O regresso de Sônia Braga

Houve um nome incontornável no festival de Cannes. Atriz imensa em Aquarius, o melhor filme brasileiro dos últimos anos, Sônia Braga brilhou pelo talento na Riviera Francesa. Na única entrevista em português, falou com o jornalista Rui Pedro Tendinha sobre o regresso ao grande ecrã, o momento político e social que o Brasil atravessa e o peso de Gabriela, Cravo e Canela. E ainda sentiu um fantasma…

Um fotógrafo italiano aguarda Sónia Braga. «Mamma Mia, la ragazza de Dancing Days!» diz meio emocionado. Sônia Braga não é um mito brasileiro, chegou a todo o mundo. Depois de uma série e sessões de fotografia, a atriz que em Portugal continua a chamar-se Gabriela recebe-me num hotel boutique da zona velha de Cannes. E, realmente, não há que enganar. Aos 65 anos, é a mesma Sônia Braga que entrava pela casa dos portugueses há três décadas.

A jornalista brasileira que terminou a entrevista anterior diz-lhe que Pedro Almodóvar, em Cannes com o belo Julieta, está muito curioso em ver Aquarius, o filme brasileiro de Kleber Mendonça Filho. «Nossa, é verdade que ele ouviu falar bem do meu trabalho? Meu deus, o Almodóvar.» A atriz foi o nome mais falado e elogiado a nível de interpretações femininas no festival. Criou-se uma vaga de apoio a Sônia, a «Team Sônia». Aliás, Aquarius, o seu fascinante regresso ao cinema, tomou o coração da imprensa. De repente, tornou-se o filme mais cool do festival.

É a história de Clara, uma sexagenária do Recife, jornalista aposentada pressionada pelos proprietários do seu prédio para vender a casa para que o edifício (chamado Aquarius) seja demolido e transformado num novo arranha-céus. A dada altura, começa mesmo a ser ameaçada. Claro que há uma simbologia com o atual momento do Brasil. Cinema de resistência.

Lembrando isso mesmo, na estreia do filme, a passadeira vermelha de Aquarius foi marcada pelo protesto da equipa de Kleber Mendonça Filho, que mostrou folhas de papel com frases contra a situação política no Brasil. Denunciavam o «golpe de Estado». Sônia Braga está indignada. E pagou por isso.

«Nunca fui tão xingada na vida depois desta ação de protesto. Antes, todos gostavam de mim nas redes sociais, agora não… Fui muito atacada, foi horrível»

«Essa é uma realidade deste Brasil, deixa-me muito triste. O país está dividido e, aconteça o que acontecer, só vamos votar daqui a dois anos. O povo está muito dividido…»

Na vida real, Sônia já escolheu um lado: é contra o impeachment. No filme, Clara resiste, vai à luta. Não cede por nada. Quer manter a rotina: acordar, tomar um banho na praia e estar com o neto e os filhos. E quer continuar a viver depois de ter sobrevivido a um cancro da mama. Quer ser mulher, fazer amor, ouvir música da coleção de discos de vinil. E aí vemos uma Sônia Braga em toda a sua verdade, com uma grande força erótica, quase agressiva – há um plano da sua nudez, no duche, que é fundamental para a relação da personagem com o seu corpo. À minha frente, quase sem maquilhagem, sem saltos altos, esta mulher parece não ter idade. Mas também parece irradiar a mesma força da personagem.

«Você é português! Que alívio não ter de falar agora em inglês… Sabe, em Portugal sei que gostavam de mim. Quando lá fui, depois de Gabriela, fui recebida de forma mais efusiva do que o Papa. A sério… Vem cá, ser recebida assim, em Portugal, país tão católico, não é brincadeira. Até tenho fotos.» São 18 minutos de conversa – tudo contado, em Cannes – e ela usa os primeiros segundos para falar de Portugal. Depois queixa-se do frio. E dos protocolos do festival. «Peço desculpa se cheguei um pouco atrasada, não tive culpa. Eles me levaram para um almoço lá longe e depois pegou trânsito! Desculpa! Nós na parte da manhã cumprimos todas as obrigações promocionais dentro do tempo.» Diz tudo o que lhe passa pela cabeça. E lida bem com isso. «Não se importa que coma alguns frutos secos? É que não posso comer muita coisa e isto tem proteína.» E abre novo pacote de amendoins e amêndoas. «São saudáveis.»

Sônia está excitada com todo o chamariz que o seu regresso está a criar. Afinal, ela estava desaparecida, talvez meio congelada no seu «exílio cultural», como gosta de dizer. Na conferência de imprensa falou do facto de não ter tido medo de abrir uma guerra com a poderosa Globo, graças a uma tentativa de processar o gigante da televisão brasileira depois de, num dos canais de cabo com reprises, uma das suas novelas clássicas ter sido exibida sem que nunca ganhasse um tostão. A atriz perdeu o processo e nunca mais foi chamada pela produtora. De alguma forma, foi afastada do Brasil e do seu povo. Daí o «exílio cultural», embora Aquarius, ironia das ironias, tenha investimento da Globo Filmes, um ramo para o cinema da estação televisiva.


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Hoje, a sua vida está entre os EUA e o Brasil. Na América trabalha; no Brasil, em Niterói, fica mais perto da família. Consegue estar no país que lhe deu fama internacional e no seu Brasil de que tanto gosta e não esquece. Nos anos 1980, Sónia chegou a Hollywood graças a um pequeno papel em O Beijo da Mulher-Aranha, o filme de Hector Babenco (um argentino adotado no Brasil), pequena produção americana que deu o Óscar a William Hurt. O papel era pequeno mas marcante. Tão marcante que choveram outros convites. E tomou a decisão da sua vida: dizer não ao reinado no Brasil, onde era a atriz mais famosa e amada, e ir para os EUA.

Em 1988 chegaram dois filmes com o seu nome no cartaz: o belíssimo O Segredo de Milagro, de Robert Redford, e a comédia Lua Nova em Parador, de Paul Mazursky, um desastre nas bilheteiras, em que contracenava com Richard Dreyfuss. O insucesso da farsa sobre um país fictício da América Latina teve consequências: Hollywood não a «despediu» mas o entusiasmo abrandou.

Valeu-lhe, dois anos depois, uma chamada da Warner para um pequeno papel em Rookie, Um Profissional de Perigo, de e com Clint Eastwood. A aura para o mercado americano terá murchado, mas nesses anos os atores latinos não tinham a saída destes dias. Hoje, a história seria diferente. Ainda assim, continuou sempre a trabalhar nas últimas décadas, especialmente em filmes diretos para vídeo, séries de televisão (tem uma participação em O Sexo e a Cidade) e telefilmes. Nada de verdadeiramente relevante, a não ser talvez uma interpretação, em 2006, em The Hottest State [O Estado Mais Quente], de Ethan Hawke.

«Apesar de todo o mundo a conhecer e a venerar no Brasil, a deserção de Sônia para Hollywood nunca foi bem digerida», diz Elaine Guerini, uma jornalista de cinema brasileira a trabalhar em Cannes. «É a tal coisa que a Maria de Medeiros também já me contou [sobre França] e que sente o mesmo em relação a Portugal. Ficou sempre aquele sentimento de que a Sônia trocou o Brasil pelo sonho americano. Ao contrário do Rodrigo Santoro, cujo trabalho em Hollywood nunca o impediu de voltar ao Brasil, Sónia nunca voltou, nunca fez nenhuma outra novela. Julgo também que a dada altura, sobretudo a nível de cinema, ninguém a convidou porque terão pensado que era inacessível. Na verdade, queria voltar. Kleber Mendonça Filho já disse que mal a convidou para protagonizar Aquarius ela disse logo que sim.» Se calhar, também teria dito o mesmo se o convite viesse deste lado do Atlântico.

«Fiquei com pena de nunca ter trabalhado em Portugal. Nunca consegui perceber a razão. Será que era porque pensavam que eu era inacessível?»

«Talvez… mas as pessoas intelectuais também pensavam que era apenas uma atriz de telenovelas e em Portugal talvez não respeitassem muito as novelas…» No entanto, o nome dela fazia esgotar sessões de cinema em Lisboa, nomeadamente aquando da febre em torno de Eu te Amo (1981), de Arnaldo Jabor. Ou antes, em 1976, com Dona Flor e os Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, lançado mais ou menos na mesma altura em que Gabriela, a novela de Jorge Amado, parava o país. «Lá está, mais estranho ainda não ter sido convidada. Teria gostado de trabalhar com um cineasta português.»

Dancing Days, em 1978 foi a última novela de Sônia Braga, embora tenha tido uma aparição como atriz convidada em Páginas da Vida, gravada em 2006. Mas nada se compara a Gabriela, Cravo e Canela. «Foi uma combinação de uma série de coisas. Ai, o Jorge Amado!…» E faz uma pausa. «Vocês estavam a sair da ditadura e nós em plena… Era um momento excecional e tínhamos um elenco fantástico. Foi a primeira vez que o Jorge Amado chegou à televisão e logo com este tema! Como foi possível a ditadura consentir? Ajudou também muito o realizador ser o Walter Avancini… Antes de Gabriela, só fazia personagens de meninas feias, neuróticas, tímidas e caipiras [provincianas]. Eu fazer a Gabriela foi algo excecional! Mudou a minha vida.»

E um sucesso desses dá a volta à cabeça? «Não, na minha não deu. Sempre fui um bocadinho hippie. Lembro-me de que adorava vestir saia comprida, sandálias ou calçar chinelas havaianas. As pessoas que trabalhavam comigo na Globo protestavam: “Sônia, não pode ser: sapato de operária!?” Ninguém andava de havaianas! E ficavam espantados por eu andar de táxi e não ter um apartamento grande. Reclamavam por não ter chauffeur particular… Eu só achava que se tivesse um apartamento grande tinha de contratar uma série de pessoas para tomar conta dele. E quanto ao facto de andar de táxi, era muito mais fácil. E com motorista deixaria de falar com os taxistas. Um taxista não deixa de ser um repórter da cidade, sobretudo os cariocas, que sabem tudo o que está a acontecer e que são ainda capazes de falar sobre as suas vidas… Achava a vida daquelas vedetas muito chata!»

E novelas, ainda vê? «Hoje não vejo mais telenovelas. Antes adorava, amava novelas. E adoro televisão. Mas odeio aquele discurso de que as pessoas já não vão ao cinema por ser uma coisa demasiado de arte. Por favor não subestimem o gosto do brasileiro, que tem um gosto incrível. Não se tome como garantido a capacidade de entendimento de alguém só porque não tem dinheiro. As pessoas só não vão ao cinema com a família porque não têm dinheiro.»

Aquarius ainda não tem estreia marcada para Portugal, mas espera-se que atraia público. Sobretudo por ela. Por aquela jornalista na reforma, com pontos de contacto com Sônia. Têm coisas em comum, não têm? Têm de ter. Já não é a Sônia que escalava o telhado de Nacibe em Gabriela com aquele vestido de chita. É uma mulher forte, um retrato com aquele empoderamento feminino que é o espelho das mulheres da sua geração que resistiram, que resistem. «Senti que a Clara era a minha plataforma. Quando li o argumento, cada palavra, cada atitude, cada movimento de resistência fazia sentido. Isso e as conversas que ela tem com a família. Tudo aquilo começou a fazer muito sentido para mim, mesmo tendo em conta que somos de dois backgrounds bem diferentes.» Pausa. Sónia Braga para de falar. Ensaia um recomeço e para novamente. Diz que está a ser interrompida por uma presença invisível. Mais uma pausa. Eu não sinto nenhum fantasma, a conversa prossegue. Já me tinham avisado que Sônia Braga não é como as outras estrelas de cinema, há qualquer coisa nela verdadeiramente «fora». Não se explica. Passada a pausa (ela garante que foi tocada, apanhou um susto), prossegue: «A Clara deu-me uma voz e agora nós vamos dar a voz a muita gente.»

Sônia Braga saiu de Cannes de mãos a abanar. Não ganhou ela nem ganhou o filme. Mas nada será como dantes. Sónia voltou. E em grande estilo.