Quando troveja

Notícias Magazine

Houve um tempo, se calhar feliz, em que o mundo ainda não tinha sido semeado de antenas, cataventos da energia eólica e para-raios. As trovoadas haviam, então, de parecer coisas medonhas, com os seus raios luminosos fendendo o céu e o estrondo dos trovões ribombando na paisagem como se alguém se tivesse posto a trocar o sítio aos móveis do universo. E foi assim durante tantos milhões de anos que até a mística e imaginária proteção providenciada por Santa Bárbara é, feitas as contas, uma invenção recente.

A despeito do medo atávico que ainda se revela nas crianças pequenas, somos hoje capazes de perceber a aproximação de uma tempestade como um poderoso espetáculo – e pouco mais. Vejo a trovoada do lado de dentro da janela, abrigado, confortável e certo de que, quando enfim chegarem ao sítio onde estou, as faíscas hão de desabar sobre o para-raios que há na fachada norte do prédio, sacudindo o edifício sem que isso represente perigo algum.

Impressiono-me, ainda assim, com o brutal poder dos momentos em que parece «cair o Céu dos eixos sobre a Terra», que Camões descreveu n’Os Lusíadas. E enterneço-me com o modo ingénuo e quase infantil que certas comunidades têm de lidar com os «relâmpagos medonhos» e os «feros trovões». Na aldeia do Piódão, por exemplo, as ombreiras das portas são encimadas por pequenas cruzes feitas de galhos de oliveira, alecrim ou louro, que, acredita-se ali, asseguram proteção contra os raios depois de serem benzidas no Domingo de Ramos. Pequenas cruzes bastante semelhantes às do Piódão são também utilizadas a muitos quilómetros de distância, na aldeia de Monsanto, servindo de base à confeção de umas bonequinhas de pano sem rosto, as marafonas, que terão o poder de livrar as casas das trovoadas (e também do mau olhado e da infertilidade).

O adágio segundo o qual só nos lembramos de Santa Bárbara quando troveja diz menos, porém, sobre o fantástico poder das tempestades do que do proverbial improviso dos portugueses e da tendência que temos para a imprevidência. Das contas do Estado às coisas mais essenciais, todos os dias nos comportamos como garotos assustados. Em vez da cautela, preferimos a superstição – como se ainda vivêssemos em grutas.

[Publicado originalmente na edição de 15 de maio de 2016]