Viagens imprudentemente poéticas

Notícias Magazine

Inventei há alguns anos, por ócio de desempregado, uma espécie de jogo fotográfico. Consiste em criar imagens de deslocações no espaço e no tempo em que não se sai verdadeiramente do lugar. As fotografias podem ser partilhadas nas ditas redes sociais como coisa de verdade e moderninha, e desse modo obter likes, smiles e corações como se deveras estivesse viajando pelo mundo. É, a seu modo, uma espécie de literatura, ou de ficção da ficção em que se transformou o incessante turismo das outras pessoas.

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Casmurro como sou, aborrecem-me muitíssimo os terminais de aeroporto, as filas para o check-in, os detectores de metais, as revistas corporais aleatórias, o extravio de bagagens e os polícias de metralhadora ao peito. Por isso, aquilo que faço sempre que quero estar noutro sítio é abrir um livro. Evado-me assim sem complicações e a bom preço. Vou à estepe gelada e ao Pampa, à crueldade islandesa e ao Brasil de outros tempos. Vou a LA e a Lourenço Marques, à Índia e aonde mais me apeteça. Depois, querendo, posso fotografar um boneco qualquer diante de um postal bonito e é quase como se lá tivesse estado. Viajei há pouco para o Japão antigo que o Valter Hugo Mãe inventou para o romance Homens Imprudentemente Poéticos e entusiasmei-me deveras. É o mais delicado dos livros do Valter, entretecido com o gesto preciso e paciente de um artesão – aquele que, na definição que está no próprio livro, devolve os materiais à vocação que eles detêm por natureza. Nele o Valter parece um menino a inventar jogos com palavras: uma criança a inventar um Japão falso pelo qual se pode passear e sentir-lhe os cheiros. Quase tão mentiroso como as minhas fotografias de viagem, o Japão do romance do Valter possui todavia uma verdade própria que talvez supere a verdade comum. Nele reencontrei, por exemplo, o maravilhoso jardim de shibazakura do senhor Kuroki, de que falei na crónica de março. O jardim do romance é, porém, amanhado na orla da floresta pelo oleiro Saburo, que assim procura evitar uma desgraça anunciada. Não se trata, portanto, do mesmo jardim da crónica. Mas, para «um homem com certo descuido para a sensibilidade» e imprudentemente poético, o jardim é exatamente o mesmo ou ainda melhor. Hei de, pois, fotografar-me nele.

(Fotografia de Manuel Jorge Marmelo)

[Publicado originalmente na edição de 30 de outubro de 2016]