Ricardo: “Se queres jogar é à baliza, a ponta-de-lança não jogas mais”

Ricardo Pereira

Ricardo, ex-guarda redes da seleção nacional, recorda os primeiros tempos no futebol, a despedida amarga de uma carreira, e a importância das vitórias dos clubes pequenos. Uma conversa onde também entram Valentim Loureiro e Bruno Carvalho.

Que recordações guarda da infância no Montijo?
Tive uma infância magnífica, jogávamos à bola na estrada e no cimento, na rua. E aí aprende-se muito, é o que falta hoje a muitos miúdos. Agora andam todos agarrados ao telemóvel e às playstations e nada de brincadeiras na rua. O futebol era a única brincadeira que eu e os meus amigos conhecíamos. As balizas eram uma mochila e uma pedra ou então desenhadas nas paredes. E todos queriam ser o Paulo Futre.

Ele era uma referência para as crianças do Montijo?
Sim, ele e o Fernando Mendes, que também é de lá. Eram as pessoas da terra que jogavam nos grandes e na seleção nacional. O Futre ia ao Montijo muitas vezes e quando chegava era uma alegria para nós, os miúdos. Era uma pessoa do povo que falava com toda a gente e ainda hoje é assim. E é um orgulho ser amigo dele.

Como é que entrou para o seu primeiro clube, os Unidos?
Era a equipa do bairro e eu entrei com 11 anos e só saí de lá quando já não tiveram possibilidades de ter a equipa no campeonato de juvenis. Mudamo-nos todos para o clube da terra, o Montijo, e as equipas de juvenis e juniores do Montijo viveram à custa dessa geração dos Unidos. Tinha 14 anos. E já tinha a mania de jogar a ponta-de-lança. Mas depois chegou o Eusébio, que era um treinador do Montijo, e disse-me: «Se queres jogar é à baliza, a ponta-de-lança não jogas mais». E eu queria jogar, então aceitei.

Mas ficou aborrecido por ir à baliza?
Não. Naqueles jogos mais difíceis ia sempre à baliza. Nos jogos mais acessíveis, lá me deixavam jogar a ponta-de-lança e marcava sempre golos.

É verdade que os guarda-redes são sempre os mais malucos?
Ou isso ou os mais gordinhos. No meu caso, era mesmo o mais maluco. Os guarda-redes são mais destemidos. Eu tinha sempre os cotovelos e as ancas feridos. Fazia tudo igual na relva do jardim ou num pelado. Eu joguei em pelados até aos séniores. Na escola era alcatrão e no bairro também.

Como é que o Boavista se interessou por si?
Foi um senhor chamado Carlos Costa que avisou o Manuel José, treinador do Boavista. Sei que ele foi ver alguns jogos. Foi curioso porque eu era para ir para Guimarães, tinha já apalavrado viajar com o Quinito, treinador do Vitória, porque o Quinito era de Setúbal e podia levar-me. No dia em que tinha planeado viajar com ele, o senhor Álvaro Braga Junior e o Dr. João Loureiro apareceram à tarde em minha casa, falaram com os meus pais e levaram-me logo nesse dia. Fiquei lá uma semana a treinar e voltei ao Montijo para jogar o último jogo pelo meu clube, mas já com o contrato assinado.

Se não tivesse sido jogador de futebol, o que teria sido?
Um piloto, provavelmente. Talvez de rally. Conduzi muito ainda sem carta, até porque a carta não ensina ninguém a conduzir. Aos 15, já tinha conduzido motas, carros e camiões. O meu pai trabalhava numa empresa de transportes e eu muitas vezes estacionava os camiões.

Jaime Pacheco era um treinador diferente, na maneira de comunicar, de se vestir, de estar no futebol. Porquê?
Ele era mais ligado ao povo. Hoje os clubes pressionam os treinadores a passar outra imagem. Mas isso não muda nada: ou tens qualidade ou não tens. Não é por usares fato que és melhor. E ele foi campeão no Boavista. Foi muito injustiçado e maltratado por ter sido campeão nacional.

Porque é que a carreira dele em Portugal não progrediu depois do Boavista?
Não entendo. Isso tem de perguntar a outras pessoas. É estranho, é injusto e foi daquelas pessoas que teve de ir para fora para ter sucesso. Ainda fazia muita falta ao futebol português.

Muito se disse que o Boavista tinha sido campeão por causa de um estilo defensivo, agressivo e de cacetada. Concorda?
Quem falou da cacetada foi quem perdeu. Se me pergunta se era agressivo, sim, era. Mas enquanto alguns nessa altura eram agressivos, ganhavam e chamavam-lhe pressão alta, o Boavista fazia o mesmo e chamavam-lhe pancada. Nem gosto de comentar essas calúnias. Nós passávamos para o campo tudo aquilo que sofríamos durante a semana porque trabalhávamos muito, não tínhamos dias de folga. Enquanto os outros andavam a passear, nós estávamos a encher. E aquele título, aqueles segundos e terceiros lugares, saíram-nos muito do corpo porque não tínhamos o suporte que os grandes tinham. Éramos praticamente um clube de bairro, havia muito pouca gente, mas os que lá estavam eram aguerridos.

Foi um dos maiores feitos no campeonato português?
As pessoas vão dando mais valor ao que fizemos.

Talvez porque os comparam com o que o Leicester fez este ano em Inglaterra?
Não se pode comparar. Eu joguei nos dois e posso assegurar-lhe que o feito do Boavista é mais difícil. É que qualquer equipa inglesa tem condições incríveis. Podem estar a anos-luz do City, do United, do Chelsea e do Arsenal em termos de orçamento, mas em qualidade e organização são todos bons.

Isto é bom para a competitividade dos campeonatos, não é?
É bom que estas coisas aconteçam porque nem só os milhões ganham, a qualidade também ganha. E o que nós conseguimos naqueles anos foi porque fizemos muito mais que os outros para conseguir aguentar e ficar lá em cima. É bom ver o Braga intrometer-se mas eles sabem a dificuldade que é manterem-se lá em cima na reta final.

Foi disputado entre o Benfica e o Sporting quando saiu do Boavista?
Não houve disputa nenhuma. Recebi várias propostas, mas quando assinei com o Sporting não estava a negociar com mais ninguém. Havia clubes estrangeiros e podia ter ido para qualquer clube em Portugal. Escolhi o Sporting pela maneira como me trataram, não por ser a melhor proposta.

Sofreu falta do Luisão no Benfica-Sporting decisivo de 2004-2005?
É óbvio que sim. Não posso alterar o que as pessoas pensam, mas se fosse mentira não o estava a dizer onze anos depois. É obviamente falta mas o árbitro não interpretou assim. E no pós-jogo, quer dizer, era muito fácil depois de eu ter quase ido para o Benfica criarem aquele debate para contornar outros temas que, esses sim, deviam ter sido debatidos. O futebol em Portugal está cheio disso e eu não quero ser mais um a pôr achas nessa fogueira.

Mas refere-se aos árbitros, aos dirigentes, à imprensa? Pode ser mais específico?
A sério, é melhor eu estar calado.

O José Peseiro perdeu uma final da Liga Europa consigo, em 2004-2005, e voltou a perder uma final com o FC Porto este ano. É um treinador com azar?
É um treinador por quem tenho muita pena porque põe as equipas a jogar bem. Este ano veio num momento em que não era fácil alterar os acontecimentos no Porto. Foi mais vítima que outra coisa. É sério, trabalhador e merece estar entre os grandes. Adorei trabalhar com ele.

Mas as finais que perdeu explicam-se por sorte ou azar?
Há fatores difíceis de explicar. Quem é que explica uma bola que bate no poste e entra e outra que bate e sai? Como a do Rogério contra o CSKA? É futebol! Não é como jogar às cartas em que as tens na mão e geres o teu jogo. Ali há o vento, o árbitro, o salto na relva, tudo é imprevisível.

Bruno de Carvalho diz que o Sporting foi durante muitos anos presidido com falta de pulso. O Ricardo sentiu isso quando lá passou?
Senti que em determinados momentos se geria mais de fora para dentro. Todos falavam. «Em casa em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.» Num clube de uma grandeza tremenda, com uma enorme paixão dos sócios, que é um clube que sempre se pautou por ser diferente, tinha de aparecer alguém a fincar o pé, a mostrar a grandeza do clube.

E essa pessoa é Bruno de Carvalho?
Ele está a mostrar que é um líder forte. A forma como atua está muito ligada à necessidade de se impor num mundo bastante competitivo.

O Sporting devia ter sido campeão?
Foi a equipa que jogou melhor futebol e que deu mais espetáculo. Mereciam ser campeões. Agora, se houve outra equipa que não jogou tão bem conseguiu ser campeã, é porque teve outros atributos para lá chegar, se calhar foi mais eficaz, e todos temos de reconhecer isso.

As Taças que ganhou no Sporting são comparáveis ao título no Boavista?
Não, nada é comparável a isso. Mesmo que tivesse ganho 50 títulos depois desse, nenhum ia ser comparável ao primeiro com o Boavista. Todos nós festejámos como nunca.

Com que imagem é que ficou de Valentim e João Loureiro?
As pessoas boas são sempre polémicas. Todos os rumores sobre o Major se devem ao facto de ele ter lutado como ninguém por aquele clube. Ele e o filho são uma espécie de tratores que levam tudo à frente para ajudar o Boavista, mas infelizmente aqui em Portugal ninguém reconhece isso.

Eles tiveram responsabilidade no colapso do Boavista?
Isso para mim nem tem fundamento. As pessoas que tornaram aquele pesadelo possível é que lhes deviam pagar uma pipa de massa. O que se passou? Eu tenho as minhas suspeitas mas como não as posso provar, não posso dizer. Mas foi uma sacanice.

Dando um salto grande no tempo: quando foi para o Betis, era para lá que queria ir?
Sim, apesar de nunca saberes bem para onde é que queres ir. Eu não me arrependo porque naquela altura tomei a decisão racionalmente, depois de falar com a minha família e termos achado que Sevilha era a melhor opção. Mas se soubesse o que sei hoje tinha optado por outra equipa, em Inglaterra, de onde tinha várias ofertas.

E o que se passou em Sevilha?
Foram quatro épocas num clube que está sempre a fervilhar, com uma massa adepta gigantesca, com um poder e uma capacidade financeira acima da média. Tirando o Barcelona e o Real Madrid, o Atlético e o Bétis eram quem mais investia em Espanha. Tinha um presidente sui generis – o Manuel Luiz Ropera – que ainda está a ser julgado em Espanha. Até lhe tiraram o nome do estádio! Nos últimos 15 meses que lá estive passei mesmo muito mal. Não desejo nem aos meus maiores inimigos o que sofri em Sevilha. Eu e a minha família sofremos ameaças à nossa vida para nos intimidarem a deixar o clube.

E como é que o Ricardo reagiu? Quem lhe fazia ameaças?
Foi tão mau que nem gosto de recordar. O meu filho ainda hoje deixou de falar espanhol porque ganhou aversão à língua. Estas coisas marcam muito os miúdos. Mas eu gosto demasiado daqueles adeptos do Bétis e daquela cidade para me pôr a atacar os que me quiseram destruir.

Tinha muitas saudades de Portugal quando estava em Leicester ou em Sevilha?
Em Leicester estive pouco tempo porque me lesionei gravemente e tive de regressar. Quando estava em Sevilha, passava quase tanto tempo lá como em Portugal. Tinha casa no Algarve, que era pertinho, e estava quase sempre com a família, ou lá ou cá.

Sentiu muita diferença cultural entre Portugal e a Andaluzia?
Muitas. Os andaluzes vivem para a festa, pá. Eles vivem para comer, beber, rebentar. Até houve um treinador que me acusou de não sair à noite. Porque naquela cidade tinha de se sair para conviver com as pessoas, dizia-me ele. E eu disse-lhe para me pôr isso por escrito para mostrar onde quer que fosse. Que eu só ia de casa para os treinos, que não podia ser, dizia-me ele, que era preciso ir para os copos. Há coisas fantásticas, não há?

E como foi o tempo em Leicester?
Foi muito bom, mas tive logo duas lesões, uma delas muito grave, no ombro. Tinha recuperado durante três semanas de uma fissura no dedo, depois, no dia 24 de Abril, já na brincadeira no fim do treino foi quando rebentei o ombro e tudo mudou. Estava a correr bem, tinha opção para lá ficar e depois surgiu a opção de regressar a Portugal, que acabei por considerar e aceitar, sem saber o que me ia acabar por acontecer. Na altura, já tinha percebido que o Leicester era uma equipa que podia dar cartas na Premier League. Mas claro que não imaginei que pudessem ser campeões. Ainda por cima era uma cidade de rugby.

Como lhe correram as coisas no regresso a Portugal?
Mal. No Setúbal foi tão mau, as pessoas foram tão más e revelaram tanta falta de caráter, que prefiro nem dizer nada. É o único clube contra quem tenho um processo em tribunal, o que eu odeio. Mas se eles tivessem tido caráter e vergonha na cara para terem vindo falar comigo, nada disto tinha acontecido.

E o Olhanense, o seu último clube, foi melhor?
Foi menos mau, mas também me deparei com situações que, se me tivessem contado antes, diria que eram mentira. Depois de ter passado por clubes com as condições do Leicester e do Sporting, deparava-me com coisas surreais, que só vendo dava para acreditar.

Porque decidiu ficar pelo Algarve?
Porque é dos sítios com melhor qualidade de vida. Sempre gostei do Algarve e fui daqueles que gosta mais de ficar cá dentro do que ir para fora. Além disso, sofro de sinusites e renites e no Algarve custa menos.


Leia a continuação da entrevista ao ex-guarda-redes:

«”Obrigado, Ricardo. Sozinho ganhaste isto”, disse-me o Eusébio.

«Gostava de vender uma casa ao Figo»