Até amanhã, mãe

[Estes testemunhos foram publicados originalmente na Notícias Magazine de 1 de maio de 2005, Dia da Mãe, mas entendemos republicá-los, hoje, 25 de abril, em formato digital, porque estas mulheres são quatro das muitas que contribuíram para que este dia fosse possível]

Texto Catarina Pires
Fotografia Reinaldo Rodrigues

Alice Capela
«Bata-me a mim, não bata ao meu filho»

Nascida e criada na Póvoa de Santa Iria, começou cedo o contacto de Alice Capela, 75 anos, com a luta antifascista. O pai, operário, era militante do PCP, assim como a mãe, e a avó. Apesar de a vida não ser folgada, os abonos de família iam direitos para o partido e a casa era ponto de apoio [casas legais que serviam de abrigo quando algo corria mal] para quem estava na clandestinidade. Destino que também o pai de Alice abraçou tinha ela 10 anos. A mulher e a filha segui-lo-iam um ano depois.

«Éramos três filhos e não pudemos ir todos. Como eu era fraquita dos pulmões fui eu, com grande dor da minha mãe». A avó, também operária, ficou com os dois netos, de 13 e sete anos. «Foi um grande sofrimento para os meus irmãos, na cabeça deles a minha mãe escolheu-me a mim. Compreendo-os muito bem, os meus irmãos e todos os filhos de funcionários que tiveram de ser separados dos pais foram jovens que sofreram muito.»

Alice Capela, fotografada em 2005, na sede do PCP, em Lisboa.

De cada vez que se formava uma casa clandestina era preciso inventar uma história de vida, Alice, que diz que queria ter sido atriz, garante que tinha muito jeito «era uma miúda que fazia muito teatro.» E nas quase duas décadas que viveu na clandestinidade teve de interpretar muitas personagens.

Com 13 anos aconteceu o primeiro duro golpe, «o meu pai foi preso, e muito torturado, fizeram-lhe muito mal, ficou lá nove anos». Sozinha com a mãe, «saltaram» para um ponto de apoio e pouco depois teriam de se separar.

Aos 18 anos começou a escrever-se outro capítulo da vida de Alice. «Fui formar uma casa com o Adelino Pereira da Silva, que é até hoje o meu companheiro. O Dias Lourenço [dirigente histórico do PCP já desaparecido e campeão de fugas das prisões da ditadura] levou-me e disse que éramos casados só a fingir, mas eu quando o vi ao longe achei-lhe logo graça. Ao fim de três meses éramos companheiros.»

Seguiu-se o inevitável numa altura em que a pílula tinha acabado de ser inventada e a contraceção era bastante falível, engravidou. «E quis ter o filho, para o Adelino gostar mais de mim. Em 1960 nasceu o Alfredo, em casa, com grandes dificuldades».

A ditadura não reconhecia como legítimos filhos gerados fora do casamento. ou Alice e Adelino oficializavam a sua união ou não podiam ver o filho. «Tivemos que nos casar por procuração, ele na prisão de Peniche, eu na prisão de Caxias».

Entretanto, o companheiro foi para a URSS e quando voltou foi preso. De ponto de apoio em ponto de apoio, com o filho de dois anos, acabaria por voltar a juntar-se à mãe numa casa que funcionava como tipografia e onde se imprimia a propaganda e imprensa clandestina do PCP. «Em papel muito fininho, para se poder esconder facilmente.»

«Ali estivemos, a trabalhar intensamente. O Alfredo tinha quatro anos, estava muito bem instruído, muito cedo percebeu os cuidados que tinha de ter». Até que o pior aconteceu. Era a madrugada de 13 de dezembro de 1964. Batem à porta. À pergunta «quem é?» respondem que é o leiteiro. «Àquela hora não podia ser, percebemos logo do que se tratava, e começámos a queimar os papéis. Nisto nove homens arrombam a porta com um pé de cabra e apontam-me uma arma, “Mãos no ar, somos da PIDE”. Eu e a minha mãe começámos a gritar quem éramos e o que se estava a passar para os vizinhos ouvirem. Mas eu não queria fazer muito barulho para não assustar o meu pequenino, de olhos esbugalhados a olhar para aqueles homens armados. Eu não o largava, muito louro, muito bonito, e eles logo com a chantagem: “que criança tão linda”.»

Foram levados para Caxias. «Eu e a minha mãe fomos juntas para uma cela, com o Alfredo. Eu andava sempre com ele atrás e os pides diziam: “há-de servir-te de muito andares agarradinha a ele”, eu não respondia àqueles assassinos, até porque não queria assustar o meu menino. Disseram que, se não arranjasse ninguém para ficar com ele, o davam para um asilo. Não sabia a quem o entregar. Eu e a avó presas, o meu pai, o Adelino e os avós paternos presos também…»

Conseguiu através de uma visita contactar o irmão mais velho, já casado, e pedir-lhe que ficasse com o pequeno. Ele assentiu. O rosto de Alice ensombra-se. «Não gosto de me lembrar disto, são memórias muito duras. Eu preparei-o, fazia-lhe um grande teatro, dizia que nos íamos encontrar depressa.

No momento da separação, nas escadarias de Caxias, um pide perguntou “o que é que pensas que vais fazer?”, “vou entregar o meu filho”, “não vais não”, disse-lhe que tinha esse direito, que não podiam fazer isso, que ele não conhecia os tios, mas eles começaram a puxá-lo e eu tive de o largar. Ele gritava, os olhos cheios de lágrimas, deu um pontapé ao pide, que lhe respondeu com uma bofetada e eu gritei: “bata-me a mim, mas não bata ao meu filho” e desatei aos saltos, parecia um palhaço, dizia: “a mãezinha adora-te, depois quando sairmos daqui vamos fazer uma festa e a mãe vai contar-te muitas histórias”. Era pelo meu filho que fazia aquilo. Subia a escada e ouvia os gritos do Alfredo ao fundo».

Passados 15 dias o tio trouxe-o à visita, no parlatório, Alice não podia nem dar-lhe um beijo. «Disse-lhe que tinha muitas saudades e ele respondeu “Já conheço o paizinho. O paizinho é bonito”. O meu irmão tinha-o levado a Peniche para conhecer o pai.».

Mas a ditadura fascista não reconhecia como legítimos filhos gerados fora do casamento e ditou que ou Alice e Adelino oficializavam a sua união ou não podiam ver o filho. «Tivemos que nos casar por procuração, ele na prisão de Peniche, eu na prisão de Caxias».

«Diziam: “Ao teu filho vais vê-lo morto” e eu pensava nele e nos outros filhos todos do mundo, era por eles que lutava. Queria ficar louca para aquilo terminar.»

Esteve presa cinco anos. Queriam fazê-la falar. Torturam-na, mas esta mulher de aparência frágil à PIDE disse nada. «Estive cinco dias e cinco noites na tortura do sono. Não me podia sentar, nem deitar, tinha alucinações, via uma carantonha a sair da parede e depois via o meu bebé e estava a embalá-lo. Desatei aos gritos e eles enfiaram-me uma toalha molhada na cabeça. Eu gritava “assassinos, assassinos” e eles esbofeteavam-me, davam-me murros, atiravam-me contra a parede, insultavam-me, “puta, cabra”, diziam que eu estava amantizada com fulano de tal e que já tinham dito ao meu companheiro. Diziam: “Ao teu filho vais vê-lo morto” e eu pensava nele e nos outros filhos todos do mundo, era por eles que lutava. Queria ficar louca para aquilo terminar. Depois mudaram de tática, apareceu um tipo que era a cara do Adelino, eu sabia que era um pide, mas ele com muitas amabilidades, a ver se me fazia falar, com aquela delicadeza era perigoso, com outras podia resultar, mas eu desde pequenina que tinha sido avisada daquilo tudo. Sempre disse que tinha ideia de que se fosse presa não falaria, nunca que tinha a certeza que não ia falar. O que me dava força era ouvir aqueles gritos dos nossos camaradas presos em Caxias que viam que eu estava a sair e que não tinha falado».

Quando voltou à cela, a mãe não estava. «Veio passados quatro dias, eu estava com uma pneumonia dupla, e ela diz-me: “Ah, filhinha, tu não morreste!”. Também ela foi muito torturada e resistiu. Era uma grande comunista. Tenho muitas saudades dela. Tive que ter força para a tratar e foi isso que me salvou. Depois foi a vez de ela tratar de mim. Foram cinco anos de muita luta. Estavam lá muitas outras camaradas e tivemos de ter todas muita força.»

Só em 1970 é que Alice Capela e o marido Adelino Silva puderam juntar-se ao filho, Alfredo.

Quando saiu, o filho tinha quase 10 anos. «Foi muito estranho, não sabia o que fazer, apanhei um táxi para Entrecampos e de lá o comboio para a Póvoa de Santa Iria, e falava alto com as pessoas no comboio, era a hora a que regressavam do trabalho, dizia o que me tinha acontecido… Bati à porta, o Alfredo vem a correr e agarrámo-nos ao pescoço um do outro e rodámos, rodámos, rodámos, ele dizia: “mãezinha, mãezinha, há tanto tempo que eu não tinha mãezinha”. Uma semana depois fomos ver o Adelino, há sete anos que não o via. “Estás na mesma”, “Tu também”. Não estávamos nada, estávamos horríveis, muito magros.

Corriam os últimos meses de 1970 quando Alice, Adelino e o filho se juntaram novamente, agora na legalidade e deu-se o 25 de abril quando iam passar de novo à luta clandestina. Já não foi preciso.

Faustina Barradas, fotografada em 2005, na sede do PCP, em Lisboa.

Faustina Barradas
«Chegou a notícia de que a minha filha tinha morrido, e eu não podia chorar»

O rosto gaiato de Faustina Barradas não deixa adivinhar a idade. Fala depressa, como quem tem muito para contar, e ri, mesmo quando chora. Em 1961, com 16 anos, passou à clandestinidade e foi nessa condição que nasceram as suas três filhas. O maior medo era o de todas as mães nas mesmas circunstâncias, ser presa com as crianças, sabia que a PIDE muitas vezes usava os filhos para tentar obter dos pais informações que nem as piores torturas conseguiam arrancar.

«Mas quanto a isso tive uma grande lição, quando fui para a primeira casa clandestina, ser “filha” do Dias Lourenço e da mulher. Connosco vivia também o filho deles, de um ano. Um dia tiveram de sair e o Dias Lourenço perguntou-me: “Nós vamos confiar-te a vida do nosso filho, mas se a PIDE vier cá, até podem ameaçar matar o Toninho, que tu não falas nos pais dele, és capaz?” Eu disse que sim. E penso – penso! – que estava preparada para essa provação. Se eles estavam, eu também tinha de estar. Eles estavam a dar a vida do filho e isso cala dentro a uma jovem como eu era».

Faustina nasceu em Vale de Vargos, uma aldeia no concelho de Serpa, os pais eram camponeses e nessa condição, diz, «era fácil ser-se do Partido [PCP], o único que defendia as gentes do campo e as ajudava a lutar contra a miséria, a fome, os baixos salários impostos nas praças de jorna que no verão eram ocupadas pela GNR. Em 1954, assassinaram a Catarina Eufémia e passado pouco tempo os meus pais vieram para Lisboa com os três filhos».

Em 1965, os pais eram presos e Faustina conhecia aquele que viria a ser o seu companheiro para a vida. «Fui formar casa no Porto e deram-me uma “credencial” para me encontrar com o Zé Carlos à porta da maternidade». Senha, contra-senha, foram viver juntos e o marido a fingir acabou por ser a sério. Uma história que se repete, para o bem e para o mal. No caso de Faustina e Zé Carlos para o bem.

Todos os dias, Faustina saía com as filhas rumo ao jardim de Espinho. Elas iam passear. A mãe ia pôr o sinal – um pionaise debaixo de um dado banco do jardim – para o pai saber que estava tudo bem com a casa, podia vir em segurança. Até que, em 1972, chega a notícia de que a Catarina tinha morrido

Pouco mais de um ano depois nascia a Catarina, de um parto normal, numa casa que parecia normal. A seguir, com um intervalo de dois anos, veio a Elisa. «Nasceu sem pés, com os pés colados às pernas, toda torcidinha, no hospital de Matosinhos. A primeira ideia foi mandá-la para a URSS para ser tratada, mas não foi preciso, no hospital ensinaram-me a separar os pés das pernas, e fazia aquilo todos os dias. Hoje é uma miúda linda. Pois, é minha filha é sempre linda, não é?» A necessidade de assistência médica implicava maiores riscos para a segurança da casa, «era uma angústia muito grande, mas ela começou a melhorar e isso é que importava».

A terceira gravidez trouxe alegria e tristeza. «Não foi planeada, até tinha começado a tomar a pílula, mas aconteceu». Faustina ficou contente, achou que este parto a faria ultrapassar o «trauma» do anterior, mas colocou-se uma questão: ou a criança nascia e tinham de se separar da mais velha, porque três crianças pequenas numa casa clandestina era muito complicado, ou a criança não nascia. «É no momento em que uma mulher tem de considerar a hipótese de fazer um aborto que começa a penalização. Para mim foi um drama muito grande. Era uma escolha muito difícil, ficava sempre sem uma filha». Nove meses depois nascia a Valentina e a Catarina, com três anos e meio, ia para casa dos avós paternos.

Entretanto, Elisa, a do meio, entrava na idade dos porquês: «porque é que não posso brincar com os outros meninos?», «porque é que não vou à escola?», «porque é que os outros meninos têm todos três nomes e eu só tenho um?», «onde é que está a minha irmã?». Os pais tentavam explicar, dar respostas, e ela também dava a sua achega, dizia: «O meu nome é Maria Elisa Lisinha» ou «Vou para um colégio muito longe onde se aprendem coisas muito boas».

A vida corria. A luta também. Todos os dias, Faustina saía com as filhas rumo ao jardim de Espinho. Elas iam passear. A mãe ia pôr o sinal – um pionaise debaixo de um dado banco do jardim – para o pai saber que estava tudo bem com a casa, podia vir em segurança. Até que, em 1972, chega a notícia de que a Catarina tinha morrido.

«De dia, não podia chorar porque tinha as duas pequeninas e não queria que elas percebessem, tinha que fazer a vida normal, como se não fosse nada, vigiar a casa, ir pôr o sinal. Chorava de noite. O Zé foi procurar a família e dois dias depois chega e diz que afinal a menina está bem, mas aquele sofrimento, já ninguém me tira.» Tinha de ver com os próprios olhos, tocar-lhe, abraçá-la. Pediu um encontro. «Os camaradas acederam e encontrámo-nos no Santuário de Fátima, onde podíamos ficar de um dia para o outro sem levantar suspeitas. Vi a minha filha, estive com ela e fiquei sossegada.»

«Estava previsto que em agosto, a Catarina e a Lisa fossem para Moscovo, e a Valentina para os meus sogros e nós ficávamos outra vez sem filhas, na nossa luta. Felizmente, abril chegou antes».

Em vésperas da revolução, no dia 20 de abril de 1974, o último preso político do regime salazarista era José Carlos Almeida. O passo seguinte para Faustina era queimar tudo e abandonar a casa. Mas não foi isso que fez. Pelas suas contas, o companheiro tinha sido preso longe de Espinho e sabia que ele nunca falaria, o que lhe dava tempo para fazer o que fez. Separar os papéis todos em pastinhas, pôr a salvo os livros e a máquina de escrever e partir com as duas filhas e três malas cheias de papéis, as roupas esquecidas, «andaram com a mesma roupa até ao dia 26 de abril». «Pus um anúncio nos Perdidos e Achados do Jornal de Notícias e do Comércio do Porto a dizer “Perdeu-se anel”, que era o Zé Carlos, e o número de código. Era o que se fazia quando alguém era preso para avisar os camaradas. E fui à procura de um quarto».

Valentina, Elisa e Catarina, as três filhas de Faustina Barradas e José Carlos Almeida, já depois do 25 de abril.

As pensões estavam todas lotadas, e a única que lhe deu abrigo, numas águas furtadas que serviam de arrecadação, tinha como hóspedes prostitutas e estudantes de medicina. O que viria a revelar-se providencial. Era 23 de abril de 1974, «a Lisa tinha cinco anos e a Valentina, três». Nessa noite um gato atacou a mais pequenina, arranhando-lhe a cara toda e estava fora de questão ir ao hospital. Era arriscado de mais. Foram os tais estudantes de medicina que a trataram. «O susto foi tão grande que a Valentina deixou de falar, só quando voltámos à casa de Espinho é que ela abriu a boca: “O meu chapéu, o meu bibe, os meus brinquedos”». Mas as emoções mais fortes ainda estavam para chegar. «Quando chega um estudante à pensão a dizer que tinha havido uma revolução, eu não sabia o que pensar. Só pensava no Zé Carlos, que a PIDE o mataria.» Mas não.

A 26 de abril era um dos que apareciam na televisão a deixarem a prisão de Caxias. «Estava previsto que em agosto, a Catarina e a Lisa fossem para Moscovo, e a Valentina para os meus sogros e nós ficávamos outra vez sem filhas, na nossa luta. Felizmente, abril chegou antes».

Teodósia Gregório, fotografada em 2005, na sede do PCP, em Lisboa.

Teodósia Gregório
«Quando ouvia um miúdo a chorar na rua lembrava-me logo do meu filho»

Na altura em que este depoimento foi recolhido, em 2005, era fácil encontrá-la na sede do PCP, na Soeiro Pereira Gomes. E muito fácil gostar ela, o rosto cheio de um sorriso entre o tímido e o aflito. Mas não era fácil falar destas coisas, remexer memórias, mesmo passados tantos anos. Teodósia da Conceição Gregório, falecida em 2016, contava então 70, 17 deles dedicados à luta clandestina, 11 separada do filho. Contabilidade difícil, mas a balança do deve e haver, fechadas as contas, estava equilibrada.

«Custou-me muito ter de me separar do meu filho, como me tinha custado deixar os meus irmãos mais novos, um com cinco anos e outro com sete, que tinha ajudado a criar. Mas se voltasse atrás, teria feito tudo da mesma maneira. Para não sofrer tínhamos que sair da luta e não podíamos nem queríamos, era preciso lutar por uma vida melhor para todos.»

Também ajudava o filho ter compreendido as suas razões e as do pai, José Gregório, preso quando ele tinha cinco meses. «Compreendeu muito bem a nossa luta e o motivo porque tivemos de estar separados. Hoje vive na Suíça e telefona-me muitas vezes, ainda ontem à noite, para saber como estou, preocupa-se muito comigo. Tem sido sempre um miúdo muito bom».

Lembra-se do dia em que entrou para a clandestinidade, era 16 de abril de 1954. Foi o pai, membro do PCP, que a incentivou, lia-lhe muitas coisas e a ansiedade da jovem de lutar por uma vida melhor para ela e todos os outros fê-la dar o passo. A mãe não queria. «Julgando que eu respondia que não, disse que a decisão era minha. Pensei: “se posso dar o meu contributo, dou”. E fui, até hoje. Só me magoa é ver agora o país a desmoronar-se e os nossos jovens com tantas dificuldades».

«Mudávamos muitas vezes de casa e a complicação maior era fazer crer ao gaiato que aquele camarada era o pai dele.»

Dificuldades que não se comparam àquelas que Teodósia conheceu na infância e juventude. «Vivíamos muito mal, apesar de nunca ter passado fome, trabalhei no campo até aos 19 anos, em São Cristóvão, a minha terra. Fui à escola três semanas, mas a professora fez de mim criada, em vez de me ensinar, mandava-me para casa dela limpar e fazer as tarefas domésticas. E eu, com sete anos, ia lá fazer queixas à minha mãe, ela ainda me ralhava. Mas uma tia minha percebeu e a minha mãe foi falar com a professora que disse que eu era boa era para guardar ovelhas. Isto passou-se, mas a minha mãe vendo que eu não levava nada para ler nem para escrever resolveu: para ser criada da professora, é minha criada e lá vim eu embora da escola para ir trabalhar para o campo.»

Quando entrou para a clandestinidade, nem ler sabia, «mas os camaradas fizeram o favor de me ensinar, ajudaram-me e com 34 anos fiz a 4ª classe. O senhor professor queria que eu continuasse os estudos, era um professor maravilhoso, mas não havia dinheiro para pagar a escola e não quis colocar esse problema ao partido».

Foi na primeira casa clandestina que conheceu aquele que viria a ser o seu marido. «Ao fim de um ano resolvemos tornar-nos companheiros. Ele era muito doente, mas eu engravidei, e apesar de ter medo que houvesse algum problema com o bebé, optei por levar a gravidez avante». A hipótese de abortar foi cogitada, mas o aviso de que isso poderia implicar o risco de ficar infértil fê-la decidir-se assim. E nasceu o José.

«Ao fim de cinco meses, o meu companheiro foi preso, mas felizmente o meu filho foi sempre muito bem tratado por todos os camaradas com quem estive nas casas clandestinas, apesar das dificuldades financeiras e do encargo acrescido que era ter uma criança.» Mas problemas de outra ordem se colocavam a uma mãe sozinha nesta vida.

Teodósia só voltou a ver o filho onze anos depois, em 1969, quando o marido saiu dos dez anos de prisão a que foi condenado.

«Mudávamos muitas vezes de casa e a complicação maior era fazer crer ao gaiato que aquele camarada era o pai dele. Certa vez, na transição de uma casa para a outra parecia não se ter apercebido de nada, mas o camarada da casa anterior veio à casa onde estávamos e o gaiato chamou-me de parte e disse: “tu estás-me a enganar, aquele é que é o meu pai, não é este”. Tinha quatro anos, no dia a seguir expliquei-lhe tudo, disse quem era o pai, que estava preso, mas que não ele podia dizer nada a ninguém.» José cumpriu. «Quando foi para os meus pais, nem ao avô disse onde ele estava.» Mas o avô sabia e levou-o à prisão para conhecer o pai.

José, filho de Teodósia e José Gregório, viveu maior parte da infância longe dos pais. Tinha cinco meses quando o pai foi preso pela PIDE.

A hora da separação tinha chegado. «Foi muito difícil, tinha muitas saudades, sabia que ele estava bem, mas estava sempre preocupada. Quando ouvia um miúdo a chorar na rua, lembrava-me logo do meu filho e era muito duro. De vez em quando tinha notícias dele, mandavam-me fotografias, desenhos que fazia na escola, e quando as recebia era uma alegria muito grande por um lado e uma enorme tristeza por outro, porque apertavam as saudades».

Teodósia só voltou a ver o filho onze anos depois, em 1969, quando o marido saiu dos dez anos de prisão a que foi condenado. Na bagagem trazia outra sentença. Os médicos davam-lhe seis meses de vida. «Só tomei a decisão de sair da clandestinidade quando me deram essa notícia. Queria estar ao lado do meu companheiro nos seus últimos meses de vida». Partiram para fora do país, mas nem nesse momento o regime fascista permitiu que a família se unisse. «O meu filho teve que ficar com os avós porque não lhe deram o passaporte para ir connosco».

Voltariam a encontrar-se todos depois do 25 de abril, afinal os meses fizeram-se anos e José Gregório ainda viveu para ver que a sua luta não foi em vão.

Maria Carvalho, fotografada em 2005, em Almada.

Maria Carvalho
«Os meus filhos ressentiram-se muito da separação»

Em 2005, quando este testemunho foi recolhido, Maria Carvalho, que morreu em 2016, não parava. Com 79 anos, era uma mulher pequenina mas hiperativa, uma «histórica» do PCP, militante orgulhosa, e quem a queria ver era na concelhia do partido em Almada ou na construção da Festa do Avante, empoleirada num escadote a pintar um qualquer mural.

Nasceu e cresceu na Nazaré, filha do médico da terra, homem de ideias progressistas, que não cobrava consultas a quem não podia pagá-las, e de uma mulher do povo que, sendo analfabeta, aprendeu por si a ler, a escrever e a contar e o transmitiu aos seis filhos, cinco rapazes e uma rapariga, Maria Carvalho, que quando chegou a idade de ir mais longe nos estudos veio para para casa de uns tios em Lisboa e formou-se educadora de infância na Escola de São João de Deus.

Como é que se encaixa nisto a entrada para a luta clandestina? «Um dos meus irmãos era comunista e levou essas ideias lá para casa. Depois, em Lisboa, militei no MUD Juvenil, tinha muitos amigos ligados ao Partido e desde muito cedo me apercebi da luta que se travava, da PIDE, da tortura, das prisões, das mortes, da realidade e das injustiças da sociedade e tudo isso fez com que a certa altura não pensasse noutra coisa senão juntar-me a essa luta. Quando em 1949 foram presos o Álvaro Cunhal e o Militão Ribeiro decidi que tinha de entrar para o PCP e fazer o que era necessário. Para mim foi determinante a leitura do Manifesto Comunista e d’ A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado».

Como se mostrava disponível e não tinha encargos falaram-lhe em passar à clandestinidade. Esclareceram-na de todos os riscos e renúncias e ela respondeu que ia pensar. «Passados três dias decidi que sim. Mas só seis meses depois é que me voltaram a falar. Já estava triste por nunca mais me terem dito nada.» Seguiu-se um período de «quarentena», para fazer todos os cortes, despedir-se da família. «A minha mãe reagiu muito mal, apelou ao meu pai para ele me dissuadir, mas ele disse: “tenho confiança nela”». Estávamos em finais de 1951, Maria tinha 25 anos, e só voltaria a ver os pais mais uma vez na vida.

«O Zé ainda não tinha dois anos quando foi viver com os tios. Custou-me muito separar-me dele, mas tinha muita confiança no meu irmão, sabia que o meu filho ia ficar bem.» Voltou a vê-lo uma única vez oito anos antes do 25 de Abril, tinha ele então 11 anos.

Em fevereiro de 52 foi para a primeira casa clandestina, no Barreiro. Mais adiante, noutra casa, noutra terra, conheceria aquele que viria a ser o pai dos seus três filhos, dois rapazes e uma rapariga. «Aconteceu, mas a decisão de os ter foi minha, porque a ele tanto fazia – “isso é contigo, tu é que resolves, os filhos são teus”. Pronto, então os filhos são meus, assumo. Fui eu que escolhi os nomes: José (Zé) e Joaquim (Quim), os nomes de dois dos meus irmãos, e Ana da Paz.» Gravidezes foram quatro, a última era outra menina, mas nasceu morta. «Tive muita pena, queria dar uma irmã à Ana. Quando eu era garota também queria muito ter uma irmã».

Quando nasceu o Joaquim, o PCP considerou mais prudente entregar o mais velho à família. Maria concordou. «O Zé ainda não tinha dois anos quando foi viver com os tios. Custou-me muito separar-me dele, mas tinha muita confiança no meu irmão, sabia que o meu filho ia ficar bem.» Voltou a vê-lo uma única vez oito anos antes do 25 de Abril, tinha ele então 11 anos.

Três anos depois nasceu a Ana. Maria tinha agora dois filhos a viver consigo. «Era complicado, estavam isolados, não podiam contactar muito com as crianças da vizinhança porque havia sempre o medo do que podiam dizer, o que vale é que se tinham um ao outro. Mas quando havia reuniões lá em casa os miúdos ficavam muito contentes “Vêm os tios!”, gritavam. A Ana era mais reservada, era preciso tempo para lhe ganhar a confiança e arrancar uma palavra. O Quim não, era um “bonzão”, falava pelos cotovelos. Uma vez pôs-se aos gritos “Viva o ptão Valvão [Capitão Henrique Galvão, que liderou o assalto ao paquete Santa Maria em 1961]”. Andava sempre sobressaltada.»

Mas havia outra questão que se punha a quem tinha filhos na clandestinidade: a escola, que exigia matrículas, documentos, morada. Portanto, quando chegava a idade havia duas possibilidades: a Interdom, escola na URSS para os filhos dos comunistas de todo o mundo que viviam na clandestinidade, ou a família.

«O Zé já estava com o tio, eu gostava que o Quim e a Ana tivessem ido para a casa dos avós, mas os meus pais já tinham uma idade avançada e por isso decidimos que iam para a URSS. Eu tinha uma grande confiança naquela sociedade. Primeiro era só para ir o Quim, mas preferi que fossem os dois para não separar os filhos todos, eles eram muito amigos, e assim faziam companhia um ao outro. Ele tinha oito anos, ela cinco. E eu lá fiquei sem nenhum.»

«Quando me puseram a questão de passar à clandestinidade disseram logo que tinha de me separar da família, abdicar de quase tudo, passar privações, que corria o risco de ser presa, torturada, até morta. E eu, depois de pensar, aceitei, em consciência! E não podia virar costas à luta com a qual me tinha comprometido.»

Naturalmente, pensava muito neles, em como estariam, e sabia-lhe muito bem quando recebia notícias ou fotografias. Assim como pensava no Zé. «Às vezes ia na rua e via jovens que deviam ter a idade dele e queria imaginar como estaria, qual seria a cara dele. Se o visse já não o conhecia».

Três anos depois de ver os filhos partirem, também Maria Carvalho rumou à União Soviética, onde esteve um ano na «Escola do Partido». Nesse ano esteve três vezes com o Joaquim e a Ana. Uma das quais três semanas de férias em Sotchi, no Mar Negro. «Quando me viram agarraram-se a mim, um num braço, outro noutro, e já não me largaram. À despedida foi muito duro, sabíamos que nos íamos separar outra vez e eles choravam muito, a Ana tinha umas lágrimas muito grandes, e os meus olhos também ficaram assim, transparentes…»

Ana da Paz e Joaquim, os dois filhos de Maria Carvalho que foram para a Interdom, a escola na União Soviética que recebia filhos de comunistas portugueses que, durante a ditadura, passaram à clandestinidade.

Mais tarde, já depois do 25 de abril e da liberdade, os filhos tratavam a mãe por Maria. Ela achava normal. «Toda a gente me trata por Maria». Mas nunca negou que a separação a que a luta política obrigou lhes deixou marcas profundas. «Os meus três filhos ressentiram-se muito destas separações, acusam-me de os ter abandonado, mas eu não entro em discussão… Penso que agora estamos melhor. O problema é que eles ainda não se convenceram de que eu optei por um trabalho político, avisada de todas as dificuldades com que me ia deparar. Quando me puseram a questão de passar à clandestinidade disseram logo que tinha de me separar da família, abdicar de quase tudo, passar privações, que corria o risco de ser presa, torturada, até morta. Avisaram-me de tudo isto. E eu, depois de pensar, aceitei, em consciência! E não podia virar costas à luta com a qual me tinha comprometido.»

E nunca se arrependeu? «Nunca. Sabia que tinha de fazer aquilo e, garantindo sempre que os filhos estavam bem, o partido estava em primeiro lugar – era como haver sol ou chuva, não dependia de mim.»