A mulher que dava lições sem querer

Notícias Magazine

Tu, mulher, que subias a Rua de São Bento, numa tarde desta semana, obrigado. Há tempo que ressoavam cascos na calçada, antes tinham passado fotógrafos a correr e motos a piscar o azul da polícia e tinhas já ouvido na televisão quem ali vinha – não mintas, sabias quem vinha. Talvez subisses como a Luísa na Calçada de Carriche, do poema de António Gedeão. Sobe que sobe, sobe a calçada, sobe e não pode, que vai cansada – mas isso era a Luísa. Ela ter-se-ia voltado, ao ver passar a carreta. Confirmando que havia uma urna, ela teria parado. Qualquer que fosse a urna, teria parado. Porque nós, portugueses, somos assim, por sermos gentis, dizem uns, por sermos moles, explicam outros.

Mas tu, mulher, não paraste. Por não seres gentil nem mole? Não vem ao caso. Não paraste, não te viraste para o fio do passeio, não te recolheste perante a urna. Ignoraste-a. Tu, portuguesa, se fosse uma urna qualquer, terias parado, gentil ou mole. Mas àquela ignoraste-a – porque era aquela. Naquela tarde, continuaste a subir a rua, com a tua malinha. Como ignoraste a urna – e pareceu-me, mulher, que nem tinhas a desculpa de ir cansada –, fizeste-o por um qualquer acinte que tens contra o homem que lá ia dentro. E é por isso que te escrevo, mulher que subias a Rua de São Bento na tarde de terça-feira. Escrevo-te para te dizer: obrigado.

É que eu, se me tivesse calhado a passagem daquela urna, naquela tarde, na Rua de São Bento (ou qualquer outro dia e lugar) teria sussurrado ao homem morto, àquele, que lá ia: «Obrigado!» Uma palavra que, parecendo estar nos antípodas do teu gesto, pertence a um direito comum. Da minha palavra poucas lições se poderiam tirar: todos os dias, em muitos lugares, há sempre gente agradecida a alguém sem que isso adiante o que quer que seja sobre esse alguém. A minha gratidão a Mário Soares diz alguma coisa de mim; e pouco dele. Por isso eu, que estou tão, tão, tão grato a Soares, suspirava por aparecer alguém, como tu, mulher. Subindo a Rua de São Bento e ostensivamente ignorando a urna do velho homem, tu dizes pouco de ti (continuo sem saber se és boa ou má) e muito dele.

Dizes: vai ali um homem poderoso e numa situação simbólica como é um funeral e grandiosa como é um funeral de Estado e eu faço saber ao mundo que me estou nas tintas para ele. Dizes e mostras que podes fazê-lo. E, sabes (presumo que não saibas), quem mais fez para que tu possas ignorar, quase insultar, quem é precedido por motos de polícia e vai numa bela carreta oficial e é seguido por dezenas de militares a cavalo, enfim, quem mais fez por esse teu direito à indiferença ou insulto foi o velho que ia na urna.

Por causa dele, ao ouvires chegar todo aquele aparato rua acima, pudeste escolher entre aplaudir, chorar, parares ou, como fizeste, subir, indiferente, a Rua de São Bento. Repito, o que fizeste diz pouco de ti. Tempos houve em que dizer publicamente «sei que não vou por aí» tinha consequências, prisões e exílios. Noutros tempo eu saberia que quem fez o que fizeste era corajoso. Agora tu podes fazê-lo com a simplicidade de quem sobe uma rua. Graças às prisões, aos exílios e à convicção dele.

Por aqueles dias, antes de te ter visto, eu não sabia como dizer quanto ele nos tornou livres, a mim e a ti. Salvaste-me, mulher que subiu a Rua de São Bento. Com o teu medíocre gesto contra Soares, deste uma magnífica lição, sem o quereres, sobre o que devemos a Soares.

[Publicado na edição em papel da Notícias Magazine de 15 de janeiro de 2017]