O banco que comeu o meu jantar

Notícias Magazine

Era a última semana de agosto e, como sempre, tínhamos gasto mais do que devíamos nas férias. Não é que tivéssemos entrado em loucuras, mas gastar mais do que o que se planeou para o verão é quase tão certo quanto o Benfica começar mal a época. Por isso, até ao fim do mês, sabíamos que tínhamos de apertar um bocadinho o cinto. Nada a que não estivéssemos habituados – austeridade é nome do meio para milhões de portugueses. Num domingo do final do mês, combinámos um jantar entre amigos, para saudar o retorno e avaliar a intensidade dos bronzeados. Sítio baratinho, concordámos todos. «Que aceite cartão de refeições», atirou alguém. Perfeito.

Desde 2013 que a maioria dos cidadãos que trabalham por conta de outrem recebe o subsídio de refeição em cartão. E esse cartão serve apenas para comprar comida, seja em supermercados ou em restaurantes. No sítio onde vivo, ainda há restaurantes baratos e honestos. Funcionam porque normalmente têm um bom cozinheiro – daqueles que preparam com grande técnica os mais humildes dos pratos. Mas depois há um problema: esses sítios deixaram nos últimos anos de aceitar pagamento multibanco. Desde 2012, os estabelecimentos têm de pagar uma comissão à Unicre por cada transação que um cliente faz. E isso levou muitos restaurantes a cancelarem os terminais de pagamento. Sobretudo estes sítios em conta, onde as margens de lucro são baixas.

Nesse domingo de final de agosto percorremos as ruas da Graça e do Intendente à procura de poiso. Entrámos em mais de uma dezena de sítios onde sabíamos que podíamos comer bem, sem gastar muito. Tem pagamento multibanco? «Já não temos, desculpe.» Indicavam o ponto de ATM mais próximo, que nem sempre era perto de onde estávamos – porque, como noticiava o Diário de Notícias há semanas, nos últimos cinco anos fecharam 1400 balcões, 22 por cento das sucursais bancárias do país. Para o caso, isso não era relevante, porque os cartões de refeição não permitem o levantamento de dinheiro. Sem um terminal num restaurante, nós simplesmente não podíamos usar o subsídio para pagar o jantar.

A conversão das empresas para o pagamento de subsídios em cartão aconteceu há três anos e foi apresentada como um mar de vantagens. O argumento era este: se o subsídio pago em numerário fosse acrescentado ao ordenado, seria alvo de tributação a partir dos 4,27 euros diários. Em cartão, a cobrança de impostos só se aplicaria a valores superiores a 6,83 euros por dia. Mas porquê? Porque é que o Estado decidiu cobrar mais a quem recebesse subsídio em numerário? A resposta está no exercício do costume: seguir o dinheiro.

Ao passarem os subsídios para cartão, as empresas pouparam no pagamento de taxas à segurança social. E, em vez de impostos, uma parte desse dinheiro passou a ser pago aos bancos – que cobram comissões de emissão, de inatividade, de substituição, de anuidade e de carregamento mensal. Ao mesmo tempo, os restaurantes passaram a ter de pagar por cada pagamento multibanco à Unicre. Quem recebe esse dinheiro? Os acionistas. Quem são os acionistas? Os bancos.

Já passava das dez da noite quando decidimos render-nos às evidências. Entrámos num restaurante onde não podíamos usar os cartões de refeição e pedimos o jantar. Estava delicioso, sim, mas ninguém comeu sobremesa. E não comer sobremesa é sempre um mau princípio. Como é mau princípio que o dinheiro que milhões de portugueses recebem mensalmente para alimentação não possa ser gasto a comer o que querem e onde querem. Para beneficiar os bancos, o Estado prejudicou as pequenas empresas e prejudicou os cidadãos. Talvez seja ingenuidade minha, mas parece-me difícil esperar que Portugal aumente o consumo para reduzir o défice quando limita a liberdade de escolha dos consumidores. Além de que estamos a desperdiçar um dos nossos bens mais preciosos: o arroz doce no final de um bom jantar.