O Bola de Ouro das gargantas

Notícias Magazine

Vou ser atrevido e escrever sobre um futuro que o leitor já conhece e eu, não. Na verdade, não é grande ousadia, faço uma aposta prudente. Quem duvida, para o próximo domingo, 10 de julho, que a final do Euro 2016 vai ser o fantástico Portugal-Islândia?

Temos, então, que Portugal ultrapassou a Polónia (o que o leitor já sabe, foi na quinta-feira) e a Bélgica (será na quarta), e que a Islândia ganhou à França (neste domingo) e à Alemanha (próxima quinta). Essas adivinhas simples faço-as sem pudor porque o futebol é quando e como o homem quiser. Parte da equação desejada, Portugal na final, vai de si. Temos rapazes muito bons (Raphaël Guerreiro, Renato Sanches e João Mário), temos velhos excelentes (Cristiano, Nani e Quaresma) e temos tido sorte. Logo, mesmo falhando, eles não podem envergonhar-me. E, não podendo, com esse mínimo garantido, como não embarcar na maior das ambições, sonhar ser campeão?

A outra parte do desejo tomado como realidade, a Islândia finalista, precisa de mais explicações. E estas são menos do domínio do divã do psicanalista (onde se deitam os doentes da bola, em que me incluo) e mais do sofá do espetador. Como sabem, a Islândia é uma potência futebolística, com a vantagem de ela se especializar em domínios geralmente descurados pelas outras grandes equipas.

Começo com uma comparação para me explicar. Muitos dos adeptos mundiais do râguebi deram-se conta dele por causa da Nova Zelândia. E não me refiro à excelência dos seus ensaios e pontapés de ressalto, não. O que nos faz saber até a alcunha da equipa neozelandesa, All Blacks, é a sua coreografia inicial, o canto de guerra que faz tremer os adversários antes mesmo de ela ensaiar a primeira das suas rudes placagens: enfim, o haka. No futebol, a Islândia também foi por aí – brilhar pelo lado menos óbvio da modalidade.

E é assim que a agora famosa ilha tem o Zidane dos locutores. Gudmundur Benediktsson, da TV islandesa, é o Bola de Ouro das gargantas. No momento dum golo dos seus, ele lança um falsete agudo que empolga os islandeses e aterroriza os adversários, reproduzindo, na frequência oposta, o efeito dos sons guturais do haka. Nos dias seguintes aos jogos, vai-se ao YouTube para ver os passes do Iniesta e ouvir o esganiçado do Benediktsson. Por cá, Iniesta ainda tem concorrência, mas, no seu ramo, o islandês é imbatível. Não se entendem os nossos comentadores – «(…) de 4x3x3 passámos a jogar em 4x3x2x1», lecionam, como se o momento fosse para as equações matemáticas – mas o que Benediktsson diz é claro: está feliz.

Isso quanto a magníficos gargarejos. Mas a Islândia tem mais. Ela é a campeã mundial da celebração de golos. Aquela sinergia que vimos no final do Islândia-Inglaterra, bater palmas de braços erguidos, em conjunto, equipa no relvado, adeptos na bancada, foi prolongamento duma tradição antiquíssima (para aí cinco anos) e praticada por quase todos os seus futebolistas profissionais (são cem). Marcam um golo e lançam-se num bailado explícito (tipo West Side Story) onde percebemos o enredo (mais uma vez, como não percebemos os nossos comentadores). Nada de histórias molengas, como embalar um bebé, mas cenas de futebol: Rambo a fingir esmurrar os colegas, mentiras de fisgar um peixe, glórias, enfim. Vão ao YouTube, o ballet não se explica.

Direi tudo ao confessar o meu dilema. Para esse Portugal-Islândia, de domingo próximo, eu balanço entre a arrebatadora sensação de ser campeão e o desejo perigoso de ouvir o inimigo a relatar-se e a dançar a sua alegria coletiva.

 


Leia na íntegra a reportagem: «Como é que a Islândia conseguiu chegar ao Euro 2016?»


[Publicado originalmente na edição de 3 de julho de 2016]