Hoje estamos como ontem

Notícias Magazine

Stefan Zweig foi um homem de ontem, num tempo em que o ontem custava a morrer. Na véspera de se suicidar, em Petrópolis, ele mandou ao editor, pelo correio, o seu último livro, O Mundo de Ontem. Tinha começado a escrevê-lo quando se soube a prazo, Hitler chegara ao poder. O livro abre com «Nascido em 1881, num grande e poderoso império…» e continua descrevendo a sua Viena natal. A pátria, mesmo para um judeu cosmopolita, é sempre a pátria da sua infância. Ao fim da vida, Zweig exilou-se por Londres, Nova Iorque, Rio… Em 1938, passou por Lisboa, ficou três semanas. O Diário de Notícias publicou uma foto dele, dândi, de sapatos negros e brancos, nos jardins do Hotel Atlântico, no Estoril – rico, famoso e perseguido. Acabou refugiando- se em Petrópolis, cidadezinha brasileira, vagamente imperial.

Uma tarde de 1942, ele e a mulher, Lotte, tomaram barbitúricos e deitaram-se na cama. Ele deixou um bilhete que terminava com uma esperança em que não acreditava «(…) aos meus amigos, que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite.» A frase final: «Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.»

Um jornal francês, Le Petit Parisien, apoiante dos ocupantes nazis, noticiou a morte na mesma página em que um artigo comentava a afirmação recente de Adolf Hitler: «Os judeus serão exterminados.» Nesse dia, o DN dedicou um texto do seu diretor, Augusto de Castro, espantado pelo suicídio: «Nenhum forte problema pessoal, nenhuma circunstância moral ou física lhe tinham fechado as portas da vida.» Como se a noite mais negra, sentida por Zweig, não pairasse…

O mundo de ontem de Zweig era o que antecedia a I Guerra Mundial, na mais extraordinária das Europas, a Viena do Império Austro-Húngaro. Cruzada por croatas, húngaros, checos, judeus e italianos, deu-se uma cultura em que grandes nomes da pintura (Klimt), da música (Mahler), da literatura (Karl Kraus) e do pensamento (Freud) não eram avulsos mas um apuramento natural. A guerra, a Grande Guerra, como iria chamar-se com a presunção de ser única, ia acabar com esse maravilhoso cosmopolitismo.

Na verdade, a luz europeia que Viena significava não se acabou nos quatro anos de trincheiras da I Guerra Mundial, foi-se acabando. O que se seguiu aprimorou o mal. Nas duas décadas e meia que lhe restaram para viver depois do armistício – anos em que ele escreveu romances bons e populares (24 Horas da Vida de Uma Mulher, O Jogador de Xadrez…) e exercícios de admiração a grandes europeus, nas biografias de Fernando Magalhães, Montaigne, Erasmo… – Stefan Zweig ficou sempre marcado pelo horror da guerra. De tal modo se entranhou de pacifismo que acabou por não se dar conta de que a besta saída da guerra, o nazismo, obrigava à guerra.

Essa, a explicação maior para o suicídio. Não pelo remorso por não ter atacado suficientemente Hitler – como evocar isso com alguém que viu os seus livros queimados pelos nazis e foi expulso do seu país? – mas pela suspeita de uma vida que ficou sem sentido por não se ter dado conta do horror absoluto. E, no entanto, aquele cuidado de mandar a sua última obra para o editor diz mais do que uma simples obrigação profissional. O Mundo de Ontem não se chama só assim, tem um subtítulo, e esse é: Memórias de Um Europeu. É o testamento de alguém que se deu conta da causa do mal, os nacionalismos, e é a última homenagem a uma ideia querida, a Europa.

Em 1942, o livro chegou tarde. Mas os escritores não são para prever. São para descrever. E lido hoje faz-nos tão amargamente lúcidos como os que perderam Viena.

[Publicado originalmente na edição de 15 de maio de 2016]