Publicar as Luzes e viver nas trevas

Notícias Magazine

Um editor de quem nunca eu tinha ouvido falar, Alexandre Laumonier, diz que vai mudar de bairro. É um caso em que o mensageiro credibiliza a notícia, li no Le Monde, interessou-me. O editor é belga, a página vem na sempre boa secção de livros do jornal e o assunto principal é sobre o lançamento de um livrinho (80 páginas), raro e sábio. Mahomet é um dos textos do Dictionnaire Historique et Critique, a obra do filósofo francês Pierre Bayle (1647-1706), aquele que abriu as portas a Voltaire e a todo o século das Luzes.

Tal como os seus sucessores Diderot e D’Alembert com a Encyclopédie, Bayle quis, muitas décadas antes, ser um divulgador. Espalhar a ciência, a arte e as ideias do seu tempo. O texto sobre o profeta do islão é um dos mais longos do Dictionnaire Historique et Critique, facto relevante por si só: nos finais do séc. XVII, o protestante Pierre Bayle deu mais espaço e divulgação a Maomé do que a Lutero e a Calvino. O agora republicado Mahomet, diz o jornal francês, lembra-nos que muitas das questões hoje colocadas pelos noticiários do Estado Islâmico, como as profecias anunciando a invasão violenta do Ocidente cristão pelo islão e a conversão religiosa, foram ao longo dos séculos discutidas por pensadores cristãos e muçulmanos, citados por Bayle, muitos deles hoje injustamente esquecidos.

A editora do livro, Zones Sensibles, é prestigiada (tinha no seu comité científico Jacques Le Goff, o grande historiador falecido há dois anos, especialista da Idade Média). E o tal editor com que abro a crónica, Alexandre Laumonier, passou de sujeito secundário para protagonista, na notícia sobre o livro Mahomet, quando anunciou ao Le Monde que a sua casa de edição vai mudar de endereço. Isto é, vai sair de Molenbeek. Aquele famigerado bairro de Bruxelas que, de conhecido só pelas polícias, passou a título de jornais mundiais depois dos atentados islâmicos em Paris e Bruxelas.

Vale a pena ler toda a explicação de Laumonier, que partilhava o seu domicílio com o endereço da editora: «Deixo Molenbeek pela simples razão de ter de matricular o meu filho na escola. Não quero que ele se cruze todos os dias com essas mulheres de burqa que vão buscar os filhos delas, ou esses sinistros barbudos, propagandistas religiosos que se passeiam nas ruas do bairro. Depois de oito anos em Molenbeek, e mesmo na ausência de atentados, era tempo de ir para outro lugar onde não me sinta, na rua e pelo olhar dos outros, que não passo de um infiel.» Fim de citação.

Publicar sobre as Luzes e viver nas trevas, não dá. Sobretudo quando se pensa e não se é imbecil, como aqueles testemunhos – quando dos atentados, e os jornais portugueses deram eco – sobre Molenbeek ser bairro giro, cosmopolita e onde era bom morar. «Parece mesmo Marrocos», disse um vesgo, errando duas vezes, porque Marrocos raramente é tão sinistro e um bairro de Bruxelas não deve ser «esse» Marrocos onde os cafés são só para homens.

Espicaçado pelo Le Monde, fui conhecer mais de Alexandre Laumonier. Não me tranquilizou saber que ele é autor de 6 – Marchés Financiers, Le Soulèvement des Machines. O 6 não é uma obra técnica sobre mercados financeiros, mas um livro de antropologia sobre a revolta das máquinas. É sobre o trading de alta frequência (hoje, já 70 por cento das trocas bolsistas nos Estados Unidos), feito por algoritmos, com a compra e venda de ações em milésimos de segundos, com a tecnologia a desbaratar o que o homem pensava ter controlado. Repito, não me agradou saber que Laumonier seja mesmo especialista do inferno.

[Publicado originalmente na edição de 19 de junho de 2016]