Marco Paulo

Entrevista de vida com o homem de 71 anos que começou a celebração do meio século dedicado à música ontem à noite, no coliseu do Porto. segue-se o coliseu dos recreios, em Lisboa, no próximo sábado. Neste ano vai ser assim: uma festa para a legião de fãs que Marco Paulo continua a manter.

A partir de certa altura, aconteceu tudo o que queria que acontecesse: cantar e fazer disso vida. Discos, concertos, programas de televisão. E o sonho de infância concretizado, com orquestras de 120 músicos a acompanhar-lhe a voz. Nada pouco, admite, para o menino franzino que cantou pela primeira vez em cima de um banco para os convidados de um casamento, nos anos 1950. Daí foi para todos os países do mundo onde há um emigrante português. Para grandes cidades e aldeias perdidas, para palcos pequenos e grandes. Cantou só na sua língua. Profissional, sobreviveu a rótulos, sempre engomado, do alto dos caracóis. Mas com mágoa: cantor piroso ou ícone «das sopeiras» foram críticas que lhe custaram. Há neste verdadeiro artista uma franqueza rara, um instinto de sobrevivência mais forte do que um cancro diagnosticado. Entrevistar Marco Paulo tem os seus riscos: profissional e genuíno ao mesmo tempo, a sua simpatia desarma. «Quero só um arzinho, na minha idade ainda não é preciso fazer grande coisa. Dizem-me sempre que tenho a pele tão boa», pede, a preparar-se para as fotografias. João Simão da Silva, nascido no Alentejo, tem 71 anos. Mas não parece. Marco Paulo não tem idade.

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Vamos começar por uma tarde de domingo de 1956. Alenquer, uma festa de casamento. O tio da noiva convida uma criança que brinca com outras, na rua, a cantar para os convidados. Fale‑me desse miúdo de 12 anos que subiu para uma cadeira.

Era um miúdo que cantarolava muito, em casa, na rua, na escola. Todos gostavam de me ouvir. Era o mais brincalhão dos quatro irmãos, desde sempre o bobo da corte, entretinha as pessoas. Sobressaía. E tive sempre uma grande voz. Lembro‑me bem dessa tarde. Cantei duas músicas, em cima de uma cadeira, porque era muito pequenino. Ficou tudo encantado.
Já tinha a noção de que entretinha os outros, desse poder?
Sabia que a minha voz exercia algum fascínio. Sempre achei que o que leva tanta gente a ouvir‑me é a emoção que a minha voz transmite. Essa capacidade vem‑me de miúdo. Cantava na rua, enquanto caminhava, e as pessoas ofereciam‑me rebuçados.
O que achavam os pais?
A minha mãe achava muita graça, o meu pai nem tanto.
Que músicas cantarolava?
Não me recordo. Talvez as que ouvia na rádio na época.
As de Joselito?
O Joselito apareceu na minha vida um ano depois. Fiz tal sucesso no casamento, que no ano seguinte o mesmo senhor convidou‑me para cantar nas festas do orfanato de Alenquer. O meu pai não achou graça, temeu que eu não me saísse bem, mas acabou por concordar. Cantei então a Campanera, do Joselito, que aprendi com o ouvido colado às frinchas da porta do cinema. E foi um sucesso.
Não viu o filme?
Uma vez. Tê‑lo‑ia visto vezes sem conta, mas os meus pais não tinham essas possibilidades. Então, ia para a porta ouvir o Joselito. Estava fascinado com a voz dele e com a Campanera, aquela música tinha de fazer parte de mim. Não fui compositor nem autor, embora tivesse gostado muito de sê‑lo, não aprendi a tocar um instrumento, mas tinha a minha voz. Pois, nessas festas saí‑me muito bem. Saí do palco com o chão cheio de rebuçados.
Cachet em rebuçados?
O cachet foi um arroz de cabidela. E se eu gosto de arroz de cabidela. Só não gostei de ficar numa tenda a cear sozinho. Perguntei se podia ir chamar um dos meus irmãos e uns amigos para comerem comigo. Tinha 12 anos. No ano seguinte fui eu a atração.
Como correu?
Mal. Desafinei, coisa muito esganiçada. Saí do palco envergonhado. Corri até casa.
Alguma vez mais voltaria a desafinar?
Em cinquenta anos de carreira, foi vez única. Mas a verdade é que, mesmo desafinando, convidaram‑me, ainda nesse ano, para ser vocalista do rancho de Alenquer. E foi assim que começou.
Tinha 13 anos. Percebeu aí que iria cantar o resto da sua vida?
Não me apercebi de nada. Sabia que tinha uma voz bonita, que as pessoas que me ouviam na rua gostavam, mas nunca pensei que seria um modo de vida. Não sabia o que era ser artista. Sabia uma coisa: que depois de fazer a quarta classe não podia ficar a olhar para o teto. Tinha de ir trabalhar.
Antes de ser funcionário do Estado (escriturário das finanças), o pai trabalhou numa farmácia. E encarregou‑se que o filho lhe seguisse as pisadas.
Levantava‑me as seis da manhã, apanhava a camioneta e ainda andava uns quilómetros. Esperava que chegassem as nove horas e que a farmácia abrisse, numa tasca onde os homens iam tomar o mata‑bicho. Durante todos os dias do ano em que lá trabalhei, ia para uma casa de banho gélida lavar garrafas. Nunca suportei o frio. E não recebia ordenado.
Pensava que aquilo não era para si?
Eu não pensava muito. Aquilo fazia parte. No ano seguinte, com 15 anos, ainda em Alenquer, o meu pai arranjou‑me trabalho numa loja de fazendas. Lá fui, mas não sabia medir, enganava‑me nas contas com metros e centímetros. Depois passei para um escritório, no Carregado.
Foi difícil lidar com a oposição do pai às cantigas?
Não o fazia por birra. Queria que eu tivesse um trabalho seguro, o sonho dele era que eu fosse escriturário das finanças. E eu obedecia. Naquele tempo era assim. Fazia aquilo que os meus pais achavam que eu tinha de fazer, sem questionar. Não o digo com mágoa. Ir para uma farmácia com 14 anos lavar garrafas com um frio terrível? Detestei, mas obedeci.
Com 17 anos mudou‑se para o Barreiro. E começou a estudar à noite. Por vontade ou obrigado?
Para alegria do meu pai, tirei o segundo ano comercial na Escola Alfredo da Silva. Podia finalmente ir para o escritório. Mas aí já cantava nas coletividades de Barreiro, Moita, Montijo e Setúbal. Se há destino ele estava ali, no Barreiro. Nunca procurei nada. Nem quando, ainda em Alenquer, recebi o meu primeiro cachet a sério – 50 escudos e um garrafão de vinho tinto – que entreguei à minha mãe, achei que ia ser artista. Mas estava escrito – tinha de cantar.
Porque acha que houve um destino?
Por isto: nasci em Mourão, uma vila alentejana pequenina, rural, podia lá ter ficado toda a vida. Por causa da profissão do meu pai, fui com 5 anos para Celorico de Basto e Arcos de Valdevez e também podia lá ter ficado. Mas não, fui viver para Alenquer, sempre a aproximar‑me do local onde acabaria por encontrar a minha oportunidade de ser o que sou hoje. Havia qualquer coisa à minha espera.
Que momento foi esse, decisivo?
No Barreiro, trabalhava de dia, estudava à noite e ao fim de semana cantava. Para educar a voz, tinha aulas de canto com Corina Freire e foi numa dessas aulas que a Cidália Meireles me ouviu e convidou para ir ao programa que tinha na RTP, o Tu Cá, Tu Lá. Apesar de ter 17 anos, foi preciso convencer o meu pai. A minha mãe insistiu e eu fui.
Resultado?
Fiquei «famoso». A minha mãe deixou de poder ir à praça. E a Cidália, tendo recebido tanta correspondência sobre o rapaz jovem, bonito e com voz bonita, voltou a convidar‑me. Apareceu então a Valentim de Carvalho. Mas nem nessa altura me apercebi de que seria essa a minha vida.
Nessa altura onde trabalhava?
Num escritório de uma fábrica como escriturário. Teria sido essa a minha vida se não tivesse o meu destino. E eu não era mau escriturário. Tinha jeito. Iria ser feliz? Não sei se seria ou se deixaria de ser.
Voltemos ao destino.
Uma colega minha do Barreiro, Mariete Pessanha, indicou o meu nome para a abertura da Madalena Iglésias na Madeira. Era uma grande vedeta, estava no auge, tinha de ser, portanto, alguém com boa voz. E eles aceitaram. Correu tudo tão bem e foi tudo tão bonito que então, sim, decidi deixar o escritório e passar a ser profissional.
Na altura já não era o João Silva. Porquê Marco Paulo?
A troca do nome foi uma exigência da produtora. Era para ser João Paulo mas como havia o Conjunto João Paulo foi preciso pensar em alternativas. Eu gostava muito de Paulo. Lembrei‑me então de Marco, outro dos meus nomes favoritos.
Ainda se reconhece no nome João?
Eu nunca penso em mim como João. Penso sempre como Marco. A única voz em que me reconhecia João era na da minha mãe. A ela respondia sempre por João. A mais ninguém. Os meus pais nunca se referiam a mim por Marco Paulo. Diziam sempre «o meu João», o «nosso João».
Algum dia o pai reconheceu que o filho escolheu o caminho certo?
Nunca. Isso seria ir contra o que ele sempre defendeu. Sobre dois assuntos nunca trocámos uma palavra: religião, que não era a mesma (pai protestante, filho católico) e espetáculos. Sempre que me via na televisão comentava com a minha mãe, mas nunca me disse nada. Nunca deu o braço a torcer.
Como lidou com esse silêncio?
Custava‑me que o meu pai não falasse no assunto. Eu sei que tinha orgulho em mim, e que falar de mim aos amigos fazia bem ao seu ego. Mas a mim nem uma palavra. Creio que o meu pai foi ver‑me cantar uma única vez e numa festa de solidariedade. A minha mãe era o contrário. Gostava muito de ir ouvir‑me cantar, tinha muito orgulho, nessas alturas notava nos olhos e no sorriso dela a felicidade. Como se ela estivesse no meu lugar.
A mãe cantava?
Não. A minha avó, sim, cantava na igreja de Mourão, e o meu gosto pela música e pelo canto vem daí. O meu pai também foi músico numa banda filarmónica. Para ele era um passatempo. Mas poderia ter sido uma razão para me ter percebido um bocadinho melhor.

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Edita em 1966 o primeiro EP. Em 1967 participa no Festival RTP da Canção. Era já uma vedeta. Terá sido por isso que não foi para a linha da frente na Guiné, onde cumpriu o serviço militar durante 19 meses, sem nunca sair de Bissau?
Não faço ideia. Pensava até que nem iria à tropa e nunca me passou pela cabeça que fosse para lá matar ou morrer. Mas não questionava. Sempre ouvira dizer que aquilo era Portugal. Fiquei num quartel em Bissau, escriturário da secção de justiça. Realmente, era muito conhecido, cantava muito em festas, quer para os oficiais quer para os meus camaradas.
António Calvário, Artur Garcia, Toni de Matos, Simone, Madalena Iglésias e Maria de Fátima Bravo eram pesos-pesados do nacional-cançonetismo.
A minha grande influência era a música do Calvário. Embora todos me merecessem respeito, a figura mágica, a que me inspirava, a que me deixava preso aos discos e ao ecrã, era Amália. Em minha casa todos eram «amalianos» e desde sempre sonhava poder encontrar‑me com ela, única em Portugal e no mundo. Não só chegámos a encontrar‑nos como cantámos juntos. Continuei a considera‑la intocável.
Gravou também com alguns dos técnicos de Amália e orquestra ao vivo. Era a prova de fogo?
Muito complicada. Não havia grava-desgrava, tinha de sair à primeira, sem fífias. Era maravilhoso e assustador. Gravei com os maiores maestros em Portugal. Se falhasse era o trabalho daquela gente toda – setenta, oitenta músicos – que ia por água abaixo. Nem eu admitia falhar perante a minha editora, que esperava uma voz forte, brilhante. E eu considerava‑me um funcionário da editora. Era a época: ou se cantava ou não se cantava. Hoje conseguem pôr a cantar pessoas que não cantam.
Há muitos casos desses?
Infelizmente há alguns.
Que vozes vê hoje capazes de enfrentar uma gravação com orquestras ao vivo?
Não faço comentários a respeito das pessoas. Falo por mim. Hoje gravo com três pessoas no estúdio. Naquele tempo era diferente. Em tudo: só recorri a playback em televisão e no início da minha carreira, quando ainda me faltava a estrutura que tenho hoje. Com o estatuto veio a obrigação de não fazer playback. O público merece‑me isso. E se não puder levar a minha banda de dez músicos não aceito convites.
Foi surpreendido pelo sucesso?
Foi saboroso. Não parava. Chegava a cantar todos os dias e os aviões eram a minha casa. O sucesso das minhas músicas junto do grande público vem da simplicidade da música, das letras e da voz.
O período pós‑25 de Abril foi o mais difícil da carreira?
Foi para todos. As pessoas achavam que devia ouvir‑se música de intervenção. Nessa altura, tive um convite para trabalhar no circo Brasil, no Mexicano e em discotecas. E era com isso que sobrevivia. Cantei, por exemplo, dentro de uma jaula com leões, no Porto. Não foi coisa de que tivesse gostado muito, confesso.
Finais dos anos 1970 e toda a década de 1980 é de ouro. Os discos tornaram‑no um homem rico. Que relação tem com o dinheiro?
Bastante distante. Nunca fiz do dinheiro um luxo nem o exibo. Nunca deu para comprar um avião, mas era muito agradável receber aquele dinheiro de seis em seis meses, sempre para governar a minha casa.
Confirma que não gosta muito de Eu Tenho Dois Amores, talvez o maior dos seus sucessos?
Não gosto muito e, sobretudo, estou cansado de a cantar. Onde quer que vá pedem‑me essa música. Nos Coliseus vou cantar uma versão a capella com o público. Porque a música é deles e não minha.
Durante estes cinquenta anos, houve sempre quem gostasse muito de o ouvir e quem detestasse. As críticas negativas magoam‑no?
Houve os que me achavam piroso, que achavam a música pirosa porque era a música das sopeiras. O Julio Iglesias, o Roberto Carlos e o Marco Paulo eram os cantores das sopeiras, diziam alguns, e eu não achava isso bonito. Magoava‑me, ficava muito triste. Mas, graças a Deus, qualquer um dos três continua em atividade.
Nunca tendo estudado música, sempre se rodeou, dizem até os seus detratores, de grandes músicos. E os seus maiores sucessos são versões.
Sempre me rodeei de pessoas que acreditavam em mim, músicos e produtores, e que eu nunca desiludi porque era um cantor muito afinado. Ainda hoje sou muito afinado. Não sei ler uma pauta de música, tenho um piano apenas porque me foi oferecido, mas tenho muito ouvido musical.
Dos caracóis ao truque do microfone – quem «inventou» a imagem de marca?
Ninguém. Foi sempre tudo muito natural, mesmo o gesto com o microfone. O cabelo encaracolado também não foi pensado. Nem era permamente. Um dia tomei duche e não sequei o cabelo. A partir daí encaracolou. Muita gente ia aos cabeleireiros pedir o meu penteado e havia quem me puxasse o cabelo para ver se era peruca. Ou se é artista ou não se é artista. Achei sempre que não podia só cantar mas não fui pedir a ninguém para me criar uma imagem. Fiz sempre o que achei que tinha que ver com a época e com o meu estilo de música. Criei um estilo e marquei uma época.
Em finais dos anos 1980, Herman José caricaturou o cantor romântico. Reviu‑se em alguns gestos e tiques de Serafim Saudade?
Não. E foi o Herman quem disse que se tinha inspirado num outro cantor, embora ele soubesse que o público iria pensar que se dirigia a mim. Mas nesse aspeto tenho fair play e ainda que me fosse dirigido não me incomodaria.
Dá muita importância à forma como se apresenta. Sempre.
Mesmo em casa: ando à vontade mas não de qualquer maneira. Gosto de estar sempre bem. Ultimamente, peço opinião para a roupa que devo levar aos meus concertos. Sou um homem de outra idade, mais amadurecido e com uma música diferente. Já não me sinto bem com caracóis. Não se usam, não têm que ver comigo.
Onde compra os fatos?
Não digo marcas. Apenas que os compro em Portugal.
Quantos tem?
Não é preciso ter muitos. Com várias camisas e várias gravatas fazem‑se muitos conjuntos agradáveis e bonitos.
E as gravatas? São bons presentes?
Tenho cento e muitas gravatas que ao longo dos anos me ofereceram. Mas desde o dia em que a minha mãe faleceu, há treze anos, que só uso gravatas pretas, sobretudo em televisão. E também porque me ficam bem.
É vaidoso? Acha‑se um homem bonito?
Nem sou vaidoso nem arrogante. Fui um jovem interessante. Hoje, pelo que me dizem, não tenho razão de queixa. Sinto‑me muito bem.
Como é envelhecer?
Lido com o envelhecimento com naturalidade. Faz parte da vida. Só não quero sofrer e ficar dependente. De resto, é viver um dia de cada vez e ser feliz.
Quem diria: uma das suas músicas foi vetada pela Rádio Renascença.
Julgo que foram até duas. Taras e Manias e uma outra. Bem, em sua casa, cada faz o que quer, mas não acho normal que se proíbam discos depois do 25 de Abril. O mesmo na televisão: não me convidavam porque era um cantor muito popular e na RTP só passavam os de referência. Mas que culpa tinha eu que os portugueses comprassem os meus discos e gostassem de me ouvir cantar?
Contudo, em 1994, apresenta Eu Tenho Dois Amores, o programa que lança a Maria Rueff.
A Maria Rueff foi uma escolha da Rosa Lobato de Faria e do Thilo Krasmann. E foi uma escolha maravilhosa, é uma grande atriz. Sei que ela fala muito pouco do assunto. Mas onde ela se mostrou ao grande público foi no Eu Tenho Dois Amores do Marco Paulo. Foi aí que o Herman José a conheceu.
Acha que o facto a embaraça, é isso?
Ela fez parte do programa, tinha semanalmente destaque e fez um trabalho belíssimo. Nas entrevistas que leio dela, não a vejo valorizar isso, como se fosse um programa menor.
Sente‑se querido no meio?
Muito. As pessoas têm muito carinho por mim. Só tenho a agradecer.
E o que acha que os portugueses, incluindo os que não apreciam a sua música, pensam de si?
A minha página no Facebook é prova de que sou seguido com muito carinho por muitos fãs. Passados cinquenta anos, sem grandes anúncios ou promoção, sem patrocinadores, os meus Coliseus esgotaram a um mês dos espetáculos. Esse é o meu barómetro. É muito bom saber que ainda faço parte da vida dos portugueses.
Que marca deixa na música portuguesa?
Nunca ter sido um cantor de modas. Fui sempre o Marco Paulo, nunca precisei de mudar. Continuo a cantar o que sempre cantei e falo com os meus fãs como se estivesse com eles em minha casa. E as minhas fãs sabem disso. Gosto de lhes tocar, de tirar fotografias com elas, de lhes assinar os meus discos. Dizer‑lhes que estou presente.
Foi muito perseguido pelas fãs?
Foram sempre discretas. Lembro‑me de uma rapariga que quis conhecer‑me e levaram‑na ao meu camarim. Não conseguiu dizer uma palavra. Olhou para mim e caiu no chão, desmaiada. O meu staff conhece melhor estas histórias. Eu vou do hotel para os concertos e dos concertos para o hotel.
Muitos fãs masculinos?
Penso que sim. De há uns anos para cá, os homens têm mais à‑vontade para dizerem que gostam do artista. E vão ver os meus concertos e pedem os meus discos na rádio. Isso é positivo.
Que exigências faz para um concerto?
Tirando as exigências logísticas, nada. Não exijo nada. Apenas que me recebam bem e que me paguem.
E sempre pagaram?
Há um ou outro que não. Mas não tenho razão de queixa.
Trata bem a voz?
Sendo um dom de Deus só preciso de a conservar. Dos meus três irmãos, só eu tive esta voz.
Nunca perdeu a voz num concerto?
Nunca, graças a Deus. Mesmo cantando músicas de grande porte e em condições por vezes muito difíceis. Esse é o grande desafio que faz parte do meu trabalho. Hoje, as condições são muito melhores.
Tem alguma superstição em palco?
Só uma: entrar sempre pelo lado direito.
E tem sucessor?
Nunca pensei no assunto. Nunca me considerei um sucessor do António Calvário, pelo respeito que tenho por ele. Mas sempre lhe disse que sou seu fã e não sei se hoje haverá quem tenha a coragem de me dizer o mesmo. Não sei se tenho um sucessor. Sei que já cantei mais do que cantarei e vivi mais do que viverei. Desejo que quem vier a seguir consiga fazer a carreira que eu fiz, com a mesma humildade, o mesmo respeito pelo público e pelos jornalistas
Gosta de Toni Carreira?
Por norma, não tenho muito jeito para falar dos meus colegas. Respeito o seu trabalho.
Que música ouve no carro?
Procuro sempre as rádios locais porque sei que é nelas que «passo» mais.
E em casa?
Para não ferir suscetibilidades de outros colegas, digo apenas um nome: Amália. Faço questão de comprar os seus discos.
Voltando aos jornalistas. Sempre se protegeu muito: não sai à noite, não aparece em festas.
Não tenho nada contra quem gosta de aparecer, mas eu não fui assim habituado. Sou de Mourão, uma vila alentejana de gente muito simples, os meus pais eram pessoas muito simples e nunca fui de me armar. Os jornalistas perceberam isso. Sempre respeitaram o meu espaço e o meu trabalho, nunca fui incomodado.
Incluindo na fase da doença?
Um jornal fez uma montagem com umas fotos minhas. Em que aparecia com um ar muito doente e careca, o que não era o caso. Quando os meus compadres me mostraram o jornal fiquei muito triste mas foi uma exceção. Mais tarde, quando entendi, fiz uma reportagem muito bonita com uma revista. A partir daí, as pessoas vinham todos os dias a minha casa trazer‑me flores e desejar‑me as melhoras. E eu mandava‑as entrar. Ficavam surpreendidas por manda‑las entrar e felizes por me verem.
Que cancro era? Quer dizer?
Prefiro não dizer.
Quando recebeu o diagnóstico, pensou em perder ou vencer?
Vencer. Mas o chão desabou. Foi‑me dito que o tumor era muito grave e que teria poucos dias de vida. Como era possível, se na véspera estava bem? Sempre pensei que era engano. A quimioterapia e a queda do cabelo foram o segundo choque. Era a minha imagem, o cabelo fazia parte dela, sem ele sentia‑me despido. Não era por vaidade mas tinha gosto nele. Mas tive sempre muita fé. Disse‑o aos meus compadres, que eram as pessoas mais próximas de mim.
E os pais?
A minha mãe não soube que eu tinha um cancro. Escondemos‑lhe isso porque ela tinha um problema de coração. Mais tarde, já fora de perigo, convidei os meus pais para um jantar. Então contei‑lhes. Não foi fácil. E cá estou eu a comover‑me.
Nesse confronto com a morte, com o fim da vida, angustiou‑o não deixar descendência?
Não. Na altura própria, casando ou não, poderia ter acontecido porque era muito assediado. Não aconteceu e nunca senti falta. Estava tão obcecado com o meu trabalho e com o sucesso que ele me proporcionava que tinha pouca disponibilidade. Depois, nasceu o meu afilhado. O Marco António, hoje com 25 anos, é como se fosse também meu. Criar é amar. E estou bem como estou.
Quanto tempo esteve sem cantar?
Ano e meio. Custou muito, tinha muitas saudades do palco, dos aplausos. O meu afilhado foi quem me deu mais força. Tinha na altura 5 anos e visitava‑me todos os dias.
Recebeu muitas visitas?
Do meio artístico, no hospital, não. A única foi Amália. E telefonou‑me muitas vezes.
É difícil cantar para os outros quando se está muito triste?
O mais difícil é conseguir sair de casa. Por vezes, perguntamo‑nos como vamos conseguir animar as pessoas que estão à nossa espera. Por exemplo, nunca tive medo dos Coliseus. Mas sempre achei que só devia «fazê‑los» ou no meu regresso depois da doença ou numa data redonda, como os 50 anos de carreira, ou na despedida.
Vai ser quando, a despedida?
Ainda não pensei nisso. Não me imporei ao público. Mas acho que nem eu nem o público temos vontade de que isso aconteça tão rápido. O Coliseu nunca foi uma prioridade na minha carreira. É tão importante cantar numa vila como no Coliseu. Mas vai ser uma festa bonita. Os concertos deste ano vão ser uma comemoração com muita alegria. Já não posso ter lá a minha mãe, a minha irmã e o meu pai, mas vou ter os meus irmãos e os meus sobrinhos. Falo disto e comovo‑me.
O que está ainda por fazer?
Gostava muito de ter talento musical e poético. Gostava de ter feito as minhas composições. Não foi possível? Paciência.
Destes cinquenta anos, o que ficou de mais importante?
Tudo foi e é importante. Tive uma adolescência e uma juventude felizes. Tive uns bons pais a quem troquei a voltas, porque tinha de ser assim. A partir de certa altura, aconteceu tudo o que queria que acontecesse. Fiz o que tinha de fazer na altura certa: apresentei programas, gravei discos, fiz concertos. Tinha o sonho de cantar com uma orquestra com 120 músicos e consegui. Para um menino que cantou em cima de um banco, não é pouco. Gravei com os grandes maestros deste país, cantei em todos os países do mundo onde há um português. Cantei nas grandes cidades e nas aldeias e não me caíram os parentes na lama por cantar em palcos pequeninos. Hoje canto em palcos muito grandes. E sempre em português. As minhas fãs, de todas as idades, são fundamentais para a longevidade da minha carreira. Sem elas nada disto existia.

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