Sem passas ou badaladas

Notícias Magazine

Marta, my dear,

Leio a sua carta em Cantelães. Lareira acesa, um copo de vinho na mão – talvez sobreavaliado por exibir o nome de uma avó… –, estômago aconchegado, da cozinha onde a tribo jantou chegam risos; ao longe os quixotescos moinhos da Cabreira piscam-me olhos vermelhos por noturnos. Escolher o tema com manha cautelosa, in vino veritas, ainda começo o ano a fazer strip, eis a NOTÍCIAS MAGAZINE com bolinha vermelha no canto superior direito! E no entanto…, apetece-me falar de desejo. Ou desejos?

Vamos por partes: na República, Céfalo questiona Sófocles, por obra e arte de Platão – «Como te comportas, Sófocles, em face do amor? Ainda és capaz de possuir uma mulher?»

(«ser capaz de…», no dialeto masculino, rima sempre com ereção).

Mas Sófocles responde noutro registo: «Silêncio! Amigo, foi com a maior satisfação que o pus de lado, como liberto de um dono raivoso e selvagem.» E Platão acrescenta, pela voz de Sócrates: «De qualquer modo, com efeito, relativamente aos sentidos, a velhice traz muita paz e liberdade. É que quando os desejos se acalmam e serenam, a frase de Sófocles realiza-se plenamente: fica-se liberto de inumeráveis e furiosos donos.»

Os desejos… Incluindo «o» desejo. Atendendo ao aumento da esperança de vida, o tema ganha ainda maior importância. Não duvido de que Platão aproveitasse esta maior «liberdade» para filosofar, mas ao longo dos anos escutei milhares de pessoas acorrentadas a expetativas alheias que incluíam tricot, dominó e transporte dos netos. Tudo sobre pano de fundo culturalmente pintado de negro – o desejo não sobrevive ao envelhecimento.

Aceito a suspeita de falta de isenção, mas é falso. Di-lo-ia menos frequente e contudo mais picuinhas, fazendo finca-pé sobre condições ignoradas pelo juvenil, que, de tão curioso sobre si mesmo e o dos outros, facilmente imita as abelhas e saltita de flor em flor, ao menos no imaginário. Amadurecido, como um bom vinho, recusa pressas e veste a dança dos corpos de roupagens que a anunciam e prolongam para lá do espasmo, damas de honor sem as quais a boda perde brilho: cumplicidade, riso, ternura.

Recordo meu filho mais velho, escandalizado pela pressa distraída com que o ignorante pai despejara um copo de vinho de sólida reputação, «por favor, tens de saborear…». Penso hoje que o desejo merece a mesma reverência, sob pena de lhe faltarmos ao respeito e, pior!, sairmos prejudicados. Significa isto menos ternura com roupas a voar, telefones em greve, empregadas de limpeza desesperadas perante o imperturbável do not disturb, alguém que, sacudida pelo riso, nos decreta insaciáveis, pede pessangas, faz promessas para a manhã seguinte, mas segue o velho «não deixes para…»? De modo algum. Não aprecio champanhe, mas gosto de ver a rolha fugir e o líquido jorrar, cercado por taças ávidas; carpe diem!

Mas a vida e o meu filho ensinaram-me o gozo da pausa, do erotismo difuso, da viagem lenta ao fim do copo e do corpo, da luz já outonal de Setembro, dos adágios tocados a quatro mãos e dois imaginários; do desejo vintage!

(E se escandalizei os enólogos?).

[Publicado originalmente na edição de 10 de janeiro de 2016]