Santa Susana, menina bonita do Alentejo

A poucos quilómetros de Alcácer do Sal, a aldeia de Santa Susana tem menos de cem habitantes e praticamente nenhum comércio. As casas de piso térreo caiadas de branco dão-lhe um ar pitoresco, mas entre os que cá vivem e os que vêm de passagem, há cada vez menos gente a percorrer estas dez ruas. Como se vive num lugar sem jovens, onde os dias passam cada vez mais devagar?

É daqueles lugares-comuns que vem nos livros: no Alentejo, durante os meses de calor, não se vê vivalma nas ruas antes que o Sol se ponha. Em Santa Susana não é diferente. à chegada, o panorama impressiona qualquer forasteiro: a arquitetura geometricamente igual, a pintura cuidada, as ruas limpas. Apenas o cantar das cigarras e o calor. Estão perto de 40 graus num dia quente de fim de agosto.

Na Junta de Freguesia, Maria Rosa Pinto, de 75 anos, veio buscar as bolachas preferidas, oferta da funcionária que tinha ido a Alcácer do Sal. «Aqui tudo funciona através da amizade: como não há nenhuma mercearia na aldeia, pedimos sempre a quem vai à cidade para nos fazer umas comprinhas.»

Em 2013, com a reorganização administrativa territorial, Santa Susana passou a integrar a União das Freguesias de Alcácer do Sal, juntamente com Santa Maria do Castelo e Santiago. Na prática o quotidiano dos moradores pouco se alterou. As pensões continuam a poder ser levantadas na delegação da junta, o médico continua a vir uma vez por semana, as funcionárias continuam a ler e redigir cartas a quem nau sabe ler e escrever. Só os autocarros passaram a ser ainda menos. Para Rosa, a visita à Junta faz parte do dia‑a‑dia. «Isto é uma pasmaceira, mas daqui nunca saí. Para onde haveria de ir?» Com um sorriso malandro, conta que viveu «51 anos à experiência com o pai do único filho. «Ele nunca quis casar e eu tive de aceitar. Quando lhe perguntavam porque não casava comigo, respondia “ainda se fosse com outra…” Um dia a outra, a morte, levou‑o mesmo.»

Aurora Florêncio é a assistente técnica da Junta. Aqui nasceu e aqui morrerá, garante. Quase todos os amigos de infância partiram para outro lado em busca de futuro mais risonho, mas para ela a felicidade está na aldeia que a viu nascer há 56 anos. «Trabalho aqui desde os 19 anos, quando ainda nem havia água canalizada na aldeia, rede de esgotos e eletricidade em todas as casas. Agora há melhores condições de vida, mas a população baixou: não há mais de cem habitantes em Santa Susana.» Maria Rosa sabe de cor quantos são. Antigamente, em noites de insónia, punha-se a contar todas as pessoas da terra através das dez ruas existentes. «Em vez de contar carneiros, inventei esta forma de adormecer», diz entre gargalhadas. Agora o jogo é outro: contar os viúvos. «Eu sou solteira, não conto.» Pelas suas contas, há 16 viúvas e quatro viúvos em Santa Susana. Quase todas as noites a rotina repete‑se, enquanto vai trincando as bolachas que não a deixam perder peso.

Santa Susana, conta a lenda, era uma menina que apascentava ovelhas, lia a Bíblia e ajudava os pobres. De pouco lhe serviu quando foi presa pela Inquisição e queimada viva. Morreu a rezar.

A história é religiosa, mas os habitantes nem por isso – como aliás grande parte do Alentejo. «Há para aí umas beatas que não largam a igreja, mas só ao domingo é que isto abre», diz Custódio Pinto, de 56 anos. «O melhor padre que esta aldeia já teve foi um jovem há uns anos, mas como o gajo bebia e fumava, as beatas correram com ele.» A missa de domingo atrai cada vez menos fiéis.

Ao lado da igreja matriz, dois irmãos jogam a bola. Miguel, de 10 anos, não se imagina a trocar de morada. «Aqui é que estou bem, nas cidades é muita confusão. Ando à vontade, estou sempre a brincar na rua com o meu irmão e com amigos. É perfeito.»

Além deles, só há mais quatro crianças em Santa Susana. A poucos quilómetros dali vivem dois deles. Os pais, Natalie e Diego, ela portuguesa, ele uruguaio «com coração argentino», conheceram‑se em Angola. Têm 42 e 33 anos, trocaram Luanda por Carcavelos e, em 2014, mudaram‑se para um centro de retiro budista tibetano em Santa Susana. «Quando há cinco anos a Natalie me disse que ia aderir ao budismo, pensei: “A minha mulher ficou maluquinha”», diz Diego num português perfeito. «Mas de há dois anos para cá, quando fomos convidados pelo Lama Gyurme a vir viver para aqui, também aderi, praticamente de forma autodidata.» Natalie e Diego conciliam as práticas budistas com os empregos – ela é tradutora, ele informático. «Fazemos tudo através do computador, tanto faz que estejamos em Luanda, Carcavelos ou Santa Susana.»

«Aqui procuramos preservar e transmitir os valores e tradição espiritual do budismo Vajrayana», diz Natalie. «É possível fazer retiros de semanas ou meses, e não apenas de anos. O resultado final será sempre diferente, mas sem dúvida adaptável e útil à nossa vida moderna. Quem nos visita sabe que o budismo não é uma religião, é uma ciência do estudo da mente. Foi isso que nos cativou e que mudou as nossas vidas.»

Os filhos do casal, Henrique e Tomás, de 9 e 6 anos, já não trocavam o campo pela agitação de Carcavelos. «Aqui temos 64 hectares para brincar, em vez de estarmos fechados num apartamento», diz o mais velho. «Jogamos à bola, tomamos banho no rio, andamos de bicicleta, temos mais liberdade. E às vezes os meus pais levam-nos à aldeia para brincarmos com os nossos amigos de lá. Não troco isto por nada.»

Sentado numa pequena taberna da aldeia num fim de tarde sufocante, António Morgado, de 53 anos, é outro filho adotado de Santa Susana. Barriga farta, sorriso fácil, fã de uma mesa de petiscos na companhia dos amigos, aponta a maior vantagem a quem trocou a turística zona do Castelo de São Jorge há cinco anos pela «aldeia mais bonita do Alentejo»: trinta quilos de diferença. «Aqui ganho menos, trabalho menos e descanso mais. Daqui já ninguém me tira.» Apaixonou‑se por Santa Susana à primeira vista. Ao contrário do bairro alfacinha onde a agitação é uma constante, no Alentejo encontrou uma pequena família que o recebeu de braços abertos, sem pedir nada em troca. «O segredo desta aldeia é a limpeza das ruas, as casas religiosamente pintadas, a amabilidade de todos, a liberdade das crianças que ainda brincam na rua, as portas que ainda se deixam abertas, o facto de todos se conhecerem», atira entre duas minis. «Trabalhei 25 anos num banco e vivia numa das zonas mais caóticas de Lisboa. Aqui descobri o conceito de felicidade.»

Ao seu lado, Paulo Jacinto, ex-presidente da Junta de Freguesia (2009‑2013), sorri, com a cumplicidade que une dois amigos. «Já tive oportunidade de sair daqui, mas nunca quis. Ainda na semana passada tive uma oportunidade de ir trabalhar para Moçambique. Em Santa Susana tenho qualidade de vida. Vejo os meus filhos de manhã, à tarde e à noite. Filas de trânsito não há. Mas tirando o caso do António, percebo que ninguém queira vir para aqui. O Alentejo é e continuará a ser um deserto enquanto não houver uma política industrial. Em Santa Susana não há trabalho para ninguém. Daqui a uns anos, quando chegar a altura de os meus filhos irem para a faculdade, também eles partirão»

Há mais quem reconheça a beleza e tipicidade de Santa Susana. Há uma década, a Região de Turismo de Évora elegeu-a como a aldeia mais bonita do Alentejo e, a partir daí, os elogios passaram a ser constantes nas redes sociais e blogues.

A referência mais recente foi há cerca de um ano, quando o portal de viagens Ruralea, que dá a conhecer histórias e recantos portugueses, voltou a realçar a beleza da aldeia. Talvez o título encerre exagero, mas o certo é que atrai gente de fora para férias. Como a família Fernandes, de Lisboa. Joaquim, o patriarca, esteve duas décadas emigrado em Franca, onde viu nascer os filhos. Há poucos anos resolveu fazer as malas e voltar a casa. «Não me posso queixar dos franceses, mas nós, portugueses, aproveitamos melhor a vida. Os dias aqui parece que são maiores.» Joaquim Fernandes conheceu o local através de uns amigos e, de há oito anos para cá, faz disto ritual. Pega na família e em duas autocaravanas e estaciona junto à albufeira de Pêgo do Altar durante uma semana, no verão. «Isto é um pequeno paraíso com espaço para todos, não precisamos de estar acotovelados a pedir licença para estender uma toalha como no Algarve.»

O sossego é interrompido por duas motos de água. De resto, só os pássaros e a paisagem. Sabe-se que debaixo destas águas está uma ponte do século XVIII, mas as águas da albufeira cobrem-na – a barragem foi erguida durante o Estado Novo, serve os arrozais do concelho de Alcácer do Sal e constitui um importante espaço de lazer e descanso. Aurora Florêncio, a assistente técnica da Junta de Freguesia, garante que em quase seis décadas de vida, apenas conseguiu ver a ponte duas vezes, em anos pouco chuvosos.

Tantas como Luísa Barradas, de 77 anos, sentada à porta de casa depois do jantar, quando o calor abranda. «Aquilo é uma beleza, nem lhe digo nada.» Santa Susana é assim: um cenário onde se trocam dois dedos de conversa em cada esquina, onde os forasteiros são recebidos como familiares ou filhos da terra. «Ai filho, hoje não se pode estar em casa. Ate ao meio‑dia ainda se consegue, mas depois é tormento», diz uma das viúvas de Santa Susana, peça do jogo de Maria Rosa antes de adormecer. Luísa vai desenrolando capítulos de uma vida dura e sofrida. Nasceu num monte perto de Santa Susana, onde vivia numa pequena casa ao lado da dos patrões, gente de fartas posses. Os pais trabalhavam no campo e isso foi destino que lhe calhou também, depois de concluir a terceira classe. «E muita sorte tive eu, os meus irmãos nem isso. Faziam falta era a criar o gado.» O passado percorre as memórias de Luísa com a emoção no rosto. «Uma vida de miséria, onde era preciso andar uma hora a pé para ir buscar água. Se tropeçássemos no caminho, tínhamos de voltar tudo atrás. Sofri muito. Os braços ainda hoje os tenho escavacados pela muita lenha que transportei. «Nunca deixou a aldeia, nunca pensou, como quase todos os amigos de infância, em procurar a sorte nas cidades grandes ou no estrangeiro. No verão gosta da agitação dos visitantes. «Faz-me lembrar os meus tempos de miúda, em que havia sempre bailes e teatrinhos. Agora não há nada, somos cada vez menos.»

No largo da igreja, quatro sexagenários deitam conversa. «O que é que havíamos de fazer em casa?», pergunta Custódio Pinto. «A ver as novelas? Aqui é que a gente esta bem.» Os assuntos giram à volta das beatas que mandam na igreja, dos proprietários de casas que as mantêm fechadas o ano inteiro à excepção do mês de agosto e de histórias
de vida como a da mãe de Custódio, natural de Santa Comba Dão, que veio parar a Santa Susana «porque os alentejanos na altura eram os únicos que andavam calcados.

Já passa da meia-noite mas nenhum desarma. Enquanto o calor do verão o permitir, a tertúlia está garantida. Depois de cigarros e gargalhadas, o primeiro a recolher é um dos viúvos da aldeia. Se Maria Rosa Pinto ainda estiver acordada, há-de passar mentalmente pela casa da mulher que conta viúvos enquanto não adormece.»

O RESTO É CONVERSA
Santa Susana tem cerca de cem habitantes, essencialmente idosos. Além da taberna que só abre ao fim da tarde, a aldeia tem apenas dois estabelecimentos comerciais: a pequena oficina de automóveis onde trabalha o ex-presidente da Junta de Freguesia e o restaurante Coelho, com uma residencial onde se pode pernoitar por 25 euros durante a época alta. Durante os meses de verão a agitação é constante na estrada nacional que atravessa a localidade, turistas que passam a caminho da praia da Comporta ou do Carvalhal. A maior queixa dos moradores é a falta de uma pequena mercearia. Sempre que precisam de comprar alguma coisa têm de ir até Alcácer do Sal, a 15 quilómetros, ou esperar pelos vendedores ambulantes, que três vezes por semana visitam a aldeia. Em termos gastronómicos, destacam-se as migas à alentejana com coelho frito e o arroz de cabidela. A igreja matriz, de estilo barroco e com mais de quinhentos anos, a ponte submersa do século xviii, o cruzeiro com uma cruz de granito e o teatro comunitário (que os moradores chamam de «teatrinho»), onde se organizam aulas de yoga semanais e ocasionais concertos musicais, são os únicos monumentos. O resto é conversa.

UM CENTRO BUDISTA NO ALENTEJO
A quatro quilómetros da aldeia de Santa Susana situa-se o centro budista tibetano Thubten Phuntsog Gephel Ling, que significa «o lugar onde a virtude dos ensinamentos de Buda se expande». «Todos os que tenham boa vontade e aspirem a uma vida mais saudável, pacífica e significativa são bem-vindos para usufruírem e partilharem o que a herdade tem para oferecer», lê-se no site www. guhyamantrika.org. Aqui vivem, além da família de Natalie e Diego, outras duas pessoas e o Lama Gyurme, líder espiritual do centro – onde além das práticas tradicionais e ensinamentos do budismo, se organizam eventos de meditação e retiro.