A arte de sambar na lama

Notícias Magazine

No final da minha primeira gravidez, a médica marcou-me o dia e hora para entrar na maternidade. Não tendo argumentos para discutir com quem sabe, aceitei sem questionar as indicações para um parto induzido. E a Sara, que fez esta semana 13 anos, nasceu literalmente arrancada a ferros, em momentos de má memória. Quatro anos depois tive uma única certeza: o meu filho haveria de nascer no dia que ele escolhesse.

Segundo os números analisados pelo Jornal de Notícias, o dia da semana com menos nascimentos é o domingo. Em média, foram entre 153 e 185 nos primeiros meses deste ano, quando os restantes dias da semana ultrapassam sempre os 200 partos, chegando mesmo aos 284. Alguns especialistas recusam leituras, outros dizem o que parece evidente: os números são influenciados pelo facto de haver menos cesarianas e partos induzidos ao domingo.

O tema daria panos para mangas, porque a escolha das condições em que decorre o parto não tem apenas consequências na saúde, mas também na forma como mãe e filho experienciam os primeiros momentos juntos. Além de muitas questões clínicas sobre as quais deveria haver mais debate, assistimos a uma tentativa crescente de controlar momentos que ganham em ter muito de natural. Hoje podemos decidir mais do que há décadas. Mas nem sempre tanta intervenção é positiva.

Os constantes avanços na medicina dão-nos por vezes uma falsa sensação de controlo da vida e da morte. Quando viver é, pelo contrário, lidar com a total imprevisibilidade. E aceitar a fragilidade sem deixar que ela nos paralise.

À medida que a recente tragédia de Pedrógão Grande nos confrontou com os rostos e os pormenores sobre as 64 vítimas, nas redes sociais leram-se partilhas emocionadas. Gente que recordava a efemeridade, a forma como um segundo basta para alterar uma história, a convicção de que deveríamos ser mais gratos pelo que temos, porque há tantos que sofrem perdas impossíveis de reparar.

Não gosto de comparações ou de ter de olhar tragédias alheias para valorizar a minha própria existência. Embora perceba o raciocínio: é quando somos abanados no mais fundo de nós que questionamos o percurso feito e o caminho que se abre à nossa frente.

Recentemente, num desses abanões, uma amiga escreveu-me uma das mensagens mais eficazes que já recebi. «A vida é uma puta e tem um argumentista esquizofrénico. E ainda temos que sambar na lama de sapatos brancos», como canta Chico Buarque.

A vida é a arte de dar até o que não se tem. Mesmo quando o cansaço, a dúvida e a angústia se sobrepõem aos acordes da música. Sabendo que a qualquer momento há fatores imprevisíveis que nos podem trocar os passos, mas que nem por isso devemos deixar de fazer planos e desenvolver projetos.

Cristina, Anabela, Fausto, Joaquim, Aurora, Rodrigo, Lígia… Os nomes poderiam prosseguir. São 64. Cada um com a sua história, curta ou comprida, a cruzar-se com tantas outras linhas, a deixar vazios na vida de outros. Mas são as memórias de vida que preenchem esse vazio e permanecem.

O discurso sobre a fragilidade é recorrente perante grandes tragédias, mas esbate-se com o tempo. E ainda bem, porque não podemos viver com a noção exata da espada que pende sobre a nossa cabeça. Ou ficaríamos paralisados. Devemos tentar preencher cada momento com pedaços de eternidade. Por amarmos a vida. Não por temermos a morte.