Políticos que dão cabo da política

Notícias Magazine

Não, o povo não é estúpido. Vocês haviam de ter visto o que eu vi no dia da final do Euro 2016. Minutos antes do início do jogo, a RTP entrevistou um político português e, apesar de não se ouvir patavina do que ele disse – eu estava com amigos num arraial lisboeta com um enorme ecrã montado ao lado de barraquinhas que vendiam sardinhas e cerveja –, centenas de pessoas começaram a vaiá-lo. Havia um grupo de franceses perto de mim, e foram eles que arrancaram o assobio. De repente, montou-se uma chinfrineira danada. Portugueses, bastantes, mas também alemães e italianos e espanhóis e romenos. Nesta Europa cada vez menos Europa ninguém precisou de saber línguas para fazer coro em protesto. No ecrã falava José Manuel Durão Barroso.

Em finais de julho um grupo de funcionários das instituições europeias lançou uma petição online a pedir medidas de condenação ao antigo presidente da Comissão Europeia. Querem, entre outras coisas, que seja suspensa a pensão que aufere pela década em que ocupou o cargo – pelo menos enquanto trabalhar para a Goldman Sachs. O povo não é estúpido. Sabe que este grupo financeiro esteve no centro da crise do subprime e no centro da ocultação da dívida grega. E que tem grandes responsabilidades na maior recessão dos últimos 80 anos, coisa que levou vários países europeus – incluindo Portugal – a pedir ajuda externa e adotar medidas de austeridade extremas. A petição dos funcionários da Comissão acusa por isso Barroso de irresponsabilidade, de prejudicar as instituições europeias e de ter uma conduta moralmente repreensível.

Ao aceitar o convite da Goldman Sachs, o nosso antigo primeiro-ministro mostrou à Europa inteira aquilo que toda a gente em Portugal já tinha percebido. Que, na dúvida entre defender os interesses dos cidadãos que representa ou defender os seus próprios interesses, Durão vai escolher o melhor para si. Há uma palavra que define estes tipos, há aliás várias, mas também não é preciso chamar nomes a alguém para se perceber a sua estirpe. Um tipo não pode passar dez anos como representante máximo da Europa e depois ir trabalhar para uma das instituições que mais força dá aos eurocéticos. Isso, bem vistas as coisas, seria como um primeiro ministro acusar os seus antecessores de terem deixado o país de tanga, propor as medidas de salvação da pátria e depois abdicar do cargo para aceitar outro melhor. E é por isto que foi um grupo de franceses a tomar a iniciativa de assobiar Durão Barroso no dia da final do Euro 2016. Para eles, a falta de escrúpulos de Barroso ainda era novidade.

Porque é que ainda estou a falar disto? Porque os portugueses entram muitas vezes numa esquizofrenia quando analisam o sucesso dos seus compatriotas. Arrasamos ou vangloriamos demasiado depressa. Jorge Sampaio, presidente da República em 2004, deixou Barroso seguir para Bruxelas e cometeu um dos maiores erros da sua presidência: dizer que aquele cargo era prestigiante para Portugal. Podia ter sido, sim, mas o tempo mostrou-nos que Durão não prestigiou Portugal, antes envergonhou o país. Talvez isto nos sirva de lição. A nacionalidade dos virtuosos, dos canalhas ou dos virtuosos canalhas nunca tem tanta importância quanto o seu talento, a sua canalhice ou o seu talento para a canalhice. Quero lá saber se o presidente da Comissão é português, lituano ou alemão. Quero é que ele seja bom para a Europa e para os europeus. Quero, por exemplo, que Guterres seja eleito secretário-geral da ONU. Não por ser português. Simplesmente porque é o melhor para o cargo.

Nota – Queria ter escrito sobre este assunto há mais tempo. Adiei a escrita desta crónica duas semanas, por respeito à morte de Margarida Sousa Uva, mulher de José Manuel Durão Barroso.