Os estrangeiros que estão a reconstruir a aldeia destruída pelo fogo

Texto de Paula Sofia Luz | Fotografias de Leonardo Negrão/Global Imagens

A estrada que liga a vila de Figueiró dos Vinhos à freguesia de Campelo é difícil de percorrer. Já o era antes daquele fatídico sábado, 17 de junho, quando o fogo alastrou e varreu casas e vidas. Mas, agora que se apagou o braseiro, há um manto castanho e cinzento que envolve as aldeias a partir do corte para a Ervideira, Aldeia Fundeira e Agrias, em direção ao Vale Salgueiro. É precisamente aqui, nesta aldeia a onze quilómetros da sede de concelho, que vivem cerca de trinta pessoas. Vieram da Alemanha, Holanda, Suíça, Suécia e República Checa.

Chegaram há meia dúzia de anos, mas só agora, depois do incêndio, é que as autoridades compreenderam a dimensão daquela comunidade, destapada pelo fogo. Quem se aventura a passar por ali por estes dias percebe o quanto foi agreste o incêndio daquela tarde-noite de junho: há caravanas, carros e máquinas agrícolas queimados na berma da estrada, casas ardidas. Entre eles não houve vítimas, ao contrário do que imaginou logo ao princípio o presidente da junta de freguesia local. «Pensei que tinham morrido todos», diz Jorge Agria.

Só que, na verdade, nem o autarca sabia da existência de muitos deles. Nos dias que se seguiram ao incêndio foi passando por lá. Viu algumas casas e caravanas queimadas. Das primeiras vezes, nem sinais de vida. Com o passar do tempo, foi começando a encontrá-los. Eram muitos, mais do que ele imaginava. Muitas crianças, entre os 2 e os 15 anos.

Depois chegaram as equipas da Segurança Social, da Câmara Municipal Figueiró dos Vinhos, da EDP, os voluntários que ainda percorrem as aldeias para entregar mantimentos e bens. Estão resignados ao fenómeno da devastação do fogo, mas encaram-no como «parte da natureza, da necessidade que tem de se renovar».

Entre todos, estão a reconstruir cada parede sem esperarem qualquer ajuda do Estado. Até porque a maioria acredita que ali vive com Deus, e que é Ele quem os está a ajudar nesta tarefa. De resto, foi por isso que ali se instalaram nos últimos anos. É isso que pensam Tomás e Miloslava Skaniváneck, o casal que veio da República Checa há seis anos, com três dos cinco filhos (os dois mais novos já nasceram em Portugal). Ou de Matthijn Mulder e da mulher, Wilma, com os três filhos e um quarto a caminho, que em setembro há de nascer ali, em casa.

Na aldeia do Vale Salgueiro, aquela comunidade, espécie de tribo, acredita no poder de Deus e da natureza. Por isso renegam as doenças e a consequente toma de medicamentos. As crianças nunca foram vacinadas.

Tomás, 43 anos, é uma espécie de chefe da aldeia. Foi o primeiro a aceitar uma entrevista, e no dia marcado reuniu quase todos os habitantes em casa, na parte onde o fogo não chegou. Lá estavam os holandeses e as gémeas belgas, as mulheres recolhidas na cozinha, onde uma panela ao lume refogava curgetes e cenouras. A maioria não come carne nem peixe, outros comem as galinhas que criam em cercas, nos vales.

Queimou-se muita coisa, grande parte das hortas onde cultivam toda a espécie de vegetais, ervas aromáticas e plantas diversas que usam com fins medicinais. As crianças nunca comeram açúcar, chocolate «só biológico, do que fazemos aqui», explica Matthijn, que chega com o filho mais novo numa cadeira de rodas. O rapaz de 5 anos partiu uma perna há duas semanas e isso motivou uma rara ida da família ao hospital.

Na aldeia do Vale Salgueiro, aquela comunidade, espécie de tribo, acredita no poder de Deus e da natureza. Por isso renegam as doenças e a consequente toma de medicamentos. As crianças nunca foram vacinadas. «As vacinas introduzem doenças no corpo», diz Matthijn. Os outros concordam. E à escola, vão? «Não. Têm ensino doméstico. Até agora eu e a minha mulher é que ensinamos. A escola, de uma maneira geral, é um sistema com o qual não concordamos, que quer educar todos da mesma maneira», diz Tomás.

Na República Checa era carpinteiro na empresa da família, endinheirada. Já casado, entrou em rutura com a política do país. Partiu em 2011 numa autocaravana com a mulher (socióloga de formação) e os três filhos que já tinham. O mais velho, um rapaz de 15 anos, sofre de paralisia cerebral. Ficaram por Espanha, mas um amigo falou-lhes do interior de Portugal, de como estava desertificado, dos terrenos férteis, da água abundante, do silêncio e da natureza. Nessa altura, um irmão de Tomás juntou-se a eles. Compraram o terreno e a casa em ruínas. Não revelam quanto pagaram, até porque, diz, o dinheiro deixou de ter importância.

O MAIS JOVEM DESTE GRUPO É O HOLANDÊS JASPER, 28 ANOS. VAI CASAR-SE À SUA TERRA NATAL NO MÊS QUE VEM. DEPOIS TRAZ A MULHER PARA A ALDEIA, ONDE PENSA RECONSTRUIR UMA CASA.

«Eu vivo de um modo diferente, não trabalho para ganhar dinheiro», diz ele. «Trabalho bastante, mas não recebo dinheiro. Já experimentei ser pobre e não ter quase nada. E já experimentei ter muito dinheiro. Isso não é importante para mim. E o que tento fazer com os meus filhos é ajudá-los a perceber as várias possibilidades da vida. Quero mostrar-lhes que não é preciso submetermo-nos ao sistema, pagar impostos, comprar um carro, ter telemóvel, esse tipo de coisas que nos ensinam ser obrigatórias quando devem ser opções. Eu quero que eles tenham liberdade para escolher o rumo da sua vida, a minha responsabilidade é mostrar-lhes o que pode ser a vida, depois eles fazem as suas próprias escolhas.»

Entretanto a família cresceu, são agora cinco filhos, com 3, 5, 8, 9 e 15 anos. Naquela manhã de julho brincam em grupos: na rua os mais novos, à sombra, numa espécie de alpendre, lá dentro os mais velhos ajudam a preencher impressos da Segurança Social, cujos técnicos passaram por ali e querem saber quantos são e como vivem.

A casa foi erguida «com a ajuda de Deus, que a construiu através de mim, e através de algumas ferramentas, como por exemplo os meus amigos», diz Tomás. A religiosidade que vivem, diz, «não tem um nome nem um líder. Se fosse assim seríamos um culto ou uma seita. Mas somos mais como uma família, que vive com Deus na natureza».

Talvez por isso, encaram o fogo e a destruição com relativa normalidade. Naquele sábado estavam todos na reunião semanal, na floresta. Quando voltaram a casa, havia uma nuvem de fumo a querer engolir a aldeia. Juntaram-se em três carrinhas e fugiram do fogo, para uma povoação onde moram uns amigos, em Ferreira do Zêzere.

Os primeiros a chegar a Vale Salgueiro foram os alemães Walter Grunecker e a mulher, Christiane. Têm 62 anos, ele dedica-se à recuperação de casas antigas, ela é psicóloga clínica e médica naturista.

Voltaram três dias depois. Desde então passam a vida a retirar os escombros, adquiriram
materiais e estão a reconstruir tudo o que ardeu. As equipas de voluntários descobriram-nos nas semanas seguintes. «Vieram trazer-nos imensas coisas, muitas de que não precisamos. Recebemos tanta coisa que se tornou complicado armazenar.»

O mais jovem deste grupo é o holandês Jasper, 28 anos. Vai casar-se à sua terra natal no mês que vem. Depois traz a mulher para a aldeia, onde pensa reconstruir uma casa. No meio daquele espírito livre, vivem agora também as gémeas belgas Irina e Brigite Gorny, duas sexagenárias que são uma espécie de avós de todas as crianças de Vale Salgueiro.

Apoiam-se num cajado para subir e descer os montes e vales da aldeia, para onde se mudaram depois do fogo. «Vivemos cá há uns meses, comprámos uma casa no Vale da Pousada – uma aldeia próxima –, que ficou muito danificada pelo incêndio.» Há outras famílias, que não quiseram falar à reportagem ou tão-pouco apareceram.

Os primeiros a chegar a Vale Salgueiro foram os alemães Walter Grunecker e a mulher, Christiane. Têm 62 anos, ele dedica-se à recuperação de casas antigas, ela é psicóloga clínica e médica naturista. Passa metade do ano cá, com o marido, e outra metade no consultório na aldeia onde têm casa, perto de Munique, na Alemanha. Há vinte anos, em viagem pelo interior do país, descobriram uma propriedade em Pedrógão Grande que acabaram por comprar.

«Ajudamo-nos muito uns aos outros, independentemente da religião. Temos aqui várias sensibilidades religiosas, até judeus messiânicos. Mas a maioria acredita nesta forma de viver com Deus na natureza. Só nós é que não», diz Christiane.

Os quatro filhos eram crianças (hoje têm entre 28 e 34 anos) e a casa de férias em Portugal assumia contornos de aventura, todos os anos, durante seis semanas. Um deles acabou por render-se ao clima e, já adulto, instalou-se no Algarve com a família.

Numa dessas viagens de férias, um amigo sueco – que já morava em Portugal e se dedicava à compra e venda de propriedades – apresentou-lhe aquele vale, rodeado de montes. Como o da Goladinha, um pequeno lugarejo que conquistou os alemães de imediato. Ali já não morava ninguém há pelo menos duas décadas, as casas estavam devolutas, algumas em escombros. Walter olhou à volta, deslumbrou-se com a imensidão de verde e da ribeira de Alge, lá em baixo. «Este é o meu lugar», pensou. Comprou uns terrenos, onde haveria de construir cinco casas, três das quais aluga hoje a outros estrangeiros.

Ao contrário do restante grupo, Walter e Christiane não são propriamente crentes. «Respeitamos os outros, somos todos amigos, mas não temos uma religião, diz ela. «Os tratamentos que faço são baseados em estudos académicos, na universidade, e não no espiritual. Trabalho com pessoas com dores crónicas e outras com síndroma de burnout», diz a médica naturista, que espera em breve poder abrir um espaço de terapias alternativas no ponto mais alto daquele monte.

Em Portugal já fez um mestrado em Medicina Tradicional Chinesa, e de vez em quando vai administrando tratamentos naturistas aos amigos, que lhe pagam com mel, frutas ou legumes, em sintonia com o modo de vida dos restantes habitantes da aldeia.

«O Walter enamorou-se desta terra e eu achei que era melhor juntar-me a ele, aqui. Os meus filhos dizem que somos loucos.» A alemã ri-se, enquanto fala um português quase irrepreensível. O casal recebe-nos numa das casas de hóspedes que escaparam ao fogo – a deles ardeu por completo. Walter criou entretanto uma página numa plataforma de crowdfunding, à espera de angariar dinheiro suficiente para reconstruir a casa.

«Acho que vamos precisar de uns trinta mil euros, pelo menos. Temos algum dinheiro, mas não chega. E continuamos com a mesma motivação de quando aqui chegámos: conservar o património. Porque a maioria dos portugueses não tem possibilidade de conservar as suas casas antigas, e é uma pena. Talvez daqui a uma ou duas gerações isso seja possível. Tanto mais que os estrangeiros desaparecem, vão embora, mas as casas ficam.» Christiane, entretanto, continua encantada com «a simpatia dos portugueses, que acolhem bem». «Eu já vivi noutros países e não encontrei um povo igual.» Quando chegaram ao monte eram só eles «e os javalis».

Com o passar dos anos vieram outros vizinhos – os checos Tomás e Mila, primeiro, um casal de ingleses depois, e mais recentemente os holandeses Wilma e Matthiyn Mulder. «Ajudamo-nos muito uns aos outros, independentemente da religião. Temos aqui várias sensibilidades religiosas, até judeus messiânicos. Mas a maioria acredita nesta forma de viver com Deus na natureza. Só nós é que não.»

«Já estávamos habituados aos fogos no verão. Sabemos que os bombeiros são ótimos, e quando há perigo vêm logo. Como não vi nada disso, não compreendi que fosse assim tão grave. Hoje penso que aquele fogo não era previsível nem possível de dominar. Não era normal», diz Christiane.

Naquele sábado do incêndio, Christiane estava sozinha em casa. O marido tinha ido passar a tarde com uns amigos portugueses à aldeia do Nodeirinho, Pedrógão Grande. Resguardada do calor no interior das paredes de xisto, não se assustou logo com o fogo. «Já estávamos habituados aos fogos no verão. Sabemos que os bombeiros portugueses – como os nossos aqui da região – são ótimos, e quando há perigo vêm logo, assim como os helicópteros. Como não vi nada disso, não compreendi que fosse assim tão grave. Hoje penso que aquele fogo não era previsível nem possível de dominar. Não era normal.»

A certa altura, foi surpreendida pelo vizinho Matthijn, que a avisava do perigo, o terreno dele estava já a arder. Era tempo de partir. Os outros fugiram para Ferreira do Zêzere, ela ainda resistiu. Mas pouco depois entrou no carro e seguiu, estrada fora, curvas e contracurvas apertadas, o céu escuro como breu quando ainda era dia. Tentou ir em direção ao IC8, mas tudo ardia. Virou para a vizinha aldeia da Coelheira. O mesmo cenário. Apanhou então a direção de Pardieiros Fundeiros, onde viu bombeiros pela primeira vez, e a estrada cortada. Um bombeiro guiou-a até Penela. Foi aí que se refugiou, numa pensão, enquanto a sua casa ardia – roupas, documentos, duas motos, um carro, máquinas diversas.

Nunca mais conseguiu falar com Walter, cujo telefone ficou sem rede, e que entretanto tentara voltar a Figueiró dos Vinhos. Christiane conseguiu falar ainda com as amigas belgas, que por sua vez iam tentando contactar Walter. A única chamada que conseguiu receber foi a de Irina, dando conta de que a mulher fugira em direção a Penela. Pela serra, Walter chegou lá, sem saber por onde procurar.

Ela recuperava do susto no largo da igreja, junto à pensão, quando avistou um carro numa rua de sentido único. Era ele. «Como é que sabias que eu estava aqui?», perguntou-lhe ela. «Eu hei de encontrar-te sempre», disse-lhe ele. Voltaram no dia seguinte para a Goladinha, juntos, para reconstruir a vida.

DE ALDEIA ABANDONADA AO ZELO DA HORTA

Vale Salgueiro, Goladinha e Poço Negro fazem parte dos 36 lugares da freguesia de Campelo, a maior do concelho de Figueiró dos Vinhos. O presidente da junta local, Jorge Agria, contabiliza agora 220 eleitores, dos cerca de 270 habitantes registados nos censos de 2011. Entre eles estão apenas os alemães da Goladinha, com quem o autarca mantém uma relação mais próxima.

A maioria das propriedades do Vale Salgueiro pertencia a Francklim Godinho, um comerciante já falecido, e foram vendidas pela família aos estrangeiros. O autarca garante que estão devidamente legalizadas. «Aquilo era tudo um matagal quando eles compraram. O Tomás comprou ruínas, cobertas de mimosas. Hoje a horta está um zelo. » Apenas lamenta não conseguir maior proximidade com as famílias, «para lhes fazer perceber a importância de terem as crianças na escola, de aprenderem português». Há outras comunidades na freguesia, mas nenhuma como esta.

Três meses depois a Notícias Magazine voltou a Vale Salgueiro para acompanhar as famílias que perderam tudo no fogo de 17 de junho. Leia a reportagem AQUI.