Na estrada com os músicos

Por estes dias, com todos os festivais de verão, não têm mãos a medir com tantos espetáculos. Os roadies são a figura mais próxima dos músicos em cima de um palco. Certificam-se de que os instrumentos estão afinados e a garrafa de água está no local certo e estão prontos para salvar um concertos nas mais incríveis situações. Conhecem-se todos, trabalham para vários músicos, ajudam-se entre si, numa grande família. Uma relação de confiança e segurança, construída em cima de muitos anos de estrada, muitos concertos e muitas histórias. Aqui ficam algumas. As que se podem contar.

ROGÉRIO XAVIER
Roadie de Ana Moura, já trabalhou com João Pedro Pais, Jorge Palma e Dulce Pontes

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«Trata-se de uma relação de confiança. A Ana Moura vai tocar, eu tenho de me preocupar com tudo o que a banda precisa em palco. Já sei onde ela quer o copo de água, as afinações dos instrumentos, se a corda se partir que tipo de corda se usa numa guitarra portuguesa. Sei quando o baterista vai usar vassouras em vez de baquetas.» Tudo tem de estar no sítio. Por mais estranho que seja. Como o da cantora estrangeira que veio a Portugal e exigia que o palco fosse todo alcatifado de azul e houvesse incenso desde o camarim até ao palco. E ninguém podia tocar-lhe no cabelo.

Quando acabou o 12º ano, Rogério Xavier, hoje com 42, tirou um curso de técnico de som e começou a trabalhar no Teatro São Luiz, em Lisboa. Depois surgiu a oportunidade de ser roadie de João Pedro Pais. Já lá vão 18 anos.

Identificar-se com o género de música que a banda toca não é uma questão para Rogério Xavier. «Há bandas com que te identificas mais, mas aprendes a gostar. Trabalhei muito tempo com a Dulce Pontes, o fado já faz parte da minha vida. Em adolescente não ouvia fado, aprendi a gostar.»

A profissão tem dias duros e situações complicadas que por vezes têm de enfrentar. Palcos em terrenos baldios com estacas de madeira a nivelar o piso ou escadas em vez de rampas de acesso são só algumas dificuldades. «Ainda se arrisca um bocado em Portugal, quanto menos orçamento se tem mais riscos se corre.» E até quando se vê a fazer isto? Chegar assim aos 60? Resposta pronta: «E trabalhar até aos 60 num escritório não é pesado?»

NUNO PRETO
Roadie dos Xutos & Pontapés

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«Sou só o mais antigo, nada mais», diz Nuno Preto sobre a fama que tem entre os colegas. Chamam-lhe guru. Iniciou-se com 16 anos. Hoje tem 50. São 34 anos de profissão, 16 como roadie dos Xutos & Pontapés, assistindo Tim e João Cabeleira. «Passei pelos Trovante, Rui Veloso, GNR, Pedro Abrunhosa, Paulo Gonzo, Silence 4, Dulce Pontes, David Fonseca.» Conhece-os a todos. E os músicos conhecem-no a ele. E confiam. Têm de confiar. Ainda assim, a melhor escola para esta profissão, diz Nuno, é ter sido músico. Ele chegou a ter uma banda com o irmão e com Kalu, baterista dos Xutos & Pontapés.

«Há bandas que já não ensaiam, somos nós que ensaiamos por eles. Eles chegam, jantam e entram em palco.» Quando, em 2011, Zé Pedro esteve internado para um transplante de fígado, foi substituído em palco para os concertos dos Xutos & Pontapés pelo seu roadie, Tó Zé.

Tim quer sempre a água no mesmo sítio, o estrado da bateria, onde também quer uma lista com o alinhamento dos temas e uma toalha preta. Se o roadie se apercebe de que o músico começa a deixar as águas noutro sítio do palco, no concerto seguinte põe lá umas quantas também. «Ao fim e ao cabo somos assistentes pessoais dos músicos em tudo o que diga respeito ao palco.»

MÁRIO PEREIRA
Roadie de Aurea e Jorge Palma, já trabalhou com Rui Veloso

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Tem uma das histórias mais lendárias na vida de um roadie em Portugal. «Antes de entrar em palco, um músico perguntou-me: “Tens aí supercola?” “Tenho. Para quê?” “Põe só aí a jeito, não vá eu precisar.” A meio de uma música, vejo o público todo a rir.» Olhou para o músico e faltava-lhe um dente da frente. «Quando acabou de tocar, agarrei na cola, fui para o palco, procurei o dente e colei-o. Quando voltei para o meu canto, pensei: “Nem acredito que acabei de fazer isto”.»

Hoje Mário Pereira trabalha com Ala dos Namorados, Ana Moura, Jorge Palma, Aurea ou Rui Veloso. «Na hora, mais do que reparar, é preciso desenrascar.» Até porque, muitas vezes, as coisas correm mal sem grande razão. «É o fantasma do jantar», chama-lhe Nuno Preto, roadie dos Xutos & Pontapés. Deixam tudo preparado, vão jantar e, quando regressam, há algo que não está a funcionar, sem explicação. Estão habituados a isso. E a muitas horas de trabalho, também.

«Eu e o Pedro Borges, roadie do Sérgio Godinho, estamos no projeto dele com o Jorge Palma. Contabilizei as horas e uma vez, em 48 horas, trabalhámos 40.» São muitas horas de palco, de estrada, de hotel. Um espetáculo costuma acarretar 16 horas de expediente. «E depois temos de dormir no mesmo quarto, um ressona, o outro não ressona, um fuma, o outro não fuma.»

DÁRIO ALEXANDRE
Roadie de Pedro Abrunhosa, trabalhou com Ornatos Violeta, Jorge Palma e Expensive Soul

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Em 2012, 14 anos depois do final da banda, os Ornatos Violeta juntaram-se para alguns concertos. «No início, o Manel [Cruz] entrava em palco com o relógio no pulso, que não lhe dava jeito nenhum para tocar guitarra. Sabia onde eu estava, tirava o relógio e atirava-o pelo chão até mim.» Fazia sempre isso. E, em Paredes de Coura, passada mais de uma década, deu-se um momento único para Dário. «O Manel entrou em palco com tudo aos gritos e a chorar e de repente deve ter-se lembrado e começou a rir. Começámos os dois. Tirou o relógio e atirou-mo pelo chão. Arrepiei-me.» É de histórias destas que vive, também, a memória de um roadie.

Depois da banda do Porto, trabalhou com Jorge Palma, Expensive Soul e está há 16 anos com Pedro Abrunhosa. «Ele entra sempre em palco com a minha lanterna e ilumina as pessoas no público. Depois deixa-a no piano e eu vou lá buscá-la.» Quando quer um casaco, basta um pequeno gesto e Dário já sabe o que é. «Põe os braços para trás e eu visto-lhe o casaco.»

Era músico, tinha uma banda chamada Genocide e trabalhava para a Poltergeist, salas de ensaios para bandas no Porto. Começou a fazer um concerto ou outro como roadie. «Ia com a malta para curtir e para ajudar. Até que um dia o Mário Pereira, dos Expensive Soul, me disse: “Vamos trabalhar, vamos para a estrada”.»

HUGO COSTA
Road manager de Pedro Abrunhosa, já trabalhou com Clã e Ornatos Violeta

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«Acabamos por criar depressa um elo estreito e sólido com os músicos», diz Hugo Costa, road manager de Pedro Abrunhosa há três anos. «É como se fosse uma experiência de Big Brother, em que te colocam numa carrinha e estás longe dos teus amigos e da tua família.» Daí a necessidade de criar elos. «Eu fiz amigos muito chegados com quem mantenho relações próximas e com quem já não trabalho há anos.» Amigo de infância e vizinho dos membros dos Blind Zero, começou a acompanhá-los, a coisa correu bem e passou a fazer de roadie também para os Clã e os Ornatos Violeta. «Entretanto fui para a faculdade, mas a música foi um bichinho maior do que a contabilidade. Está-me no sangue.»

Quando começou a vir para Lisboa fazer concertos ficava em casa de um roadie ou de um músico, dormia no sofá, jantava com a família. Hugo também realça esta ideia de irmandade, de cumplicidade, entre eles. «Se uma pessoa está a telefonar-me é porque é importante. Ainda há pouco tempo, estava cá o Paulo Gonzo e precisavam de uns pedais e de um amplificador. Veio aqui um roadie num instante ao armazém, eu não estava, foi o meu pai ou a minha mãe quem lhe abriu a porta.» E frisa o profissionalismo. «Nunca um concerto deixou de acontecer por faltar um amplificador, uma bateria, o que for. Não que as coisas não avariem, isso acontece em todo o lado. É porque alguém resolveu. E esse alguém são os roadies

PEDRO BORGES
Roadie de Sérgio Godinho e David Fonseca, já trabalhou com Rui Veloso e João Pedro Pais

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«Aprendes a fazer a leitura dos sinais dos músicos em palco, quando lhes falta alguma coisa», diz Pedro Borges, roadie de Sérgio Godinho há oito anos. Tem consigo um amplificador de David Fonseca para mandar arranjar, a função passa também por guardar e tratar da manutenção do material dos músicos. «Tenho uma pedaleira dele para tratar das cablagens, tenho a guitarra dele para trocar um pick up. Todo o arsenal dele, coisas muito pessoais, está comigo neste momento.»

Iniciou-se há 14 anos, tem 37, passou por bandas como Blasted Mechanism e trabalhou com João Pedro Pais. Começou por fazer as dobras de toda a gente, não há escolas de formação de roadies. Aprende-se com a experiência.

Numa ocasião, um músico esqueceu-se dos óculos e teve de ficar junto de Pedro durante o concerto todo a dizer-lhe os temas um por um, por causa das programações do teclado. E depois há as superstições e manias. Ou as «necessidades de atenção». Um músico que, aos jantares, com toda a equipa técnica e artística, faz sempre questão de ser o primeiro a ser servido no restaurante, mesmo que a comida de outro elemento esteja pronta antes. Outro a quem Pedro já teve de cortar as unhas das mãos, porque este dizia que não conseguia. Um bom roadie tem de estar preparado para lidar e resolver qualquer situação. Como estar munido de um corta-unhas.

TIAGO ANDRÉ
Roadie de The Legendary Tiger Man, já trabalhou com Sean Riley & the Slowriders e Keep Razors Sharp

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«Comecei a trabalhar com o Paulo Furtado como técnico de luz», diz Tiago André. «Depois disso fiz tudo. The Legendary Tiger Man nasceu na minha garagem.» Os dois são de Coimbra, amigos de longa data. Hoje Tiago André é «apenas» roadie de Paulo Furtado nos projetos The Legendary Tiger Man e Wraygunn, porque o músico tem muito material, o equivalente a uma banda de quatro pessoas.

«A parte psicológica, emocional, não é para qualquer um. Todos os dias tens de fazer a tua casa numa cidade diferente, todos os dias enfrentas não sei quantas horas de viagem.» E tudo articulado com os compromissos de DJ. «Houve um dia em que demos um concerto às nove, na Holanda, arrumámos o material e às duas tocámos noutro sítio. No dia seguinte, tínhamos um concerto em França às onze da manhã e outro ao final do dia. Dormimos duas ou três horas, eu conduzi cinco e o Paulo foi para a parte de trás da carrinha dormir.»

Anda sempre vestido de preto, como todos os roadies, para não dar nas vistas em palco, mas, nos Coliseus, em 2011, o próprio Furtado pediu-lhe que fosse de fato e gravata e sapatos brancos. «Adorei o roadie dos Tomahawk, que vi uma vez. Era um gajo de dois metros e entrou em palco com um capacete viking e uma barba deste tamanho [aponta para meio do peito] para trocar a guitarra.»