Sapatos de salto de seda colorida

Notícias Magazine

A alta-costura entrava lá em casa de vez em quando, trazida pela avó. Não me entendam mal. Ela era dama de companhia, digamos assim, de uma senhora da chamada alta sociedade que de vez em quando despachava vestidos, casacos, sapatos aparentemente novos, talvez para abrir espaço a novas aquisições. Era estranho porque era inimaginável alguém na família calçar sapatos de salto alto forrados de seda, o mesmo tecido dos vestidos exuberantes que também vinham no pacote.

Nunca conheci a tal senhora. Eu era muito pequena nessa altura e não tinha acesso às confidências, apenas apanhava no ar frases ou palavras que para mim significavam a vida da avó fora da família. Hoje são ideias vagas, qualquer coisa como não a vermos durante uns tempos porque ia para Marbella, cidade de que eu apenas conhecia o nome, as roupas e os sapatos.

Mesmo quando estava parada, a avó Filipa nunca estava sem fazer nada. Não se dava ao luxo de ler a não ser o missal, mas tricotava sucessivos xailes de boa lã e costurava pequenos sacos de alfazema, coisas para vender que lhe davam para as pequenas despesas. Ainda guardo alguns saquinhos, o cheiro já perdido mas ainda nas minhas gavetas de roupa, e por vezes penso que vou enchê-los de alfazema nova, mas esqueço-me.

A alta-costura entrava portanto lá em casa na forma reciclável, se possível fosse. Nessa altura não havia pronto-a-vestir, comprava-se tecidos e a costureira – ou modista, conforme uma hierarquia que não sei como se definia – ia a casa.

A costureira passava o dia, interrompido por tabuleiros que levavam refeições, a fazer a nossa roupa, coisas banais e com folga para dar para mais de um ano, bainhas largas para ir aumentando o comprimento à medida do crescimento rapidíssimo. Sujeitava-me a ser medida com a fita métrica, tarefa de movimentos ágeis, profissionais, ao lado papel e um lápis para tomar notas. Horas depois vinha o pior de tudo: as provas, com as roupas em construção cheias de alfinetes perigosíssimos. Depois ficava tudo pronto e passado a ferro, pendurado num cabide ou estendido orgulhosamente sobre uma cama, no próprio dia ou no dia seguinte, se houvesse trabalho a justificar a duplicação do tempo.

Marbella era o contrário de tudo isso, tal como o Estoril que eu imaginava um palacete, morada da senhora que tinha a minha avó por companhia. Eram fábulas longínquas que nem me deixavam curiosa, era assim e pronto. Só muito mais tarde a avó contou que também então tricotava noite dentro enquanto esperava que ela regressasse das festas. Todo aquele universo me escapava, uma coisa sem alfinetes nem bainhas prontas a descoser, talvez com chapéus de seda do tecido dos vestidos e dos sapatos de salto alto. Da avó fiquei a saber pouco, muito pouco como é costume nas famílias, porque quando temos tempo não fazemos perguntas e depois a vida faz desaparecer essa possibilidade.

O meu primo Luís marinheiro, que há de estar por esta altura num lugar qualquer do mundo, vida que promete deixar mas que lhe está no sangue, de vez em quando insiste comigo para juntarmos informações e escrevermos uma história de que ele sabe muito mais porque a avó viveu na casa dele longos anos. Eu sei apenas de vestidos e cidades com casinos e terços rezados às seis da tarde com a Rádio Renascença. Ele sabe que a vida dela foi aventurosa e dura, desde que a normalidade da dona de casa de província com quatro filhos menores terminou no dia da morte do marido.

A memória faz-se disto, de coisas dispersas que misturamos aos nossos raciocínios, preconceitos, a imaginação a ajudar-nos a compor uma história que faça sentido. Quem o explica bem é John Le Carré no livro de memórias O Túnel dos Pombos, ele que é um grande observador e perguntador, capaz de descortinar o sentido de um gesto a que pareceu não dar importância. O túnel dos pombos, de Monte Carlo. Talvez a minha avó tenha ouvido falar nesta história que dá título ao livro e que ele conta no prefácio para depois desenvolver em 400 páginas, como quem não quer a coisa. Ela, que passou uma vida entre a carência total e as sedas coloridas e punha de castigo o Santo António na mesa de cabeceira quando as coisas corriam mal, havia de saber interpretar os pombos.

[Publicado originalmente na edição de 23 de outubro de 2016]