Querida Laura

Ali estiveram, durante décadas, atados com uma fita azul e embrulhados em papel de seda. Perdidos no sótão. Até serem descobertos pelo filho. Não um ou dois. Cem, perto de cem postais. Todos escritos e enviados por Manuel d’Almeida para a namorada Laura Gomes, durante o tempo em que esteve «em campanha» com o Corpo Expedicionário Português, a força militar que combateu na Primeira Guerra Mundial. No dia 9 de março, passam cem anos desde que Portugal entrou oficialmente no conflito.

Rua 1º de Maio, 24, 1º Esq., Lisboa. O amor, mesmo em tempo de guerra, fixa a morada certa. Manuel d’Almeida, soldado nº 119 da 4ª Companhia do Corpo Expedicionário Português (CEP), alentejano da aldeia de São Bartolomeu da Serra, nem por um dia se esqueceu de Laura Gomes. A 12 de Dezembro de 1917, «em campanha» por França, escrevia: «Queria Laura, estou em cuidados pois não tenho recebido notícias de Lisboa. Tens gostado dos meus últimos postais? Foram escolhidos 20 diversos para enviar diariamente. Vamos escrevendo já que nada mais nos é possível. Findo por te enviar mil beijos.» Assinado: MAlmeida.

Todos os postais não só apresentam esta assinatura como começam por «Querida Laura» e «Em campanha». António Gomes d’Almeida, escritor, cronista e antigo publicitário da Regisconta – autor do famoso slogan «Aquela máquina!» – só descobriu o tesouro familiar que tinha em mãos quando se mudou de Lisboa para a aldeia de Brescos, perto de Santiago do Cacém. «Nunca se tinha falado de tal coisa lá em casa. Aliás, o meu pai nem deve ter sabido que a minha mãe guardou os postais. Quando fiz a separação da herança com o meu irmão, fiquei com uma arca que estava esquecida no sótão, há muitos anos, onde vim a encontrar cerca de uma centena de postais ilustrados, embrulhados em papel de seda e atados por uma velha fita azul. Postais que o meu pai enviou, a um ritmo por vezes diário, durante o tempo em que esteve em França, integrado no CEP.»

Surpresa das surpresas. António só conhecia uma história de guerra contada pelo pai. «Gostava muito de conversar, mas nunca falava das memórias desse tempo. Com uma única exceção: recordava vivamente o dia 9 de abril de 1918, em La Lys, e o que se passara nessa terrível batalha, a transportar feridos para o hospital de campanha, na retaguarda, sendo essa a sua missão de então, como maqueiro.» La Lys, recorde‑se, é uma das páginas mais sangrentas da história militar portuguesa do século XX. Nada disso, nem de longe nem de perto, vinha mencionado nos postais. «Havia censura militar sobre a correspondência das tropas, mesmo que se tratasse de uns bilhetes aparentemente inocentes para a namorada», acrescenta. «Isso talvez tenha coibido o meu pai de ser mais expressivo.»

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O primeiro de todos os postais recuperados tem a data de 20 de janeiro de 1917. «Em campanha. Querida Laura, tu e todos continuam bem? Eu felizmente bem. É meia‑noite em ponto. (…) Continua com a mesma coragem, oxalá ela não te abandone (…). MAlmeida.» António assegura que «foi escrito ainda em Lisboa», pois o seu pai «estaria mobilizado à espera de embarque». O segundo postal é enviado a 30 de abril, mês e pouco após a partida, a 22 de março – as primeiras tropas portuguesas, no entanto, tinham zarpado do Tejo com destino a França em janeiro. «Os postais passam a ser mais frequentes em meados de 1917. O que não oferece dúvidas é que todos foram escritos numa trincheira da frente de batalha.»
António não sabe ao certo como Manuel e Laura se conheceram. Ao longo de dois anos, a avaliar pelas vagas pistas fornecidas pelos postais recuperados, alternaram períodos de maior e menor tensão e romantismo. «Já pensaste quanto me disseste? Tudo perdoo, tudo… porque não tenho coragem para coisa alguma, mas para que tentar o impossível?», escreve a 20 de outubro de 1917 o soldado promovido a segundo-sargento ajudante de farmácia. «Ficaste satisfeita com a minha carta d’hontem?», pergunta noutra altura. «Há três dias que não tenho notícias tuas, escreve‑me sim? Eu fico esperando. Envia‑te um saudoso adeus este que te ama muito. » Ou ainda: «Nunca esqueças o que prometi. Farei tudo quanto possa para me tornar digno d’essa dedicação.»

António bem tentou encontrar postais com as respostas da mãe. Nada feito. «O último postal do meu pai foi escrito na cidade de Ambleteuse, onde existia um hospital da Cruz Vermelha.» Tem data de 7 de junho de 1919: «Laura, estimo que tu e todos continuem bem. Eu de saúde. Por aqui continuo sem saber quando findará o meu martírio. Adeus. Um beijo.» O martírio terminaria a 12 de agosto desse ano, quando Manuel d’Almeida desembarca em Portugal, após três dias de viagem a bordo do Pedro Nunes. Alista‑se na Guarda Nacional Republicana, onde é admitido para exercer funções na farmácia central, «praticamente até ao fim da sua vida».

«Todos os pormenores do relacionamento de ambos durante a guerra, a evolução do namoro e depois o início da vida de casado foram sempre discretamente ocultados», esclarece António. O matrimónio oficial ocorreu em janeiro de 1921, sem a presença da família de Laura, exceção feita às irmãs. Manuel era proveniente de uma família modesta de São Bartolomeu da Serra, Laura descendia da média burguesia da Covilhã, sobretudo ligada à indústria dos lanifícios. Nem pai nem mãe aceitaram a decisão da filha, provocando «uma tensão difícil» no jovem casal. «Aquele era o típico casamento infeliz, cheio de incompatibilidades.»

António Gomes d’Almeida, 83 anos, não desiste de encontrar mais peças deste puzzle repleto de pontas soltas. Escreveu entretanto um pequeno livro, que guarda para familiares, amigos ou outros interessados. «Não é fácil ler a caligrafia do meu pai. Em alguns casos, cruzava as linhas na horizontal e na vertical para aproveitar melhor o espaço do postal.» Como aconteceu a 3 de outubro de 1917: «Querida Laura, tu e todos bem, não é verdade? Eu felizmente bem. Vê se compreendes o verso deste postal. É simples mas traduz muito. Pensa e depois me dirás. A quem não te esquece. MAlmeida.»

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Veja aqui as imagens de soldados do Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial.

55 MIL PORTUGUESES EMBARCARAM PARA A FLANDRES
Quando, a 9 de março de 1916, em Lisboa, o ministro alemão entregou uma declaração de guerra ao ministro dos Negócios Estrangeiros português, estava aberto o caminho para a criação do Corpo Expedicionário Português. Após meses de preparação no Campo de Instrução de Tancos, em 1917 cerca de 55 mil homens partem de Alcântara para a Flandres. Segundo os números divulgados pela historiadora Isabel Pestana Marques no livro Das Trincheiras, com Saudade [ed. A Esfera dos Livros], morreram 2288 homens durante toda a campanha militar (1917-1919) – na batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918, as baixas portuguesas contabilizaram-se entre prisioneiros (6315 praças e 270 oficiais) e mortos em combate (369 praças e 29 oficiais).

«NÃO ABANDONOU O SEU POSTO, APESAR DO VIOLENTO BOMBARDEAMENTO»
A batalha de La Lys ficará para sempre marcada a ferro e fogo na história da Primeira Guerra Mundial. No dia 9 de abril de 1918, o Corpo Expedicionário Português – envolvido com as forças militares dos países da coligação, em que se destacavam a Inglaterra e a França de um lado, e a Alemanha e o Império Austro-Húngaro do outro – sofre um sangrenta derrota, com bastantes baixas [ver caixa na página ao lado]. Manuel de Almeida – soldado n.º 119, que durante a guerra seria promovido a primeiro-cabo e depois a segundo sargento ajudante de farmácia – foi condecorado em maio de 1919 com a Cruz de Guerra de 2.ª classe por «se ter oferecido espontaneamente para fazer serviço no [hospital] onde se manteve nos dias 9, 10 e 11 de abril de 1918 (…) nos cuidados aos feridos e estropiados como na preparação do material a evacuar, não abandonando o seu posto, apesar do violento bombardeamento (…), revelando qualidades morais e grande zelo e dedicação pelo serviço, intrepidez e coragem», pode ler-se do boletim individual guardado no Arquivo Histórico-Militar, em Lisboa.

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Veja aqui as imagens de soldados do Corpo Expedicionário Português na Primeira Guerra Mundial.