A mulher que domina a televisão americana

Shonda Rhimes
Shonda Rhimes

Criou êxitos como Anatomia de Grey e Scandal cujas novas temporadas se estreiam nesta semana em Portugal. Produziu Como Defender Um Assassino, The Catch e esteve na origem de Clínica Privada, séries em que as mulheres estão em papéis principais e por isso se tornaram líderes entre a audiência feminina. Entrevista exclusiva com a mulher no centro desta máquina de sucessos, Shonda Rhimes, a produtora que em tempos foi uma criança solitária que via nos livros um refúgio ficcional e hoje é uma das mais poderosas personalidades na TV dos EUA. E do mundo.

Já figurou duas vezes entre as cem personalidades mais influentes da revista Time (em 2007 e em 2013) e entre as 50 mulheres mais poderosas no mundo dos negócios da revista Glamour. No ano passado foi eleita a personalidade do ano pelo Mipcom – mercado de conteúdos audiovisuais que se realiza anualmente em Cannes, França – e em novembro foi agraciada com um prémio honorário na 43ª edição dos International Emmy Awards. Aos 47 anos, Shonda Rhimes é a mais nova de seis irmãos e tem três filhas: Harper, 14 anos, Emerson, 5 (ambas adotadas), e Beckett, 3 (gerada através de barriga de aluguer).

Quando era criança não tinha amigos. Hoje tem um verdadeiro império e é uma das mulheres mais fortes da indústria do entretenimento. Como foi esse caminho?
Foi interessante. Tem sido uma jornada engraçada e estou a viver um momento maravilhoso. Tenho uma carreira fascinante e acho que não a trocava por nada.

A mente da criança solitária que foi em tempos deu‑lhe as ferramentas necessárias para fazer aquilo que faz hoje: escrever histórias que prendem e transportam os espetadores para mundos diferentes?
Totalmente. Acho que não estaria a fazer o que faço hoje se tivesse sido uma criança com imensos amigos e tivesse passado o tempo a brincar. Eu preferia gastar o meu tempo a ler, sozinha, e isso desenvolveu a minha imaginação.

Houve algum livro que tivesse influenciado ou marcado, mais do que outros, a sua infância?
Não. Os livros que lia em criança, e que ainda hoje tenho, são imensos. É uma coleção mesmo muito grande, quase tão grande como aquela que fui fazendo já em adulta, porque eu lia quase tudo o que me aparecia à frente.

Como é que a menina que escrevia histórias para colmatar a solidão percebeu que queria fazer disso a sua profissão e a sua vida?
Eu sou escritora desde… bem, eu sempre fui escritora. Aos 3 anos, debitava histórias para um gravador e pedia à minha mãe para redigi‑las. Sempre fui, não foi algo que tivesse surgido ou que tivesse descoberto mais tarde. Além disso, acho que sempre fui muito trabalhadora, nas aulas estava sempre a escrever, de mão no ar.

De que forma é que a Shondaland, a produtora que criou e que tem séries como Anatomia de Grey ou Como Defender Um Assassino, mudou a televisão no que toca a temas como a diversidade racial ou o papel da mulher na sociedade?
Eu opto por não fazer uma análise a esse aspeto, porque ainda estamos a trabalhar. Fazem‑nos essa pergunta com muita frequência, mas acho que é prematuro porque estamos a meio do caminho. Trabalhamos arduamente para que a televisão tenha pessoas normais, as mesmas que existem no mundo real. Mas não estamos a pensar de que forma podemos mudar as coisas. Não existe esse objetivo. Queremos apenas mostrar a verdade.

Em Como Defender Um Assassino, a líder é uma mulher, a advogada Analise Keating [Viola Davis]. O mesmo acontece em The Catch, Anatomia de Grey e Scandal, em que existem personagens femininas com uma forte dimensão. Qual é a sua inspiração para criar estas mulheres?
Costumam perguntar‑me como é que crio personagens femininas tão complexas e inteligentes, ao que sempre respondo: «Porque a alternativa são mulheres tontas e fracas.» Eu não conheço mulheres assim. Sei que existem regiões do mundo onde as mulheres não têm as mesmas oportunidades, nem tanto poder, mas escrevo heroínas para as pessoas verem e gostarem delas. Nem sequer penso nessa perspetiva, elas [personagens] falam como as mulheres que eu conheço. Falam como a minha mãe, como as minhas amigas, como a Betsy Beers [produtora executiva da Shondaland e seu braço direito], como eu. Nunca senti que aquilo que elas dizem seja chocante para as mulheres, ou selvagem do género: «Uau, como é que isto pode ter saído da boca de uma mulher?»

Está orgulhosa de ver o desempenho de duas atrizes negras, Viola Davis e Kerry Washington, que protagoniza mas séries Como Defender Um Assassino e Scandal? Era um objetivo?
Não. Tinha um desejo muito grande de fazer o Scandal, porque adoro a história. A mulher que inspirou a série é negra, por isso a Olivia Pope teria de ser negra. O caso de Annalise Keating é diferente, porque é um papel que poderia ter sido entregue a qualquer atriz, independentemente das suas características, mas todos sabíamos que a Viola Davis é uma atriz extraordinária. E ninguém imaginava que íamos conseguir tê‑la. Não tem que ver com o facto de ser negra, é porque é a Viola Davis. Quando ela aceitou ficámos maravilhados e estamos muito orgulhosos de ter a Viola Davis, ponto final.

Alguma vez sentiu que o facto ser uma mulher negra foi um obstáculo na sua carreira ou na sua vida?
Não sei, porque nunca tive outro género ou outra raça.

Qual foi a coisa mais importante que aprendeu até hoje?
A ser uma líder, sem dúvida, a ter a certeza de que as pessoas com quem trabalho se sentem valorizadas. Eu era uma pessoa solitária, escrevia e não sabia sequer como liderar‑me a mim mesma. O facto de hoje ser uma pessoa que dirige uma produtora deixa‑me muito honrada.

Num universo onde existe uma concorrência tão feroz, como é o caso da televisão, quais os ingredientes para fazer séries de sucesso?
Eu tenho uma regra que é: só fazemos séries que gostamos de ver. Acho que essa é a questão mais importante para nós. Se uma série nos parecer interessante e se tivermos curiosidade em vê‑la, então estamos no caminho certo. Só escrevo e produzo histórias que fiquem presas na minha cabeça e que não consiga esquecer. Caso contrário, não vale a pena.

Nesse sentido, o que mais gosta de ver enquanto espetadora?
Aquilo que me apaixona, que não me sai da cabeça. Existem várias coisas que me interessam, tenho um gosto variado.

Considera que as séries que cria e produz têm características em comum que permitem ao espetador identificá‑las e perceber imediatamente que pertencem à Shondaland?
Não considero que as nossas séries sejam semelhantes entre si, e isso é muito importante para mim. Cada uma delas tem a sua individualidade, uma personalidade distinta. Não é algo que façamos propositadamente, os formatos são assim.

Quais são as pedras basilares das suas histórias?
Acho que não existem. As pessoas fazem‑me muitas perguntas nesse sentido, mas acho que se gastasse o meu tempo a fazer essa análise não teria tempo para escrever. Na minha mente não existe uma fórmula. E se existe não sei qual é.

Está a trabalhar numa nova série, que é uma sequela da célebre obra Romeu e Julieta, de William Shakespeare. É um projeto arriscado?
A história passa‑se depois da morte de Romeu e Julieta, mas não pensei no facto de ser ou não um projeto arriscado. Apenas pensei que seria interessante fazê‑lo porque se trata de um enredo fascinante e atraente. Esta sequela é muito sexy e muito forte no sentido em que não se trata apenas de um romance. Existem elementos muito fortes, um homem que luta para ser rei e pessoas que tentam encontrar o seu lugar no mundo. É sobretudo uma história sobre pessoas e isso para mim é fascinante.

Cria séries e comanda uma produtora que tem atualmente no ar quatro formatos. Como é que consegue ter tudo sob controlo e delegar funções ao mesmo tempo?
Bem, a beleza do meu trabalho é o facto de eu não ter de fazer tudo. Duas das nossas quatro séries foram desenvolvidas por pessoas brilhantes e talentosas. Acho que a nossa maior qualidade é o facto de confiarmos as nossas séries a pessoas que têm uma voz e uma visão muito criativas. Acho que nunca vamos produzir séries com pessoas que não saibam aquilo que estão a fazer. Como Defender Um Assassino e The Catch estão entregues em boas mãos e costumo até dizer que sou a avó dessas séries. Eles entregam‑me o bebé, eu cuido dele, e depois devolvo‑o [risos]. No caso da Anatomia de Grey e do Scandal, são duas séries nas quais eu estou a trabalhar há muito tempo, já são pedaços de mim. Essas histórias são‑me quase intrínsecas e nesse sentido não parece ser um trabalho. Os guionistas do Scandal são quase todos os mesmos [desde o início do projeto], os da Anatomia de Grey já lá estão há 13 temporadas, por isso não é difícil. Delegar torna‑se fácil quando as pessoas já estão envolvidas no projeto há tanto tempo.

Com uma agenda profissional tão preenchida, como é que faz a gestão do seu dia-a-dia?
Nenhum dia é igual ao outro, isso é certo. Grande parte do meu dia é passado a tentar encontrar tempo para criar e para escrever. Dedico a maior parte do tempo a trabalhar na Anatomia de Grey e no Scandal. Como Defender Um Assassino e The Catch são os bebés criativos de Peter Nowalk e Helen Gregory, são eles que trabalham nessas séries diariamente. Há dois anos percebi que a razão de ter este trabalho é o facto de ser suposto eu ser uma contadora de histórias, e não uma mulher de negócios. Existem muitos negócios envolvidos no meu trabalho, mas a razão pela qual a ABC quer que eu esteja lá é para contar histórias, pelo que o mais importante é que tenha tempo para focar‑me nessas histórias. Nesse sentido, contratámos vários profissionais para estarem concentrados na outra parte.

Uma das suas características é ser uma workaholic e dedicar muito do seu tempo ao trabalho. Fantasia com um período em que não tivesse qualquer tipo de obrigações? Se tivesse sete dias livres o que faria?
[Risos] Ter tempo livre é muito produtivo porque isso faz que nos tornemos mais criativos. Se tivesse sete dias livres acho que não faria nada. Tenho‑me obrigado a ter esse tempo livre, mas se houvesse um período de tempo em que não tivesse de responder a e‑mails ou pensar nas séries que crio e produzo… Bem, nem consigo imaginar esse cenário.

Como é a sua rotina quando está a escrever? Tem algum ritual específico?
Se estiver com phones na cabeça a ouvir música, a escrita flui em qualquer lugar. Não preciso de estar num local específico. Para escrever basta ter um portátil e música nos ouvidos. Tenho essa reação pavloviana, confesso. No caso dos guionistas que trabalham comigo é diferente. Relativamente ao Scandal é um espaço pequeno onde estão oito pessoas o dia inteiro e onde há uma discussão de ideias constante. O contrato que tenho com os atores é: nós escrevemos a história, eles fazem exatamente o que está escrito, eu vejo e percebo o que podemos fazer a seguir com base nas suas performances.

E no caso da equipa que trabalha consigo?
Existe uma grande colaboração de parte a parte. Passamos muito tempo juntos e é tudo analisado ao momento. No caso da Anatomia de Grey é diferente, temos 14/15 guionistas que estão divididos em três salas. Sou eu quem diz o que vai acontecer a seguir, se não disser nada então não acontece nada [risos]. Mas são todos maravilhosos e já estão envolvidos neste projeto há tanto tempo que já sabem o tom da série. Eu apenas dou as diretrizes, não vou lá reescrever.

Se antigamente fazer televisão era quase desprestigiante para um ator, atualmente verifica‑se o oposto, com várias estrelas de Hollywood a assumirem o papel de protagonistas de séries. Partilha a opinião de que estamos na idade de ouro da televisão e que o cinema já viveu melhores dias?
Acho que os filmes continuam a ser maravilhosos e que continua a ser uma indústria em que acontecem coisas fantásticas. As pessoas dizem sempre que algo está morto, sejam os filmes, as sitcoms ou a ficção, mas é tudo cíclico. O cinema vai voltar de uma forma diferente. Neste momento, o que vende são os blockbusters, mas se calhar a determinado momento alguém vai fazer um filme independente que as pessoas vão adorar e de repente vão começar todos a fazer filmes independentes. Atualmente, temos muita sorte porque na televisão temos a oportunidade de desenvolver uma personagem e os atores conseguem dar‑lhe o calibre que pretendem.

Lançou o livro Year of Yes no ano passado, através do qual quis testar os seus maiores medos, tendo decidido dizer «sim» a tudo e aceitar todos os desafios. Sente que a sua vida mudou?
O que acho interessante é que mudou a forma como trabalho, como lido com os guionistas, e a forma como consigo gerir o meu tempo para escrever. Além disso, fez também com que me divertisse mais a fazê‑lo. Acho que essa foi a grande diferença.

As séries produzidas pela Shondaland têm uma componente social e política muito forte. Acredita que a arte e o entretenimento também passam por aí?
Não considero que estejamos a trabalhar no sentido do comentário político. Não acho de todo que as nossas séries tenham uma mensagem escondida. Apenas tento escrever histórias que sejam interessantes para mim. Ponto final. É óbvio que ao fazermos uma série cuja história se passa na Casa Branca, ela acaba inevitavelmente por falar de política. Mas não estou a tentar transmitir qualquer tipo de mensagem nesse sentido.

A Shondaland produziu o documentário Hillary, que narra a vida e a carreira de Hillary Clinton, candidata democrata à presidência dos EUA, que saiu derrotada. De quem partiu a ideia?
Tenho sido politicamente ativa. Sou apoiante de Barack Obama e trabalhei muito com a Hillary Clinton. Na verdade, foram eles [Partido Democrata] que pediram, e achei que era uma grande honra e um grande desafio.

Como é que foi a experiência de ter tido em mãos um projeto deste género?
É completamente diferente e fora daquilo que fazemos na Shondaland. Aquilo que fazemos é ficção e isto é o oposto. Mas fiquei orgulhosa de o ter feito.

Sentiram algum tipo de pressão no decorrer deste trabalho?
Acho que não pensámos na pressão, apenas sabíamos que tínhamos um trabalho a fazer dentro de um limite temporal. E isso é bom porque faz que a pressão se restrinja apenas a ter tudo feito a tempo e horas.

E relativamente ao resultado final? Hillary deu a sua aprovação ou tiveram de fazer alguma alteração de última hora?
Não. Ficámos todos muito orgulhosos do resultado final.

Como analisa a campanha eleitoral que foi feita pelo partido democrata, e que acabou por fazer perder para Donald Trump e os republicanos nas eleições presidenciais?
Acho que nem preciso de dar a minha opinião porque a campanha falou por si própria e de forma muito clara.

Acha que era a altura de uma mulher se tornar presidente dos Estados Unidos da América?
Acho que era a altura de a Hillary Clinton ser presidente dos EUA. Não tem que ver com o facto de ser uma mulher a tornar‑se presidente dos Estados Unidos agora, porque já era altura de o ser há 200 ou 300 anos.

Tinha esperança de que Hillary Clinton viesse a tornar‑se a próxima presidente dos Estados Unidos?
Sim, tinha essa esperança.