O curioso senhor Ole

Às vezes, um homem precisa de se perder para perceber de onde vem. O pintor angolano António Ole, 65 anos, galgou Europa e América até encontrar África. E, depois de um encontro inesperado com David Bowie, tornou-se um dos artistas mais relevantes do continente. Ontem abriu portas uma retrospetiva da sua obra na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Quando vivia em Los Angeles e tinha a sorte de vender um ou outro quadro, António Ole pegava no carro e fazia‑se ao caminho. Atravessava a América inteira, ia a São Francisco ver galerias, ao Colorado ver o Grand Canyon, a Nova Iorque ver museus. Um dia desaguou em Nova Orleães e era Mardi Gras. Tinha levado uma câmara, a sua ideia era subir o Mississippi para filmar como o jazz se tinha espalhado pelas margens do grande rio norte‑americano. Em vez disso, deixou‑se fascinar pelo carnaval. Havia ali metade de África e outro tanto de Caribe, aqueles grupos que marchavam pela rua em festa provocavam‑lhe uma imensa saudade de Luanda. «Enfiei‑me nos guetos negros para filmar os ensaios, mas os grupos brancos não me deixavam sequer aproximar. Quando lhes dizia que vinha de Angola, abriam muito os olhos, porque a mais famosa prisão do Sul dos EUA tem o nome do meu país.» Naquele jogo antigo entre negros e brancos fez‑se luz. «Era o meio da década de 1980, a luta pelos direitos civis tinha acontecido há vinte anos e no entanto eu via ali um sistema ainda feudal – e no país mais desenvolvido do mundo.» Esse atropelo que descobriu no Louisiana, essa desigualdade que homens com tons de pele diferente querem realçar, acabaria por se tornar o fio condutor da sua obra.

Alguns dos principais trabalhos de António Ole vão estar em exposição na Coleção Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, de 17 de Setembro a 9 de janeiro de 2017. É uma retrospetiva que viaja pelas fases do artista angolano e se apresenta em vários formatos: pintura, escultura, colagem, vídeo, fotografia e instalação. «Se Malangatana foi o nome maior da arte moderna nos países africanos de língua portuguesa, Ole é decano da arte contemporânea, uma figura internacional que ultrapassa largamente o território da lusofonia», diz Isabel Carlos, curadora desta exibição. Luanda‑Los Angeles‑Lisboa é o título. E é o roteiro central da vida de Ole.

A uma semana da abertura da exposição, a nave central da Gulbenkian parecia mais um estaleiro do que um museu. Havia carros que circulavam no interior do edifício, escadotes e fios elétricos por toda a parte, construía-se a cidade de Ole sob as orientações de Ole.

De Washington veio uma das suas peças fundamentais, Broken Boat, que já tinha impressionado a crítica na Bienal de Veneza do ano passado, onde Ole foi curador do pavilhão de Angola (já tinha sido convidado em 2013). A peça pertence à coleção do Smithsonian, o maior museu do mundo, e é considerada uma obra fundamental do artista. A artista namibiana Nicola Brandt definiu‑o como uma metáfora para a nossa incapacidade de aceder à história. Um barco rachado ao meio, que de um lado representa o legado do colonialismo e do outro uma África por construir, com tijolos empilhados, que nada edificaram.

Logo à entrada da exposição há um enorme mural chamado Township Wall, que congrega portas e janelas de musseques angolanos. Em frente, os retratos dos habitantes daquele bairro de lata. É uma parede impressionante e colorida, mas também uma constatação da pobreza e da alegria que existe no meio dela. Lá dentro, arrepios. E nenhum tão forte quanto Hidden Pages, cruzes e fotografias e objetos de cozinha sobre folhas de assento de escravos, que recolheu nos arquivos de Luanda. Alguns nomes referem‑se a crianças de 12 e 13 anos, nome, constituição física e saúde dentária, para trabalho ou para embarque – e Ole diz que esse embarque continua a ser um mistério de que ninguém quer falar. «O Brasil e o Caribe, todo o Atlântico na verdade, é negro por causa dos negros de Angola. Como se explica o nome de uma prisão no Mississippi se não for por isso? Não há negação da escravatura, mas há um desinteresse nas sociedades pela sua origem. E é isso que eu quero perceber.»

Também há muito trabalho em vídeo, até um filme inédito que realizou nos anos 1970 sobre as memórias de um dia na vida de uma mulher – Conceição de Tchimbula. Antes de viajar para o Mississippi, António Ole era mais conhecido pelo seu trabalho como realizador de televisão. Fazia documentários, retratava uma Angola acabadinha de ser livre, «era preciso construir uma identidade cultural do país». O seu esforço mais visível foi O Ritmo do N’Gola Ritmos, sobre uma das mais importantes bandas angolanas do século passado – que afirmava o semba como identidade própria, quase como resistência ao colonialismo. Mas, depois da independência, o filme acabaria por ser censurado por 11 anos. O fundador do grupo era Liceu Vieira Dias, de uma fação que tinha para o MPLA um projeto diferente do que a liderança do partido queria fazer vingar em Angola.

António Ole nasceu em Luanda em 1951, mas cresceu entre Benguela e o Lobito, porque o pai – funcionário da Direção-Geral de Transportes – tinha sido colocado a sul da capital. Aos 8 anos embarcou para a casa de familiares em Maiorca, aldeia perto da Figueira da Foz. Nos anos seguintes a sua vida passou‑se entre Angola e Portugal.

«Uma tia que vivia no Porto acabou por revelar‑se uma grande influência para mim. Ela frequentava o circuito das Belas-Artes, tudo aquilo era muito inspirador, e a primeira vez que dei nas vistas foi na escola primária: fiz uma caravela e um busto do infante D. Henrique.»

Mas seria na capital angolana que o jovem António ganharia alma de pintor. «A Câmara Muncipal organizava uns salões artísticos e um professor muito especial chamado Eduardo Zink, pai do escritor Rui Zink, achou que eu tinha potencial e incentivou‑me a concorrer.» Aos 19 anos ganhou o primeiro prémio, com um quadro que mostrava o Papa a tomar a pílula. «Foi um escândalo. O Movimento Nacional Feminino chamou‑lhe blasfémia mas o júri, constituído pelo arquiteto Troufa Real, o jornalista José Manuel da Nóbrega e o escritor Mário Dionísio saiu em minha defesa.» A partir daí, começou a empenhar‑se seriamente na produção artística.

Nas viagens a Lisboa visitava todos os museus que podia, a Gulbenkian era a promessa de um mundo novo, as Janelas Verdes a certeza da arte antiga. Os seus quadros, nesta altura, eram mais cubistas, influência do que bebia da Europa.

Ainda se inscreveu em Belas-Artes, mas ao primeiro inverno português desistiu da ideia. Aquele frio não era para ele. «Regressei a Luanda e comecei a fazer um programa  de rádio sobre arte moderna. Eu tinha convicções independentistas muito fortes, mas era discreto. Nunca fui preso, mas fui chamado para a tropa.» Era final de 1973 e, admite agora, teve sorte porque não teve de confrontar‑se com cenários de combate. Mal tinha saído da recruta já se anunciava uma revolução em Lisboa – e depois vinha a independência. «A televisão angolana estava em emissões experimentais, precisavam de gente que desse um ímpeto, que tivesse conhecimentos de fotografia e cinema. Chamaram‑me.»

O escritor José Luandino Vieira era diretor e tinha uma única exigência: registar a história. «Ele dava‑nos liberdade total. Num dia eu escrevia uma sinopse e um roteiro, no dia a seguir ia para o terreno. Como eu partilhava gabinete com o antropólogo e cineasta Ruy Duarte de Carvalho, começaram a interessar‑me mais as manifestações culturais do povo.» O alvor da guerra civil começava a fazer‑se sentir, havia recolher obrigatório em Luanda e não foi uma nem duas vezes que apanhou sustos incríveis quando cumpria picadas de terra batida à procura de histórias de uma Angola autêntica. «Ao fim de oito documentários, achei que precisava de aprender mais coisas, evoluir. E por isso decidi ir estudar para os Estados Unidos.»

Em Luanda, tinha conhecido um professor de uma universidade californiana chamado Gerald Bender, que lhe falou de um programa com bolsas de estudo para alunos estrangeiros. Em 1981, chegou à UCLA, uma das mais importantes universidades norte‑americanas. Inscreveu‑se em Estudos Africanos e, mais tarde, entrou no LA Film Institute. «Fui morar para uma pequena casa na Motor Avenue, que ligava os estúdios da Culver City aos da MGM. «Eu estava literalmente no meio do cinema. Comprei um carro em segunda mão e, nos quatro anos que vivi ali, percorri o país todo para fazer documentários. Mas, curiosamente, foi então que comecei a sentir saudades de África, e isso traduziu‑se num gosto cada vez maior pela pintura.» Voltou às telas, às instalações, também à escultura. Ao fim de quatro anos, era mais artista do que cineasta. E tinha percebido o que queria fazer: entender esse passado que os livros de História não escrevem mas que explicam toda a circunstância africana.

Nos Estados Unidos tinha conhecido uma mão-cheia de gente, artistas que lutavam pelos direitos civis dos afro‑americanos, outros que estavam empenhados ao combate ao apartheid. No final dos anos 1980, António Ole estava a pegar em tudo o que tinha aprendido e a tornar‑se um misto de historiador, antropólogo, artista plástico e ativista. A partir de Luanda, a sua obra suscitava cada vez mais interesse. Ole refletia sobre África e o seu passado na precisa altura em que o mundo começava a olhar para o continente negro. Era convidado para exposições em todo o mundo, sem que em Luanda, ou em Lisboa, alguém se apercebesse do impacte da sua obra. «Ainda hoje sou muito mais reconhecido fora do meu país, tenho de admitir.»

Em 1995, a vida de Ole mudou radicalmente e o culpado foi um tipo que no papel era inglês mas na verdade era de outro planeta: David Bowie. Pela primeira vez desde o fim do apartheid, realizava‑se uma bienal de arte em Joanesburgo e o angolano era um dos artistas convidados.

Quando Mandela e Bowie entraram no pavilhão, tinham um cordão de segurança imenso à sua volta e António decidiu abandonar o edifício para se escapar da confusão. «O David parou nas minhas obras e mandou chamar‑me, só que eu não estava lá. Era impossível eu ir ter com ele, mas ele voltou sozinho para falar comigo. Disse‑me que tinha gostado muito do meu trabalho. Comprou três obras minhas, uma máscara de ferro e duas caixas, e pediu‑me o telefone. Disse que nos manteríamos em contacto.» Esse espólio da coleção particular do cantor vai estar à venda na Sotheby’s a partir de novembro.

O contacto com Bowie repetiu‑se muitas vezes. O músico tinha escrito uma crítica de arte sobre a Bienal de Joanesburgo que se revelara essencial para a carreira internacional do angolano. Entrevistou Ole para uma revista chamada Modern Painters, depois ligava‑lhe com frequência. Porque queria convida‑lo a expor em qualquer lado, porque queria apresenta‑lo a um amigo galerista em Londres, porque era altura de apresentar trabalho no museu tal. «Andava sempre de um lado para outro, passava seis meses do ano fora de casa. Bowie era um homem de uma simplicidade incrível, de uma generosidade ímpar.» A curiosidade que Ole tinha mostrado toda a vida – por se meter em caminhos de terra batida para encontrar um país genuíno, por achar que precisava de aprender mais e por isso tornar‑se um nómada irremediável, por cumprir milhas e milhas de alcatrão para visitar os museus que lhe davam respostas – mostrava a vida agora por ele. E logo na forma de um ser que não era deste mundo, David Bowie.