Nuno Gama: «Adoraria ter a possibilidade de vestir António Costa»

Nuno Gama, cinquenta anos de vida, cinquenta coleções. A homenagem vai ser feita no casino Estoril, no dia 28 de setembro com um baile, um leilão, um desfile e um jantar preparado por quatro chefs. Os valores reverterão para a Cruz Vermelha Portuguesa. O estilista dobra o meio século com «Heterónimos» e Fernando Pessoa.

Na Maison Nuno Gama, o balcão, bloco gigante e maciço de latão polido, iluminado por 3 candeeiros tricotados à mão com cordão de sapatos, impõe-se. Por detrás, troncos de choupo com esculturas de David Oliveira cortam a vista envidraçada para a barbearia, espaço que remete para a Lisboa de outras eras. Em frente, do lado oposto do corredor, múltiplos charriots contam a história de cada coleção e um écran gigante passa os últimos desfiles do estilista. À direita, uma babel de tecidos, modelos e acessórios da moderna alfaiataria portuguesa demarca o espaço para quem procura o luxo feito à mão e por medida. Dissimulados nas paredes de espelho, os provadores. E uma porta de vidro divide o espaço comercial do atelier. É ali que Nuno Gama trabalha. Ali decorre a entrevista. O estilista conta 50 anos de vida. Gesticula, mãos enormes, sorri, ri e comove-se. Começa pelo atelier, 250 metros quadrados na Rua do Século inaugurados em 2014.

Loja, alfaiataria, barbearia. Fale-nos deste projecto.
Quando, em 2011, deixei o Porto e regressei a Lisboa, já trazia esta ideia: pensar no cliente, facilitar-lhe a vida, trazê-lo à loja, proporcionar-lhe os melhores tecidos do mundo e a nossa maneira de trabalhar, que é aquilo que nos distingue. Ser designer de moda não é só fazer desenhos e a loja foi pensada como um espaço de conforto, sem poluição de informação. Por isso, criámos duas zonas. Uma, com a coleção que apresentamos na Moda Lisboa, na maioria peças únicas que podemos replicar em trabalhos por medida; a outra, destinada à alfaiataria, cujas peças, embora mantendo um ou outro pormenor Nuno Gama, são feitas por encomenda personalizada.

Como descreve a sua marca?
Um homem contemporâneo e europeu. Um homem que se cuida, cultiva as coisas boas da vida. O mercado democratizou-se imenso. O «casual» passou a dominar. Mas a ausência de elegância e diferenciação cansa e dececiona. Então, de repente, o homem veste um fato de qualidade e gosta. Sente-se bem. Tem uma peça feita à mão exclusivamente para si, com o seu nome gravado. E com o fato, vem o carro e o isqueiro, o charuto e um bom vinho, enfim, o status. Aprender a saborear esses luxos, tal como faziam os nossos avós, é a grande tendência do mercado hoje em dia.

Uma loja para quem tem muito dinheiro?
Quem tem poder económico compra mais, é evidente. Mas não é preciso ter muito dinheiro. É, antes, uma questão de opção – escolher entre ter três fatos maus ou um muito bom, que vai durar uma vida. E há vários preços.

Quanto custa o fato mais barato?
Seiscentos euros. Falo de um fato em lã, mohair e seda. Para quem quer e pode viajar na maionese, o valor cresce muito rapidamente.

O estilista deve ser a cara da marca?
Faz sentido e eu sou a imagem da marca. Graças a Deus, não tenho uma figura horrorosa, para a idade que tenho até nem estou mal. Mas também devo dizer que por vezes o que me apetece mesmo é estar de havaianas e de T-shirt. E que se tiver de ir assim receber um cliente, pois vou. E de grande sorriso. Posso estar muito bem vestido e ser um tipo que não interessa a ninguém.

Já experimentou entrar de chinelos e calções numa loja da Avenida da Liberdade?
Mas aí a marca não tem culpa. Estamos a falar de gente mal formada, gente que julga que trabalhar numa loja melhor dá direito à má criação. Portugal tem ainda este defeito: há que pertencer a um clube, morar em determinada zona, ter o carro x, a roupa adequada. Ainda é assim um bocadinho. Um bocadinho grande. A avaliação preconceituosa dos outros faz-nos perder gente que valeria muito a pena conhecer.

Apenas veste peças suas?
Não faria sentido vestir coisas que não fossem Nuno Gama. Por norma, não visto peças de outros estilistas.

Nem nunca foi à Zara comprar uma T-shirt?
Por vezes. Mas evito, venho stressado e enervado e atormentado.

Por causa do que vê?
Pelo todo. Pela qualidade do design, às vezes fico surpreendido positivamente com peças de qualidade a preços que para nós são impensáveis. Pergunto-me como é possível estarem tão perto do reino da qualidade com aqueles preços. E, sobretudo, pergunto-me o que é que vamos fazer em resposta. O meu lugar é algo que é aferido todos os dias – o que dizem os clientes, o que querem, o que procuram, de que é que não gostam, o que é os outros estão a fazer e qual caminho que devo seguir. É fundamental ter uns ouvidos gigantes e ouvir, ouvir, ouvir as pessoas.

Um homem com mais seis quilos e menos vinte centímetros de altura deveria vestir essa camisa cintada e as essas calças skinny que traz vestidas?
Claro. Quem comanda é a cabeça. Esta camisa branca é normalíssima. Somos nós que damos luz às peças. Ou não damos. Sobretudo, devemos adaptar as tendências à nossa condição física e ao nosso gosto.

A roupa não faz milagres?
É um erro pensar que sim. As pessoas metem capas e capas e capas sobre si. Querem o último modelo de telemóvel, a última camisa, o última tendência. Passam a vida nisto e acabam sem se encontrar.

Roupa é apenas roupa?
A roupa deveria ser o espelho da nossa alma. É o nosso cenário. Por vezes, é apenas uma convenção social.

Perante um cliente, qual é o primeiro passo?
Captar-lhe a energia, ir ao seu encontro. Mas, sendo muito importante, a empatia não chega. É preciso afirmar imediatamente a capacidade de resposta àquilo que o cliente quer ou procura.

O cliente entra aqui com uma ideia fixa ou é suscetível?
Por vezes temos uns testes de resistência. Há quem tenha de si próprio uma imagem que coincide muito pouco com a realidade. Há muitos que por isso mesmo nem chegam a experimentar. Mas há os que confiam.

Como dizer a alguém que não tem corpo para vestir determinada peça?
Delicadamente. Por vezes, são personagens difíceis. O corpo, cabeça e vontade puxam para lados diferentes. Ainda hoje convenci um cliente de que usar um casaco muito curto não o beneficiava. Foi preciso ganhar-lhe a confiança.

E se o cliente insistir? Tem sempre razão?
A grande maioria dos clientes precisa da validação. E quando insistimos ele acaba por perceber. Se algo não está bem, temos de o convencer.

É mais difícil convencer um homem ou uma mulher?
As mulheres. Em regra são mais conflituosas. E têm muitos preconceitos. Os homens tem mais medos, são mais inseguros. A grande maioria dos homens têm vergonha de si próprios, de serem bonitos, de se arranjarem. Acham que esse é um território de gays ou de mulheres. Ora, a roupa não predefine tudo.

Qual é sensação de ver uma peça, projetada para um manequim, num corpo normal, por vezes muito baixo, com demasiada anca, barriga ou cintura?
Não tem tanto a ver com o corpo mas com a coordenação. Ver uma peça minha numa pessoa mal vestida ou mal coordenada incomoda-me. Mas tem um lado positivo – dá-me o confronto com o erro. E oportunidade de melhorar alguma coisa.

Qual é erro mais comum dos outfits dos homens que vemos na rua?
O uso de peças desproporcionadas. Calças largas, compridas, casacos enormes, por vezes dois números acima. Mangas enormes, mal se veem as mãos. Não estou a pedir umas calças coladas ao corpo. Bastaria alinhar um bocadinho. Optar, por exemplo, por um casaco com os ombros no sítio.

E nas mulheres?
Saias curtas em mulheres que não têm pernas suficientemente bonitas e decotes que oscilam entre a Madre Teresa de Calcutá e o strip. Sei bem que as pessoas não têm de se esconder. Mas é essencial ter sabedoria e bom senso. Cada vez mais gosto da elegância. Há uns anos, as pessoas tinham muita pinta, cuidavam-se muito. Rezo para que esses tempos voltem rapidamente. Os chapéus, por exemplo.

Usa chapéu?
Teria de ser um guarda-sol dado o tamanho da minha cabeça. É um dos meus maiores desgostos.

Já agora, pensando no guarda-roupa, em que época gostaria de viver?
Adoraria ir ao Egito. Ou à Roma antiga. As grandes civilizações fascinam-me. Contudo, não recuaria no tempo. É absolutamente genial estar em 2016 olhar para trás e poder usar toda a história.

Vestir bem é saber vestir para a ocasião?
A ocasião faz a coordenação.

Em Portugal, veste-se bem?
Os portugueses são um povo evoluído e de bom gosto, no geral, com um senão – são muito conservadores. Fazem as suas opções mais em função dos outros do que de si próprios. Quando me dizem «isso não é para mim», contraponho «e pode dizer-me por que não é?».

Prova desse conservadorismo é a imagem dos nossos políticos?
Gostaria que essas pessoas tivessem alguém que lhes dissesse que não basta acertar na cor das gravatas. Ou que não é boa ideia tentar esconder a barriga num blazer dois números acima da medida ideal. Gostaria muito que abandonassem essa ideia ultrapassada de as que primeiras damas têm de estar elegantes e os «primeiros-damos» como calhar.

Seria fácil vestir António Costa?
Seria um desafio. Adoraria ter essa possibilidade.

O próximo desafio está aí: a celebração de 50 anos de vida e de 50 coleções. Um jantar, um baile, um leilão e um desfile. Começemos pelo desfile da nova Linha de Alfaiataria para o outono-inverno 2017.
A grande tendência do momento é o feito à mão: fatos, camisas, sapatos e essa é a mensagem que quero passar. Sendo a minha quinquagésima coleção, fomos, por um lado, revisitar todas as anteriores, refazendo-as e revitalizando-as. Trata-se de uma coleção para vender. Se uma coleção não vender, não faz sentido.

Porquê «Heterónimos» e Fernando Pessoa?
Porque é a imagem da elegância dos anos 1930 e 40, com todos os seus códigos. Porque a revisitação das minhas coleções tem também algo de heterónimos. Depois, porque gosto muito de Fernando Pessoa. Considero-o um dos nossos maiores embaixadores. Inspira-me.

Os valores do jantar e do leilão revertem a favor da Cruz Vermelha Portuguesa.
Pertenço a uma família em que tudo era compartilhado. Ensinaram-me a compartilhar a vida com outras pessoas e que quanto mais damos mais recebemos. O tio Sebastião da Gama (poeta) era o tio louco de bondade, de generosidade, de saber amar os outros. O que a minha mãe me dizia era que pessoas como o tio Sebastião não eram a «normalidade» e que todos nós deveríamos sentir muito orgulho e felicidade por ter tido o tio Sebastião na nossa família como exemplo de amor incondicional e de partilha de vida. O que ainda hoje mantém a chama acesa é esta minha necessidade de partilhar as minhas ideias. Sem isso, nada faria sentido.

Dois desfiles por ano: leva-lhe quanto tempo e energia a preparação de uma coleção?
É um trabalho permanente. A próxima coleção é fruto de todos os anos de vida. Cada coleção resulta de um aglomerado de experiências pessoais, a todos os níveis. Antigamente, queria colocar em cada coleção milhões de ideias porque tinha medo de que alguma fosse menos boa. Hoje, sou muito mais objetivo e cirúrgico. O processo criativo é até bastante rápido. Mais difícil e moroso é perceber que direção tomar. Por exemplo, a coleção de verão reflete um conceito que passa muito pela forma como vejo o mundo, é como que um presságio de alguma coisa. Vivemos uma época marcada pelas guerras, pela crise dos refugiados, pelo terrorismo, pela globalização como nunca a vimos, e é importante que digerirmos isto de forma a encontrar forma de lidar com esta realidade. Sinto-me na obrigação de obrigar as pessoas a confrontarem-se com essa diversidade. Por isso, a minha coleção fala muito de tolerância.

A inspiração vem sempre da atualidade?
Nem sempre. Vem de pequenos cliques. A ideia de fazer uma coleção inspirada nos n’ Os Lusíadas surgiu no momento em que ouvi o Tiago Fernandes declamar poemas do tio Sebastião, no primeiro ensaio da coleção Arrábida. Portanto, estava a ensaiar uma e já estava a pensar noutra. Naquele instante, o mal estava instalado. A partir daquele momento, passei a viver com Os Lusíadas a 100 por cento.

O que é mais importante: o tecido, o corte, a cor?
Tudo. E não deixar escapar nada.

Embirra com algumas cores?
Durante muito tempo tive um problema com o amarelo. Cheguei a fazer uma coleção amarela para combater essa fobia. Não sei se consegui completamente e não estou sozinho. Em Portugal, o amarelo não vende. Não é uma cor portuguesa. Talvez por termos tanto sol.

Há bons manequins portugueses?
Excelentes manequins homens. Temos meia dúzia de mulheres fantásticas. Mas não passa da meia dúzia.

Tem um manequim favorito?
Acho a Sara [Sampaio] um diamantezinho. E tenho uma paixão enorme pela Ana Isabel, que foi uma grande manequim. Desmaquilhada era muito simples. Maquilhava-se e vestia-se e era um assombro. Iluminava a roupa.

Cinquenta coleções. Fale-me delas.
Ter tido a oportunidade de fazer 50 coleções em Portugal e no mundo é muito bom. Não há uma pior ou uma melhor. A da Praça do Comércio foi para mim memorável. A que fiz logo depois do enterro do meu pai, também. Foi uma coleção premonitória. De repente, um pedaço de tecido remete-me para um velho sobretudo do meu pai. A coleção parte daí. Dessa inspiração. Três dias antes de a apresentar, o meu pai foi a enterrar. Mistérios de vida. Mas fico muito feliz por ter na minha memória um sobretudo do meu pai que ainda hoje me inspira.

Venham mais cinquenta?
Não sei. Quero sim, continuar a viver esta vida sem medo e com a intensidade que me é possível. Aprender, absorver e partilhar isso com os outros. Em cada coleção digo aos outros o que vejo, o que faço, de que maneira olho para o mundo.

Um designer de moda faz arte?
Não penso nisso. Apenas me preocupo com a qualidade do que faço.

É mais fácil desenhar para mulheres ou para homens?
É mais fácil fazer um desfile glamoroso com mulheres. O mundo masculino é mais rígido. Daí ser muito difícil desenhar para homem. Qualquer diferença complica logo os neurónios de muita gente.

Tem alguma referência?
Não tenho. Raramente vejo revistas.

E gratidão?
Muita. Em 1995, quando comecei, gostava de falar da minha história, mas temia que as pessoas pensassem que o que eu dizia ficava no âmbito do rancho folclórico e pouco mais. De repente, vejo-me em Paris, rodeado de gente muito importante na moda francesa, gente que foi minha amiga, que me aturou, me abriu portas e me disse que eu era diferente e tinha uma história para contar. Dei muito e recebi muito.

E musas?
A minha maior musa foi a avó Bina.


Leia a segunda parte da entrevista a Nuno Gama.