Uma minissaia e um niqab em Londres

Notícias Magazine

Uma mulher toda coberta, de niqab e abaya, escolhe uma minissaia numa loja. Haverá melhor metáfora para a liberdade, ou a falta dela?

Londres, numa manhã de fim de verão. O calor aperta como é raro nesta terra fria. Nunca pensei fugir do sol em Londres. Já é setembro, mas estão 32 graus. Entro numa loja Banana Republic, em Kensington, tanto para aproveitar o ar condicionado como para ver as modas – uma coleção de outono leve e os habituais saldos permanentes a que os anglo-saxónicos nos habituaram. Restos de coleção de verão. Uma minissaia vermelha com 70 por cento de desconto? Em quanto é que fica, vou à etiqueta para fazer as contas, mas há uma mão que a agarra antes de mim.

O meu olhar, primeiro distraído, repara que a mão termina numa mancha negra, só se veem praticamente os dedos esgios. Olho com mais atenção – curiosidade desperta – e vejo que a mão pertence a uma mulher que veste uma abaya e um niqab, está coberta dos pés à cabeça. Na cara, onde tem apenas os olhos de fora, há um fio que prende o tecido que cobre o nariz e o liga à parte de cima. E ali está ela, toda coberta, a escolher uma minissaia – e não é preciso mais para acentuar a ironia da cena.

Londres está quente de mais para abayas. Está mais para minissaias. Apetece descobrir o corpo, como tantas e tantas raparigas na rua, que, de tão despidas, se tornam exemplos reais da lei – simplista, como são sempre as generalizações sobre os povos – que diz que as britânicas ficam sempre péssimas no verão, porque não se sabem vestir para o calor e têm a pele sempre demasiado branca para ficar bem à mostra. E é pele à mostra que se vê: pernas, braços, colo, em saias e calções curtos, decotes profundos, alças, muitas.

Aquela mulher, jovem, apesar de ter comprado uma minissaia naquela loja, não a vai usar. Ou vai usar, mas ninguém a vai ver, a não ser talvez as amigas, num local fechado e seguro. E agora entra o coro do politicamente correto, a dizer- me aos ouvidos que a escolha é dela, e ela fará o que quiser. E que o que é grandioso, na civilização que criámos neste Ocidente do mundo relativo, é que ela pode usar uma abaya e estar ao lado de uma mulher toda nua, por causa do calor. E eu respondo que não. Que me dá um frio na espinha de cada vez que vejo e olho nos olhos uma mulher de véu, hijab, niqab ou burqa – e penso que nada disto pode ser bom, um ponto é tudo.

Já não podia ser bom que alguém limitasse assim a sua liberdade – sobretudo quando a demonstra, depois, numa minissaia que compra – cobrindo-se. E é pior quando, ao cobrir-se, aquela mulher está a assumir a sua desigualdade. Está a dizer que é diferente, que é inferior. Seja aos olhos concupiscentes dos homens seja aos de Deus.

É tão simples, isto. Cobrir a cabeça e o corpo, por leis que diminuem uma mulher simplesmente por ser mulher, nunca pode ser considerado uma forma de liberdade. Será outra coisa, liberdade, não. Olho a mulher da abaya nos olhos e apetece-me gritar-lhe isto mesmo. Perguntar-lhe se não vê o que está a fazer. Não o faço, claro, por respeito e civilidade. Mas sei que talvez um dia venha a arrepender-me, perante a minha consciência, de não o ter feito. Porque, como dizia o escritor V. S. Naipaul, na semana passada, na entrevista que lhe fiz, em Londres, «é a nossa liberdade que está a ser posta em causa».

[Publicado originalmente na edição de 25 de setembro de 2016]