Odisseias por aí

Notícias Magazine

Marta, my dear,

«E se o outro não quer o que eu desejo, devo privar-me do que quero ou devo forçar o outro a querer o mesmo?» Assim terminava a sua carta. E o padre António Vieira, com o Sermão de Santo António aos Peixes docemente em riste, invadiu a minha sala – «na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Cila, ou em Caríbdis». Sinistra dúvida, convenhamos – esventrados por rochedo ou engolidos por redemoinho? Ulisses conseguiu-o, de volta a Ítaca, mas nós, simples mortais, percorrendo trajetos a abarrotar de pequenos mas concretos escolhos, como evitamos o naufrágio?

Não culpemos a estreiteza das águas, entre castrarmos os nossos desejos e a eles converter à força o outro vai distância que deveria permitir algum sossego a quem vigia no mastro real. Mas acontece que somos adeptos das chavetas a preto e branco, não menos ferrenhos por amiúde inconscientes de tal reflexo condicionado. Ambas as hipóteses implicam violência, auto ou hetero infligida. E nas relações, a violência, mesmo à socapa, tem o péssimo hábito de se virar contra algozes e vítimas, que, de resto, amiúde trocam de papéis.

Admitamos a nossa pouca originalidade de – exortamos gentes angustiadas, tristes ou furiosas a dialogarem, em busca desse meio que, segundo o povo, abrigaria a virtude, mas já seria incensado se lhes trouxesse paz. Com um pouco de sorte e muita gratidão a quem nos formou, aqui e ali conseguimos olear a comunicação do casal pela presença que atrai uma cerimónia apaziguadora, mais tarde por os ajudarmos a dizerem e escutarem no mesmo comprimento de onda; eles que se debatem com curtas, médias e longas, quando não já com o silêncio.

Não é possível chamar «relação» a uma convivência que se baseia na anulação de alguém. Que muitas vezes não precisou sequer de ser pressionada para ceder à invasão do outro. Fê-lo com a melhor das intenções, para calafetar janelas, violadas por um vento gélido que sussurra «o fim está próximo se não cederes…».

Cedência a cedência, rumo a humilhação e parede. Em nome de paz podre que invade a casa e desdenha igualmente o caixote do lixo e a fruteira da sala de jantar; mas fica; e cresce. O povo diz da fruta que está pisada, o mesmo acontece com o amor-próprio. E tarde ou cedo descobre-se que é difícil amar alguém quando não gostamos nadinha de nós.

Procuramos «forçar» no dicionário, presenteia-nos com exemplo de série policial – forçar uma porta. Nas relações elas costumam fechar-se. Escancarado fica o campo de batalha, a terra de ninguém invade as trincheiras, já nem adversários existem. Apenas o silêncio que emoldura despojos do amor.

Escrevo-lhe de Cantelães. A neve, que me acolheu bem, enroscada nos quixotescos moinhos da Cabreira, começa a derreter. Amanhã é segunda, receberei pessoas enroscadas uma na outra? Em teoria nenhuma, estranho masoquismo, gente feliz
a gastar dinheiro com! Na prática, muitas. Raiva, desilusão ou amuo também as amarram. Mas jamais lhes ocorre chamar abraço a tal prisão.

[Publicado originalmente na edição de 6 de março de 2016]