As memórias que nos fazem

Notícias Magazine

Os avisos estão por todo o lado, mas não há sinal de proibição que impeça os mais insistentes de tentar. À socapa, são muitos os turistas que posicionam telemóveis e tablets para o teto da Capela Sistina, tentando captar as três centenas de figuras carregadas de simbolismo, amor e ódio. Cores e formas perfeitas que consumiram a saúde do mestre Miguel Ângelo, num processo criativo doloroso fisicamente e que lhe exigiu uma luta solitária contra a impaciência do Papa Júlio II.

No turbilhão ruidoso de visitantes que pisam a capela – cerca de vinte mil por dia – não é fácil arranjar um espaço livre para contemplar a obra sem pressas. E menos fácil ainda é encontrar ângulo para fotos, escapando à vigilância permanente dos seguranças. Com tanta fotografia de alta qualidade disponível no mundo inteiro e na internet, o que move quem insiste em captar a sua própria imagem, mesmo que de qualidade duvidosa?

Não faltam estudos académicos sobre a importância da fotografia como fortalecedora das técnicas de memorização. Walter Benjamin foi um dos que teorizou sobre a forma como esse instante cristalizado em imagem permite que o que já foi continue a ser. Mas desde os primórdios da fotografia até hoje o seu uso multiplicou-se de tal forma que a preocupação começa a inverter-se. Já há investigadores a defender que a memória sai prejudicada quando se abusa da máquina fotográfica, sobrepondo-a à contemplação tranquila.

Quando surgiu a moda dos selfie sticks, pensei que seria passageira. Que aquele desconfortável pedaço de plástico é demasiado invasivo e inútil. A verdade é que em muitas das principais cidades do mundo continua a ser o objeto mais oferecido pelos vendedores de rua, os que melhor sabem o que os turistas desejam.

E não se trata de ser apenas usado para selfies: a extensão que o selfie stick permite ajuda a captar pormenores ou ângulos improváveis de monumentos e paisagens. Como se a procura pela melhor foto tornasse a experiência melhor. Não basta estar nos locais, é como se apenas a fotografia documentasse que se esteve lá. E desse documentário à publicação nas redes sociais vai um passo pequeno. A imagem perfeita serve também de prova de vida.

Tenho vários familiares e amigos com uma relação forte com a fotografia. Alguns, habitualmente cumpridores em tudo, furaram as regras para captar imagens em locais como a Capela Sistina. O ato de fotografar é pessoal e seguramente diferente para cada um. Mas não deixo de acreditar que o excesso de foco em registar o que se vive nos retira alguma tranquilidade para sentir, com todos os poros, o melhor que se está a viver.

As memórias permitem-nos agarrar pedaços do passado e carregá-los sempre connosco. Como camadas sucessivas, que nos vão dando profundidade. Não se trata de estar sempre a olhar para trás, porque o caminho se faz andando em frente. Mas de saber que somos feitos de tudo o que nos vai marcando e inscrevendo sentimentos em nós. Essas marcas, sem nos apercebermos, vão-nos ajudando a escolher o que fazemos com a vida.

Quanto mais fortes e carregadas de mundo forem essas camadas, mais profundo será o nosso presente. Não somos: vamos sendo, com tudo o que a cada momento nos molda e nos faz. E fotografia nenhuma capta essa verdade tão indefinível. É verdadeiramente dentro de nós que tudo se passa.