O que é bom celebra-se, o não, não

Notícias Magazine

Fui estudante interno num colégio católico, o Brotero, na Foz do Douro, Porto. Os anos são distantes, do tempo em que mesmo uma boa escola não tolerava a leitura de romances nas horas de estudo, nem de clássicos. O refúgio permitido era um livro com histórias espantosas, a Bíblia. Li, pois, a destruição massiva de Sodoma e Gomorra como ficção científica, Jesus no casamento da Galileia passou por romance de costumes e os movimentados episódios de Caim e Abel foram devorados como luta entre dois chefes de gangs. Sagradas leituras!

Quer dizer, eu lia pelo prazer de ler, o que me poupava a julgamentos morais. Sim, o Kit Carson matava índios, que eram bons pais e maridos – nesse tempo, eu ainda não sabia que eram também ecologistas respeitáveis… –, o que não me impedia de virar a página com cautela, de forma a não alertar o navajo para o rastejar do meu herói. Isso, na hora do recreio. Da mesma forma, na leitura da Bíblia em local autorizado, eu mantinha o prazer do ato, sem a preocupação de julgar os factos narrados. Abraão a subir ao monte para sacrificar o seu filho Isaac – que grande maluco! Se calhar era o que dava ter filhos aos 100 anos…

Quando tive uma filha nunca lhe cortei as horas de ler e, para azar dela, não precisou de ler a Bíblia cedo. Um dia, os pais de um coleguinha pediram para o Sumit vir ao nosso Natal. Eles eram hindus e quiseram iniciar o garoto num mundo desconhecido. Recebemos o Sumit com gosto e, verifico agora, sem razões para temer.

A história que tínhamos para lhe oferecer era bonita, apesar de estranha. Depois de longa caminhada, um casal cuja mulher estava grávida de Deus (foi essa a explicação dada, que o Sumit aceitou natural) só encontrou um curral para descansar. Quando o menino nasceu surgiram três reis conduzidos por uma estrela (naquele tempo, não só o de Jesus como o do próprio Sumit, ainda o GPS não estava generalizado e a estrela foi bem aceite). E assim por diante.

Recentemente, lembrei-me da sorte de celebrar uma festividade que não me repugnava – sim, escrevi a palavra certa. Não sou religioso, mas gosto deste meu costume do Natal. Uma festa, apesar de inverosímil aqui e ali, de esperança, de bondade até nos olhos da vaquinha. Se fosse a Páscoa, também explicaria, sem vergonha, ao pequeno Sumit que na nossa casa se admirava e tentava praticar a compaixão, a dor pela dor dos outros.

Sorte, a de se ter essas festas e não outras. Olha se a tradição dos meus guardasse o sacrifício de Isaac?! Como eu explicaria isso a outros, os de fora e coleguinhas da minha filha? Deus disse a Abraão para matar o seu filho, o velho ia fazê-lo e só não o fez porque o anjo apareceu para parar. Eu sei e eu vi. Pintado por Rembrandt, Abraão já tinha a adaga no ar, quando o braço foi sustido pelo anjo – com a outra mão o pai tapava a cara de Isaac. Com Ticiano, Isaac está de joelhos e cara para terra. Com Caravaggio, de borco, Isaac berra. Com Chagall, Isaac está inerte. Em todos, Abraão não tem coragem de olhar os olhos do filho. Evidentemente. Ele tem vergonha.

O Corão também conta que Abraão aceitou sacrificar o seu outro filho, Ismael. E, como na Bíblia, só não o fez depois de Deus confirmar que ele estava decidido a fazê-lo. Hoje, 11 de setembro, é a principal festa do calendário islâmico, o Dia do Sacrifício ou Eid-ul-Adhaa – celebra-se isso. Celebra-se a submissão a Deus, mesmo quando as ordens são repugnantes. Eis o que eu nunca saberia contar ao pequeno Sumit ser festa em minha casa.

[Publicado originalmente na edição de 11 de setembro de 2016]