fez escala em Lisboa, aceita, fomos a um sítio vestir umas roupas e tirar umas fotografias para o cartaz. Ele vai-se embora e nós tínhamos cartaz feito.
CC: Por isso, já aconteceu ficarmos dois, mas não foi permanente e o Ricardo voltou, cá está ele, e está tudo bem.

O espetáculo está dividido por blocos de improvisação. Esta estrutura vai mudando?
CM: Nem sempre funciona da mesma maneira. No alinhamento, temos várias improvisações. A do «tradutor» é uma estreia nesta temporada. A «entrevista» é um clássico nosso. O «musical» veio com o Marco Gonçalves e resultou muito bem.
CC: Depois, quando o Ricardo voltou estragou tudo (risos).
CM: É que ele não canta nada, nada. Mas hoje em dia o público já não repara nisso.

Vocês têm a regra de não chamar ninguém conhecido ou repetido ao palco?
CM: Sim, a regra é não chamar ninguém que possa ser reconhecido. Nós não queremos que o público pense «ah, isto está tudo combinado».

E quando chamam alguém que fala pouco?
CM: É aproveitar isso em nosso favor. Hoje em dia, já sabemos dar a volta à situação. No caso, é fazer que ele diga ainda menos e é essa a piada.
CC: Por exemplo, o César disse-me uma vez para não trazer pessoas de determinada idade porque podem ter filhos na plateia e isso inibe-os.

Vocês acabaram por educar o público para este tipo de espetáculo onde há uma interação direta.
CM: Sim, sim. Nós nunca tínhamos ido a Oliveira de Azeméis e as pessoas já conheciam os Commedia, ouviram falar, participam durante o espetáculo. Como é que é possível?
RP: Eu acho que as pessoas hoje em dia vão com a ideia «deixa ver o que vai acontecer aqui».

E também para ver se corre mal?
CM: Ah, sem dúvida. O público tem essa característica. Há uma briga aqui e nós vamos todos ver. Como nós fazemos improviso, vão para ver se corre mal.
CC: Sim, vão para ver se nos safamos.
CM: Mas para nós é ótimo. Muito do nosso sucesso vem daí. As pessoas desconfiam se está tudo feito, se está tudo combinado. E depois percebem que não está.

As salas cheias

Depois de esgotar a temporada de 2016 com cerca de 25 mil espectadores nos Teatros Villaret (Lisboa) e Sá da Bandeira (Porto), os Commedia a la Carte fizeram-se à estrada e percorreram o país de norte a sul com este espetáculo, Circus. Entre atores, técnicos e banda, são dez pessoas que já fizeram cerca de cem apresentações, só nesta temporada. Até ao final de junho estão confirmados espetáculos no Coliseu do Porto (14), no Cine-Teatro de Estarreja (24) e no Auditório Municipal de Santiago do Cacém (28).