Realidade sem maquilhagem

Notícias Magazine

A realidade é apenas uma fantasia exageradamente bem penteada, disse o escritor sérvio Goran Petrovic. O que gosto nos blues é precisamente a recusa em pentear a realidade, no facto de não olhar para a vida como o Cândido de Voltaire, como se este fosse o melhor dos mundos possíveis. Nos blues há uma denúncia constante da opressão, da injustiça, do racismo, da miséria. Ao ler sobre a vida de alguns bluesmen, apercebemo-nos de que a música reflete o meio em que cresceram, como foram educados, como lutaram contra a pobreza, como lhe sucumbiram, como se entregaram ao vício, à violência, como se purgaram, como foram pisados ou como venceram. A realidade de muitos deles não vinha penteada de nascença, basta lembrar alguns nomes conhecidos: Blind Lemon Jefferson, Blind Willie McTell, Blind Blake, Blind Joe Reynolds, Blind Willie Johnson, Blind Boy Fuller, Blind Reverend Gary Davis.

realidade_Hound Dog Taylor nasceu com seis dedos em cada mão. Tentou, a certa altura, cortá-los e quase morreu. Albert King aprendeu a tocar com uma guitarra feita com uma caixa de charutos. Haveria mais tarde de cantar estes versos: «Born under a bad sign, been down since I began to crawl / If it wasn’t for bad luck, I wouldn’t have no luck at all.» Screaming Jay Hawkins queria ser cantor lírico: acabou como pugilista (além de, evidentemente, bluesman). Howlin’ Wolf (Chester Burnett) foi expulso de casa aos 13 anos, pela própria mãe, por um motivo tão banal no mundo dos blues que me custa escrevê-lo: por tocar a música do Diabo. Muitos acabaram presos, alguns por homicídio, como por exemplo Son House (Eddie James House, Jr.), Lead Belly ou R. L. Burnside. Uns fizeram pactos com o Diabo, como Robert Johnson, outros cantavam na Igreja Batista. Ou ambas as coisas. Os versos «Pedi-lhe água / Ela trouxe-me gasolina», se dirigidos à realidade, dão um retrato loquaz das suas vidas. Poderiam ter cantado coisas alegres, mas felizmente preferiram a fidelidade ao que sentiam. Não pintaram os lábios da realidade (seja esta interior ou exterior) nem lhe deram banho nem a levaram ao cabeleireiro: exibiram-na na sua crueza, nudez e pobreza, e fizeram muito bem, porque só assim se consegue mudar alguma coisa.

(Ilustração de Afonso Cruz)

[Publicado originalmente na edição de 09 de outubro de 2016]