Os muitos nomes do inspetor Jaime Ramos

Notícias Magazine

Nuno Bragança enchia os seus livros com maiúsculas. Quer dizer, não aquelas de abrir o texto e depois dos pontos finais, mas também palavras que eram nomes de gente e de lugares. Ajudam-me a não me perder, os nomes. Os nomes nos livros são tabuletas ou se colam a uma cara para eu voltar a dar por ela a páginas tantas. A minha frase preferida de Nuno Bragança é assim: «Ele há ventos e ele há ventos, a segunda categoria é a mais possante.» Faço-a minha e digo: «Ele há livros e ele há livros, e gosto mais dos segundos.» Os com nomes, claro. Vai daí, vou falar de mais um livro do inspetor Jaime Ramos, o polícia que tem o bom gosto de se deixar ser contado por Francisco José Viegas.

Há 25 anos que Viegas escreve sobre o inspetor da PJ do Porto, dedicado a homicídios. Publicou-se agora A Poeira Que Cai sobre a Terra, e logo com cinco corpos para Jaime Ramos se debruçar. É muito nome. Até porque o inspetor gosta de os dizer por inteiro. Nas mulheres, os nomes de solteira e tudo. Um nome arrasta memórias, outras pessoas e histórias. Três ou quatro nomes, um mundo.

«Como conheceu Paula Martinho da Luz?», diz ele, duma morta, a um suspeito, italiano. E este: «Paula?» E ele: «Eu gosto de nomes completos.» E o italiano aproveita para ir por ali fora: «Dolce Paola, lembra-se? Adamo, Salvatore Adamo.» E eu, porque agora sou eu, largo a página, vejo a loura Paola de Saboia, que acabou princesa e rainha belga e, até se diz, se apaixonou pelo compatriota italiano, cantor doce, que também acabou belga. Entretanto, já estou num baile do liceu, em Luanda, a dançar Tombe la Neige. Se um romance não é uma agência de viagens pessoal, para que serve?

Cinco mortos, cinco corpos. Eu, um dia, se for personalidade importante, dessas de dar medalhas, dava uma, de muito mérito, aos livros policiais. Um livro policial português é um artigo de primeira necessidade. Dos simples, desses de autores portugueses que nos anos 1950 inventavam detetives americanos, às histórias do inspetor Ramos, são sempre exercícios de lógica. Essa lógica que nos falta como sossego em Aleppo. Eu, um dia, se empregar pessoas que precisam de julgar (jornalistas, polícias, juízes e analistas políticos), fazia-lhes um exame prévio que era só isto: «Então, diga lá que livros policiais já leu?»

Os livros policiais são importantes para ambição de saber. Um corpo morto, que em jornalistas, polícias, juízes e analistas políticos portugueses chega para concluírem a culpa do mordomo, é só um corpo morto até prova em contrário. Não fosse assim, o livro de registo do Cemitério dos Prazeres era um grande romance. E não é. Como nos ensinam os livros policiais (para isso são precisas basesinhas, da Agatha Christie a Raymond Chandler), do corpo morto à culpa do mordomo há um caminho a percorrer.

É esse caminho que o inspetor Ramos e o Francisco José Viegas fazem. Nos fazem. Como nos outros livros (Longe de Manaus, O Mar em Casablanca…), há lugares longínquos (neste, é Sydney). Mas, sobretudo, Porto e o Douro. Ah, belas maiúsculas – Arca de Água, São João da Pesqueira… E os lugares trazem nomes completos como «João Nuno Ferreira da Costa», mais um suspeito, que logo o autor relaciona com o jogador Ferreira da Costa que jogou, nos anos 70, «ao lado de Pavão e Cubillas». E eu, que sou mais velho do que o Francisco, tresleio: Monteiro da Costa que jogou ao lado do Hernâni… Se literatura não é isto, o que é literatura?

[Publicado originalmente na edição de 21 de fevereiro de 2016]