O misterioso desaparecimento do Canina

Notícias Magazine

Havia o Canina. Era um rapaz pequenino, de sardas, que usava fato de treino e camisola do Benfica. O Canina era bom de bola, costumava passar todos os intervalos a jogar no recreio, e não eram raras as vezes em que chegava atrasado à aula de Fisico-Química, suado e ofegante, porque forçara o prolongamento do jogo para lá do segundo toque. A professora podia ralhar com ele, mas deixava-o sempre entrar. E o Canina lá avançava pachorrento para uma das mesas de trás, com a mochila presa num ombro e uma bola gasta na mão, que voltaria a campo no intervalo seguinte. Devíamos estar no sétimo ano, ou no oitavo, seja como for aconteceu há uma vida. Imagino que o Canina, quando cresceu, deixou de ser Canina e passou a usar o nome com que os pais o batizaram.

Estou capaz de apostar que, no final dos anos oitenta, todas as escolas portuguesas tiveram pelo menos uma destas três figuras: o Canina, o Russo e o China. O Russo tinha cabelo meio loiro e por isso havia sempre miúdas que lhe achavam piada. Era o primeiro de nós a namorar. Ou a curtir no banco de trás do autocarro numa visita de estudo. O Russo era o anúncio de que não tardaria muito para chegarmos à adolescência e estarmos prontos a mostrar interesse por miúdas que nos achavam parvos. Mas também havia o China, que tinha os olhos em bico e era um dos nossos. Era aquele tipo que sabia umas coisas de fisgas e de canivetes. Foi o China que me ensinou que uma caneta Bic e um pedaço de papel mastigado podiam transformar-se em zarabatana. E que uma zarabatana era uma arma de guerra discreta, altamente eficaz quando a professora estava virada para o quadro.

O que raio lhes terá acontecido?

Reparem: há Tojós, Fanãs e Cabés que mantiveram o diminutivo para a idade adulta. Nos anos oitenta parecíamos precisar todos de um nome mais curto. Não havia Franciscos, havia Chicos. Não havia Antónios, havia Tonis e Toninhos. E havia Nandos, Tozés, Cajós. Esses nomes, em muitos casos, ainda existem. Noutros, os seus detentores preferiram substituí-los pelos nomes originais, e são só amizades muito antigas as que podem tratá-los assim. Isso também aconteceu ao Russo. E ao China. Mas o Canina não. Esse desapareceu com os últimos cartuchos da nossa infância.

Se virmos bem as coisas, o Canina é aquele tipo que só existiu depois do ciclo preparatório e antes do liceu. É o ícone de uma idade que nada tem de icónico: a puberdade. Não estou a falar da adolescência, essa traz-nos borbulhas e hormonas, encaixa-nos em grupos, faz-nos escolher músicas e caminhos. É fácil esquecermo-nos que houve um tempo, imediatamente antes desse, em que já não queríamos brincar com carrinhos mas ainda não éramos gente. É o último momento em que vivemos verdadeiramente descansados, livres sem qualquer esforço. Foi por isso que o Canina desapareceu. Ele foi o prenúncio de que as coisas iam mudar para sempre. Que andaríamos o resto da vida a tentar ser tão felizes como fomos nesses dias.