Tua: a barragem que vai engolir um vale

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O grande paredão da barragem está construído, os carris do comboio foram arrancados, até ao fim do ano o vale fica submerso. É isto o progresso. É? O governo acaba de rever o Programa Nacional de Barragens, haverá demolições porque os cursos de água também precisam de correr livres. O Tua, no entanto, já não se salva do afogamento. Da contestação já conhecemos a história. Esta é a reportagem da despedida.

Pão, vinho e presunto. Maria Augusta Teixeira, 76 anos, vai compondo a santíssima trindade da mesa transmontana ao mesmo tempo que desfia o rosário das perdas. «Já arrancaram as melhores laranjeiras, agora são os sobreiros e as oliveiras. Já arrancaram os carris do comboio, já levaram a brita. Pronto, morreu o vale», e a frase pode soar a resignação, mas carrega uma raiva de punhos cerrados. A sua aldeia, a do Amieiro, é a que vai ficar mais rente à água quando a barragem de Foz Tua começar a encher. Estes meses são os mais difíceis, tudo o que a barragem vai afogar está a ser arrancado pelos bulldozers. É uma agonia ver as máquinas roubarem-lhe, uma a uma, as melhores memórias.

Treze quilómetros para sul, onde o rio se encontra com o Douro, um enorme paredão cinzento ergue-se entre duas arribas apertadas. A barragem de Foz Tua está praticamente concluída, a EDP diz que está a dias de começar a encher a albufeira e, nos próximos meses, a água vai inundar 420 hectares de vale – até à cota 170. Não se afogarão aldeias inteiras, mas 19 quilómetros de ferrovia estão a ser eliminados. Os carris e a brita já foram retirados e cinco estações do antigo percurso foram implodidas. Os túneis foram betonados, neste momento estão a roubar-se sobreiros, oliveiras e laranjeiras à terra que há de ser submersa. «A EDP disse-nos que por cada árvore retirada hão de plantar cinco», diz José Marques, presidente da União de Freguesias de Castanheiro do Norte e Ribalonga, que acolhe o território encharcado no concelho de Carrazeda de Ansiães, um dos mais afetados. «Aqui não há baldios. O Alto Douro está parcelado e totalmente aproveitado, não vai haver espaço para plantar nada. O que se perder, perdido está.»

Na casa de Augusta vai-se cortando o presunto. O marido e o irmão à mesa. António Teixeira, companheiro da vida toda, tem 77 anos e 38 de trabalho nos caminhos de ferro. Jorge Alexandre, com quem a mulher cresceu nas margens do charco, saiu novo para ver o mundo, como quase todos os homens do Amieiro. «Uma árvore não é só uma árvore», diz o velhote. «Quando vemos a nossa terra a perder tudo, gente e a força dos braços, só nos restam os sobreiros para lembrar o passado.» Levanta-se e propõe uma visita ao caudal. Vamos lá.

Não há estação de comboio naquela margem, as aldeias do lado de Alijó sempre viram a ferrovia ao longe. Mas no Amieiro havia um teleférico para passar ao apeadeiro de Santa Luzia, construído depois de uma cheia levar a ponte. O homem aponta as fundações do que um dia foi a conexão do povoado com o mundo. «Em dias de feira vinham as carruagens cheias, punham-se cinco ou seis pessoas carregadas de cestas e atravessavam.» À noite paravam vagões carregados de centeio, contrabando de Bragança. «Vinha o cereal escondido debaixo da palha. Íamos apanhá-lo ao outro lado do rio para moer durante a noite, às escondidas. Metade dos pães iam para os guardas, os outros para o povo.» A linha também disfarçava a miséria.

Já nada daquilo existe. No terreno está marcada a cota onde chegará a água, abaixo das casas mais descidas do vale, mas acima do que um dia foi a estação. A morte do comboio foi decretada oficialmente a 22 de agosto de 2008, depois de uma série de descarrilamentos terem roubado a vida a quatro pessoas. No ano seguinte, o documentário Páre, Escute, Olhe, de Jorge Pelicano, fazia do abandono da linha do Tua a metáfora do esquecimento do interior do país. A ferrovia, construída em 1887, deixara de chegar a Bragança em 1992 e, nas duas décadas seguintes, foi adiando a promessa de funeral. Agora não há nada a fazer. Restam meia dúzia de quilómetros entre Mirandela e o Cachão, é o metro de Mirandela. Neste momento, fazem-se obras até à Brunheda. «Para nós nada, só esperar a morte», diz Jorge do Amieiro.

Uma viagem no metro de Mirandela custa 1,70 euros e hoje a carruagem traz uma única passageira, Cristina Ferreira, 53 anos. Vai ver o neto à cidade, bendito comboio que lhe sai mais barato que a carreira. Entra no Cachão, onde até 1992 um complexo agro-industrial produzia mel, castanha e fumeiro para o país inteiro e assegurava emprego a mais de mil almas. «Hoje nem temos um supermercado. O metro serve-nos para isso e para os gaiatos irem às aulas, que nas aldeias já não há escolas.» A mulher saúda a extensão da linha em curso, depois inquieta-se. «Então e quem se vê sem comboio, fica esquecido nos montes?»

Sim e não. O ministério do Ambiente diz que a EDP está obrigada a cumprir a Declaração de Impacto Ambiental, que prevê o contrato com um operador turístico, mas que sirva também as populações locais. A NOTÍCIAS MAGAZINE sabe que esse contrato, depois da falha do concurso público por falta de candidaturas, foi atribuído ao empresário portuense Mário Ferreira, dono da Douro Azul. É a seu cargo que agora decorrem as obras de restauro da ferrovia nos 33 quilómetros que separam a Brunheda de Mirandela. A Agência de Desenvolvimento do Vale do Tua (ADVT), uma parceria da EDP com os cinco municípios que vão perder terreno para a barragem – Alijó, Carrazeda de Ansiães, Mirandela, Murça e Vila Flor –, diz que o vale do Tua poderá ser agora atravessado de barco, uma parte, e comboio, outra. Sobretudo pelos forasteiros.

O problema é que, para as aldeias que antes eram servidas pela ferrovia, a solução não serve. «Os acessos a estas aldeias não têm outra solução que não seja a rodovia», diz Fernando Barros, presidente da câmara de Vila Flor, que ocupa a liderança rotativa da ADVT. Em paisagem de contracurvas, os autocarros não chegam a grande parte destas aldeias. «Pois não, por isso teremos de manter o sistema atual de transporte por táxi.» Quem quiser viajar no antigo percurso telefona para a central e um carro vem buscá-lo à aldeia. A medida, em aplicação desde 2008, tem no entanto sido alvo de contestação. Já em maio, o autarca de Mirandela ameaçou cortar o programa, dizendo que ele tinha custos incomportáveis para a autarquia. O governo veio a público dizer que assegurava o pagamento da fatura durante um ano. A partir daí, não se sabe quem vai cuidar dos transportes no Tua. O ministério do Ambiente está a negociar com as autarquias do país inteiro um plano de transporte flexíveis para o interior. Mas no Tua, onde o acordo previa que a EDP pagasse 10 milhões de euros pelo plano de mobilidade, não há um projeto para quem lá vive. Só para quem vem de visita.

Na aldeia de Tralhariz existiam, até há um par de semanas, oito crianças. Agora são quatro. Fernando Machado tem 40 anos e quatro filhos, dois pares de gémeos. O Bruno e a Bruna têm 13 anos, o Gonçalo e o Lourenço têm dois. Viviam ali, perto da antiga estação que já não existe. «Quando eu era miúdo, havia escola, crianças, agora não», diz o pai. A decisão de sair da terra onde cresceu custou-lhe, mas tornou-se inevitável.«Aqui não há nada para os miúdos fazerem, praticamente só podem brincar uns com os outros. Têm de perder tempo com os transportes para a escola, não podem fazer atividades extracurriculares.» Por tudo isso, mudaram-se para Carrazeda de Ansiães, sede de concelho e urbanidade mais próxima. A vida no campo é difícil.

Em Ribeirinha, por exemplo, só há dois rapazes novos. É o que diz Maria Adelaide Novo, que tem 78. «Um deles é o meu Mário, tem 50 anos.» Mãe e filho vivem na antiga estação de caminhos de ferro, onde agora há máquinas a colocar brita e a recuperar carris – é naquele troço de percurso que o comboio vai voltar a circular. A mulher instalou-se ali há 44 anos, quando os comboios circulavam noite e dia e às quatro da tarde vinha o vagão-correio.

«Aqui não chegam os autocarros, o táxi vem buscar-nos a pedido, mas temos de ligar para o telemóvel do número fixo, o que é uma despesa muito grande para quem tem reforma de 300 euros.»

Não guarda esperanças para a ferrovia que vai ser recuperada, ainda se voltasse a chegar ao Tua, e a Bragança, e parar na Ribeirinha para largar juventude e força. Mas não, ali já ninguém quer desaguar.

Entre 2001 e 2014, segundo a Pordata, Trás os Montes passou de 450 mil para 400 mil habitantes. O índice de envelhecimento na região do Tua, que há 15 anos era de 171 idosos por cada 100 jovens, subiu nos últimos dados (2014) para 266 idosos por cada 100 jovens. João Joanaz de Melo ainda tem esperança que a barragem seja demolida. O professor de engenharia do ambiente na Universidade Nova de Lisboa, ativista do grupo ambientalista Geota e líder da Plataforma Salvar o Tua, diz que esta construção não faz sentido. «Foz Tua destrói um património social único. Há um conjunto de atividades económicas que desaparecem e extingue-se a derradeira possibilidade de ferroviária no Nordeste do país, que aumentada poderia chegar a Puebla de Sanábria e permitir a ligação do Douro à alta velocidade espanhola» O pior, diz, é que a barragem nunca se pagará a si própria. «A abertura do mercado ibérico de energia e a baixa da procura criou um novo cenário entre preço de bombagem e turbinagem que torna impossível a rentabilidade desta hidroelétrica. É um elefante branco que vai encarecer a vida das famílias portuguesas e não trará qualquer benefício.»

No final de abril, o ministério do Ambiente anunciou uma revisão do Plano Nacional de Barragens. Além da demolição de oito açudes, o governo cancelou a construção de duas grandes estruturas – Girabolhos e Alvito – e suspendeu a barragem de Fridão. O comunicado à imprensa referia que este era um passo importante na renaturalização dos rios e o relatório refere que o país precisa de um regime de caudais ecológicos sustentáveis. Mas nada é dito sobre projetos já em marcha. Em resposta à NOTÍCIAS MAGAZINE, o ministério afirma estar atento ao processo em Foz Tua mas que ele não vai ser alvo de revisão.

Só os custos de construção cifram-se nos 300 milhões de euros e uma parte do projeto é assinada por Souto Moura. É uma obra cara, que o Estado concessiona à EDP durante décadas, mas a quem paga pela exploração. «O problema é estarmos a produzir em excesso, quando sabemos que o armazenamento de energia sai caro às contas do estado», diz Joanaz de Melo. «Nós pagamos às concessionárias pelos planos de reserva, na eventualidade de algum sistema falhar.» Segundo o ativista, cada país deve ter uma capacidade de resposta dez por cento superior à produção máxima, mas o plano atual vai criar um excedente de potência superior a 50 por cento. E isso obrigará as famílias a pagarem às concessionárias algo desnecessário. «Segundo as nossas projeções, isto implica um acréscimo de cinco por cento da fatura da luz, por algo que não tem razão de ser. A única coisa que estamos a fazer é encher os bolsos aos empreiteiros, à custa dos cidadãos.»

No passado domingo, o jornal Público perguntava à EDP a questão essencial: qual é o racional económico que continua a apontar o início da operação da central Foz Tua como essencial para o plano eléctrico nacional? A resposta foi que as obras estavam em fase de conclusão e não fazia sentido pensar em outro cenário que não fosse o fim dos trabalhos. Ou seja, ninguém comenta os ganhos reais que a barragem pode trazer. «Países como França, Espanha e os Estados Unidos estão a destruir barragens para os rios correrem livres». diz o líder da Plataforma. «E nós criamos a ilusão de sermos campeões das renováveis, mas as faturas de eletricidade não descem. Como é que haviam de descer, se pagamos em excesso às concessionárias por barragens que não servem para coisa nenhuma?»

Para os autarcas do vale do Tua, no entanto, o empreendimento é vista como oportunidade. A ADVT anda a dar cursos de empreendedorismo, vêm aí novas oportunidades de emprego, o turismo vai crescer. A EDP também vai investir no restauro do património de igrejas e monumentos nas redondezas. Mas o povo do Fiolhal, que todos os dias vê a barragem a crescer, não acredita em bons presságios. «Esperávamos empregos mas só dois ou três homens os arranjaram nas obras», diz Miguel Baptista, merceeiro ambulante, que todos os dias pega na carrinha para vender hortaliças e enlatados nas aldeias. «Ao todo, aqui no vale, nem 30 terão encontrado trabalho. E mesmo esses vão direitinhos ao fundo de desemprego quando isto acabar.» Então e o turismo? «Vêm os barcos, que passam e não param. Isso vai trazer o quê ao povo da terra, se o dinheiro abala todo para fora?»

À volta da carrinha de Miguel Baptista juntou-se agora um magote de gente, parece romaria de agosto. E quase todos com a mesma queixa, que a água vai fazer subir a temperatura do vale, e que a melhor vinha do mundo vai ganhar oídio, e que lá se vai a pouca riqueza que sobra. O microclima do Tua é específico, sim. Verões não faltam com temperaturas a subirem bem acima dos quarenta graus – é por isso que aquela é terra de olival, montado e laranjal. Os estudos de impacto ambiental não vaticinam morte à uva, mas aquela gente diz que é cantiga, são gerações e gerações a vindimar nos setembros inclementes.

A Herdade do Esporão está em campanha contra a construção da barragem. Aliaram-se à Plataforma Salvar o Tua e filmaram quatro documentários, aos quais deram o nome Os Últimos Dias do Tua. São, também eles, assinados por Jorge Pelicano. Os efeitos estão a sentir-se na UNESCO, para onde foram enviadas mais de 22 mil cartas a pedir a interrupção das obras. O Vale do Tua faz parte do Alto Douro Vinhateiro, classificado como património da Humanidade. «Se a barragem encher, nada será como antes», diz Pedro Santos, do projeto Rios Livres da Geota. «Aqueles solos tornar-se-ão irrecuperáveis, os níveis de humidade alterar-se-ão, o modo de vida será posto em causa. Os peixes deixarão de ter rio para subir, as lontras deixarão de poder caçar e as praias deixarão de ter areia.»

Restarão as memórias, sim. Como a de Joaquim Filipe, transmontano do Tua, que nasceu em 1880 em Castanheiro do Norte. Foi nome forte da oposição a Salazar, esteve preso em Caxias e no Aljube e nos anos quarenta regressou à terra. Médico do Exército português, cumpriu serviço nas colónias, primeiro em Cabo Verde, depois na Guiné. Em 1916, rumou a São Vicente, para controlar uma epidemia de febre amarela que tomava conta dos marinheiros que desembarcavam no Mindelo. Os bons serviços garantiram-lhe a Ordem de Torre e Espada e no ano seguinte foi colocado na ilha da Boavista, onde se perdeu de amores por uma mulata chamada Benedita, de quem teve dois filhos.

Com ela seguiu em 1921 para a Guiné, onde permaneceu dez anos. Republicano convicto, aplicou-se seriamente na sua especialidade, doenças tropicais. Mas era um crítico feroz do regime e, em 1931, recebeu ordem de prisão. Exilou-se em Espanha mas, em 1938, a PIDE capturou-o. Quando saiu em liberdade, rumou a São Mamede de Ribatua, onde, entre vindimas, se apercebeu da existência de doenças dos trópicos no vale. Investigou homens, cães e poças de água para determinar que havia mosquitos a transmitirem Kala Azar, a febre do dundum, na região. «Era aquele calor que as ravinas concentravam que permitia aquele microclima único», diz agora Joaquim Filipe, seu neto, também médico. «Dava para os homens assarem sardinhas nos carris do comboio e os mosquitos levarem as doenças dos trópicos.» Agora, que o rio vai ser travado e as águas vão molhar a terra, não haverá calor nem mosquitos. Só recordações.