Ter menos dedos

Notícias Magazine

Django Reinhardt tinha menos dedos do que a maior parte dos guitarristas. Um acidente, um incêndio, fez que tivesse de reinventar a sua maneira de tocar guitarra devido à imobilização de dois dedos da mão esquerda. Usava um cigarro na boca, cabelo preto muito bem penteado e um bigodinho de galã de cinema. Os seus dois dedos operacionais da mão esquerda (o polegar não conta, que só servia para apoiar o braço do instrumento) tinham a liberdade de se passear pelas notas que a guitarra tem escondida na sua madeira e nas suas cordas. Com menos dedos do que os outros virtuosos, acabou por demonstrar que mais importante do que ter carne e matéria, é ter o espírito necessário para se conseguir fazer as coisas mais incríveis que se conseguem fazer com uma guitarra.

O guitarrista de jazz, Pat Martino, quando acordou de uma operação a um aneurisma, não se lembrava de como tocar guitarra. Reaprendeu a ouvir os próprios discos. Platão diria que a vida de Pat Martino seria uma corroboração da anamnese. O que é certo é que este guitarrista se tornou o virtuoso que era antes da operação. Ou ainda melhor.

Link Wray queria ser cantor. Durante a Guerra da Coreia, apanhou tuberculose e perdeu o pulmão esquerdo, deixando de poder cantar. A partir daí, dedicou-se à guitarra, criando um estilo muito próprio e deixando como legado a noção de power chord. A revista Rolling Stone coloca-o entre os cem melhores guitarristas de sempre.

O que me fascina nestas histórias – neste caso, de guitarristas – é o facto de limitações graves ou muito graves não terem impedido a carreira dos dois primeiros exemplos, de Django Reinhardt e de Pat Martino, e de terem acabado por revelar um guitarrista, no caso de Link Wray. Esta superação de reveses, esta capacidade de, com menos, chegar mais longe, não é para mim um encómio de austeridade e de cortes – não poderia ser, pois estes casos são exceções e não uma regra –, mas sim um exemplo de tenacidade e resistência. Mostrar que, mesmo quando nos dilaceram, nos oprimem de alguma maneira, há quem não desista e acabe por vencer. Podemos fazê-lo a tocar guitarra ou com qualquer outra forma de expressão, profissão ou emoção. O importante é saber que é possível.

[Publicado originalmente na edição de 31 de janeiro de 2016]