Manuel Serrão

Manuel Serrão
Manuel Serrão

Começou a organizar eventos há trinta anos. Por ele passaram alguns dos mais importantes acontecimentos de moda nacionais, todos os anos leva ao estrangeiro cerca de duzentas empresas ligadas ao setor têxtil, percorre palcos mundialmente reconhecidos. Uma conversa com Manuel Serrão sobre a infância, a família, o Porto, a paixão pela comida – e pelo futebol – e o que há a fazer para promover a moda portuguesa lá fora.

 

Gosta de pontualidade britânica, de viajar, de dormir pouco, de conversas longas, de bossa-nova, de mar batido, de Sara Sampaio, do Porto, de Guimarães e de Viseu, de jornais em papel, de jogar e ganhar limpo, de trabalhar em equipa sabendo-se que no final manda ele. «O mais antigo feirante da moda portuguesa», como se intitula, diz que não mistura conhaque e trabalho e considera-se «um bom rapaz que gosta de boas raparigas». Crê na cidade, no seu clube e na boa mesa, não necessariamente por esta ordem. Os amigos dizem-lhe que devia emagrecer enquanto lhe servem o prato preferido. Manuel Serrão: do comentário desportivo ao jornalismo, ao Direito e à moda, passando, por A Noite da Má-Língua. A longa conversa começou já depois da meia noite, depois do programa televisivo em que defende as cores do FC Porto.

 

Manuel Serrão
Nunca se cansa de falar sobre futebol?
Nunca. Nem sobre futebol nem de discutir com adeptos do Benfica e do Sporting.

Estreou-se em 1991 n’Os Donos da Bola, da SIC. O comentário desportivo trouxe-lhe mais lucro ou mais prejuízo?
Nunca tive um processo por causa do que disse em televisão. Curiosamente já tive processos pelas crónicas na imprensa e na rádio e uma condenação ridícula por causa de um bitaite numa coluna social de uma revista cor-de-rosa.

Passa as segundas-feiras em Lisboa, é obrigado a andar de táxi ou na rua. Ouve muitas «bocas»?
Oiço mas não são antipáticas. Tenho de agradecer ao Pedro Guerra [comentador do programa Prolongamento, na TVI 24] esta ideia de que sou calmo e moderado. Nunca ouvi de tantos benfiquistas críticas tão duras a um representante do Benfica no programa. O meu amigo Pinto da Costa terá dito que eu devia ir para um programa cómico. Os benfiquistas que me interpelam na rua dizem-me que devia mandar o Pedro Guerra para sítios bem piores.

É bem recebido em Lisboa. Mas não vai ao Estádio da Luz. Porquê?
A minha presença é tomada como uma provocação. Foi assim da última vez. Vivi na Luz momentos muito complicados que não vale a pena repetir.

Não aconteceria exatamente o mesmo a comentadores benfiquistas que se apresentassem no Dragão?
Acho que sim. Mas também acho que não vão. Com a exceção de alguns diretores de jornais desportivos da capital, pelo que li nos relatos da última assembleia geral do Futebol Clube do Porto [FC Porto].

Leva benfiquistas ao Dragão?
No meu núcleo mais restrito de amigos, dois são benfiquistas, doença de infância, o meu sócio e compadre e o meu cunhado. E também já levei um amigo sportinguista. Sempre que foram comigo, o Porto ganhou. Deixaram de querer ir, claro.

Alvalade é diferente da Luz?
Nunca tive nenhum problema em Alvalade mas também evito frequentar. Numa final da Taça de Portugal entre o Porto e o Sporting tive problemas no Jamor. Fui insultado, não reagi. Recordo para sempre a atitude de Vítor Damas. Defendeu-me, contra todos. Fiquei muito sensibilizado.

É incapaz de torcer pelo Benfica e pelo Sporting quando jogam com equipas estrangeiras.
É mau para o FC Porto que o Benfica tenha sucesso europeu, ganhe dinheiro e prestígio, valorize e moralize os seus jogadores. Por isso, desejo ardentemente que perca. Um bom benfiquista deseja o mesmo para o meu clube.

Houve uma altura em que o que era bom para Scolari era mau para o FCP. Desejou a derrota da seleção?
Tive uma polémica com o Scolari que atingiu níveis rocambolescos. O senhor chegou ao ponto de me telefonar – e de mandar o assessor telefonar-me – a meio da noite, com insultos, numa falta total de nível. As pessoas que glorificam o Scolari devem lembrar-se que ele não ganhou nada. Elegeu o Vítor Baía como ódio de estimação apenas para mostrar quem mandava.

Sabia que afrontava um selecionador de quem os portugueses gostavam. Foi um dos momentos mais difíceis dos 17 anos de comentário?
O período mais desconfortável é este: três anos sem ganhar nada e a passar vergonhas como a derrota com o último classificado, no Dragão.

O processo Apito Dourado não alterou a forma como olhava para o futebol?
O FC Porto ganhou esse campeonato com vinte pontos de avanço. É de um ridículo atroz achar que é por obra de arbitragens. Isto aplica-se ao FC Porto e aos outros. Se o Benfica ganhar este campeonato com sete ou nove pontos de avanço, ninguém me ouvirá uma palavra sobre «colinhos». No ano passado, sim.

As maiores zangas nos bastidores dos programas.
N’Os Donos da Bola, sobretudo com o Alfredo Farinha, que se dizia do Belenenses mas era um benfiquista ferrenho. Não me incomoda o confronto mas incomoda-me o jogo sujo. E ainda me incomoda mais que chamem para a discussão do futebol a minha família. Por isso, quando ele me disse que eu envergonhava o meu pai, respondi-lhe à letra.

Que dizem os pais, família austera e tradicional, da sua participação em programas de futebol, em que corre o risco do enxovalho?
O meu pai, um sportinguista que não liga nada ao futebol, nunca teceu grandes comentários e eu sempre apreciei essa atitude. A minha mãe, sim, é portista e nos últimos anos ficou fanática. Vê o programa todas as segundas-feiras e, desde que entrou o Pedro Guerra, liga-me antes a pedir calma. Nem sempre com sucesso.

Há uma fotografia sua que circula nas redes sociais, com 6 anos, já com óculos, equipado a FC Porto, com joelheiras e caneleiras. Era piegas?
A certa altura o meu pai foi como médico miliciano para Angola e a minha mãe Acompanhou-o. Nessa altura vivia com dois tios em Lisboa. Deduzo que tenham comprado o equipamento completo.

Era um menino frágil?
Tinha asma e era muito magrinho. Passava as noites com falta de ar e cansava-me muito. Mal podia correr. Depois de umas temporadas nas termas de Vizela, a asma passou.

Recorda-se de ver partir os pais para Angola?

Não. Dos cinco filhos que ficaram cá, fui o único que os fui visitar. Ia por três meses mas como apanhei três doenças ao fim de 18 dias, e antes que morresse, o meu pai recambiou-me.

E do reencontro, lembra-se?

De pouco. Recordo melhor a fase seguinte. A entrada no liceu e de como fiquei furioso quando no quarto ano o meu pai me manteve no Liceu D. Manuel II [Rodrigues de Freitas] quando eu preferia o António Nobre, onde estavam os meus melhores amigos. Além de que foi o primeiro liceu misto. Mais tarde, acabaria por convencer o meu pai.

Educação católica e conservadora?

Sim, até crisma fiz. Sobretudo era uma educação muito organizada, como convém, numa casa com seis crianças. De todas, eu era o mais desinibido. Contudo, lembro-me do silêncio sepulcral que havia em casa na fase em que meu pai fez provas para professor extraordinário e catedrático.

Desinibido em casa. E fora?
Sempre fui chefe de turma. Fui presidente da Associação de Estudantes do Liceu e sempre dei a cara pelas minhas causas numa altura em que não era fácil, como no 25 de Abril.

Quais eram as suas causas?
Fui presidente da associação de estudantes numa lista de coligação da Juventude Centrista (JC) com a JSD, quando toda a gente era de esquerda.

Em casa falava-se de política?
Nunca se falou de política até ao 25 de Abril. Mas eu tinha 14 anos em 1974.

Mas o seu pai foi saneado da Faculdade de Medicina em 1976.

É verdade. E como ficou sem meios de subsistência, instalou o laboratório de anatomia patológica em casa. Na sala de brincar dos seis filhos. Mas nunca lhe ouvi uma queixa.

Quando percebe que é de direita?

Uns amigos falaram-me na JC. A conversa interessou‑me de tal maneira que comecei a ler tudo sobre política. Percebi desde logo de que lado estava. Aos 16 anos fazia sessões de esclarecimento em Gondomar, Rio Tinto, Lousada. Hoje, rio-me desses tempos. Sou de direita mas tenho um olhar diferente. Mudei eu e mudou a sociedade.

Eram tempos difíceis a esquerda e a direita.
Fui preso no liceu pelo COPCON em 1975, juntamente com outros. Uns foram para Custóias. Eu, como só tinha 15 anos, fui libertado. No dia seguinte, entrei como um herói no liceu. Nessa altura quem se metia com a esquerda levava mesmo.

Qual foi a acusação?
Acusaram-me de ter dado um pontapé numa grávida e colar cartazes fascistas. Queriam
Implicar-me na famosa rede bombista, mas não tinha idade mínima para isso.

E então?

O meu crime era ganhar eleições contra a corrente.

Preparava-se para uma carreira política?

Gostava muito de política, era o meu dia-a-dia. De tal maneira que cheguei a ser número um do Norte da JC. Foi ainda a pensar na política que desisti das engenharias e fui para Direito.

Fez o curso mas deixou a política.
Concorri à Universidade Católica, em Lisboa. Entrei, obrigando o meu pai a um enorme esforço financeiro durante seis anos. O meu pai teve então uma conversa comigo, lembrando-me de que estava em Lisboa para estudar e cumprir. Custou-me muito, mas só voltei ao Porto no Natal. Ele dava-me as suas razões e quando as percebia, acatava. Neste caso eu sabia: para ter aproveitamento não podia estar na política. E cumpri.

Quantos casos patrocinou?
Um único. Divorciei um jornalista e, engraçado, a filha nascida desse divórcio trabalha hoje comigo. É minha colaboradora.

Gostou de viver em Lisboa?
Gostei muito do ambiente do Colégio Pio XII, onde vivi esses anos. Quase duzentos rapazes de todas as partes do país menos de Lisboa. Lá conheci o Fernando Seara que reencontrei com prazer na TVI e fiquei com amigos que ainda hoje mantenho. Foi o meu primeiro networking. Mas nunca me imaginei a viver em Lisboa. Nunca.

Como é que a família viu a inaptidão para a advocacia?

A meio do curso de Direito percebi que a minha vocação era gestão de empresas. Não tive coragem de mudar para não pesar mais ao meu pai.

O pai é uma figura central. Até que ponto é determinante na sua vida?

Ainda antes do 25 de Abril ensinou-me que a liberdade só existe quando há paz, pão, educação e quando aquilo que temos é o que merecemos. Mais tarde, quando comecei a querer peixe, deu-me uma cana que eu ainda hoje uso.

Licenciado em Direito com vocação para gestão de empresas, acabaria por escolher jornalismo.
E ainda bem. Fui muito feliz. De manhã, tinha o estágio de advocacia e à tarde ia para a redação [Comércio do Porto] de onde saía de madrugada, já com o jornal na mão. Fiz de tudo: acidentes de viação, agenda, tribunais, política. Quando saí, era chefe da secção desportiva.

Nesse cargo, teve problemas com João Rocha [presidente do SCP entre 1973 e 1986]. Algum dia assinou um texto desagradável para o FC Porto ou para Pinto da Costa?
Claro, sempre que o FC Porto perdia. Embora nessa época isso acontecesse muito menos do que nos dias de hoje.

Num exercício de autocrítica, diria que foi um bom jornalista?
Só falhei um serviço: um acidente de comboio em Alcafache, perto de Mangualde. Não consigo ver sangue e ali havia muito sangue. E lamento muito nunca ter feito uma Volta a Portugal em bicicleta.

Foram bons tempos?
No jornal, era o benjamim que acompanhava os mais velhos. Levavam-me ao mítico Pajú, um bar da cidade, lugar de encontro de jornalistas. Fizeram-se lá grandes tertúlias, até altas horas. E desses tempos ficaram grandes amigos, dez ou doze, entre eles o Jorge Fiel, o Júlio Magalhães, o Rogério Gomes, o Manuel Queiroz. E continuámos a jantar juntos com frequência. Este grupo já foi expulso de vários restaurantes, tal é o entusiasmo da discussão.

Recorda a última?
Foi sobre a prisão de Sócrates sem acusação, mais de um ano depois. Foi um longo jantar.

À paixão pelo FC Porto segue-se a mesa e o prazer da comida.
Tenho tanto respeito pela comida e pela refeição que quando não tenho tempo para o ritual prefiro não comer. Muitas vezes, guardo-me para o jantar. Mas mesmo assim só me sento depois de ter o dia resolvido na minha cabeça.

O que faz parte desse ritual?
Não vou para lado nenhum sem me inteirar dos restaurantes que existem, e sou capaz de fazer muitos quilómetros para ir comer a um determinado sítio. Não entro em nenhum restaurante sem antes fazer a reserva e certificar-me de que têm o que pretendo comer. Também em matéria de gastronomia odeio surpresas. A carne tem de estar praticamente crua e o meu prato favorito é cozido à portuguesa.

Cozinha?
Pouco, mas gosto muito. Há até restaurantes que têm pratos inventados por mim. O robalo escalado com arroz de amêijoas e um arroz de legumes à Manuel Serrão. Não é tão malandro quanto é costume. É mais cremoso. Condiz.

Nunca pensou abrir um restaurante?

Pensei e vou abrir, só não sei quando. Não para ser apenas um negócio mas sobretudo um prazer.

Deixou o jornalismo em 1986. Porquê?

Recebi um convite da então AI Portuense (hoje AEP) para coordenar o lançamento da Exponor onde iria ganhar o triplo. O dinheiro não é tudo mas nesta fase já andava desmotivado com as mudanças no jornal.

Chegava finalmente ao associativismo empresarial e a vocação descoberta tardiamente: gestão de empresas. Nunca mais sairia.
Costumo dizer que sou o feirante mais antigo em Portugal. Desde 1987, a minha atividade principal é organizar feiras em Portugal, promover a moda e o têxtil nacionais e organizar a presença de empresas portuguesas em feiras no estrangeiro. Esse setor representa 85 por cento do meu trabalho. Para além disso, organizo também eventos na área da gastronomia e vinhos.

Como patrão, que regras impõe?
Uma muito simples: trabalho é trabalho e conhaque é conhaque. E na altura de trabalhar
sou muito rigoroso, pontual, e tenho alguma dificuldade em perdoar falhas ou deslealdades.

Por que razão na sua empresa só admite mulheres?
Enquanto trabalhei por conta de outrem percebi que os maiores problemas eram os conflitos entre mais velhos e mais novos e entre homens e mulheres. Jurei que quando tivesse uma empresa só trabalharia com um dos géneros.

Qual é o estado da moda atual?
O setor têxtil está em grande, com as exportações a aumentar. Os números deste ano estão a ser muito animadores. Durante muito tempo, Portugal era conhecido por saber fazer barato, ponto. Era a subcontratação em estado puro. Entretanto, com o aumento das competências, passou a ser reconhecido como um país que sabe fazer moda.

Que lhe falta para ter maior destaque?
A marca. Temos marcas que fazem uma coleção que não deve nada às marcas mais prestigiadas mas falta-nos um Cristiano Ronaldo da moda como diz o meu amigo Paulo Nunes de Almeida. Estamos, contudo, no bom caminho. Hoje, exportamos mais ou menos o mesmo valor com metade das peças de há dez ou quinze anos.

Foi durante seis anos a cara do Portugal Fashion. Foi difícil converter criadores e indústria a coabitação?
Nada fácil, mas a ação de vários dirigentes das associações foi decisiva para convencer os decisores de fundos comunitários de que a economia do têxtil e o aumento das exportações não seria possível se fosse apenas apoiado numa feira de vaidades, feita a pensar num mundo que começava e acabava no Bairro Alto lisboeta. O Portugal Fashion é o maior e mais abrangente evento de promoção nacional e internacional da moda portuguesa. Promove um casamento saudável entre o espírito criativo e a capacidade produtora.

Teve uma agência de manequins. O que é que ainda falta aos manequins portugueses?
Aos vários que têm qualidade falta ousadia e espírito empreendedor que os leve a uma carreira mundial. A Sara Sampaio é fantástica, mas não é a primeira portuguesa com caraterísticas físicas de top mundial. Nem será a última.

Moda: o que está in e o que está out?
Fumar está fora de moda. Começar a noite às duas da manhã, como se fazia dantes, também está fora de moda. Agora a noite começa com o jantar ou logo depois do jantar. Viajar está na moda. Com as companhias low‑cost é tão fácil viajar cá dentro como ir passar um fim de semana a Paris, Londres, Madrid, Milão ou Roma.

Na moda esta também outra paixão: o Porto. Se fosse obrigado a viver noutra cidade, qual escolheria?
Viana do Castelo, no litoral, ou Guimarães, sem mar à vista. No estrangeiro, Barcelona.

A Baixa do Porto mudou muito. Que mais mudou?

Mudaram as fachadas mas também os conteúdos. E a mudança mais significativa foi que a noite passou a ser festejada a partir do momento em que cai e não quando já está quase a nascer o dia.

Quem são os grandes responsáveis?

Há quem fale nos três erres: Rui Rio, Rui Moreira e a Ryanair. Todos eles ajudaram, é verdade, mas o grande motor foram os portuenses. Foram eles que abriram restaurantes, bares, lojas. E hoje recebem a movida com carinho, competência e imaginação.

Foi um defensor da regionalização. Ainda faz sentido?
Com esse nome ou outro qualquer que lhe queiram dar, continua a ser indispensável e urgente aproximar os decisores e as decisões de quem é alvo deles e delas.

Se fosse obrigado a escolher: presidência do FC Porto ou da Câmara do Porto?
Bem, se fosse obrigado com uma pistola apontada à cabeça, escolheria a presidência do FC Porto. Mas foi desejo que nunca tive. Mas quem entender que é capaz de fazer melhor do que Pinto da Costa deve candidatar-se. Promoveria uma discussão necessária e cada vez mais urgente.

Estaria disponível para apoiar um candidato ou enquanto Pinto da Costa se candidatar terá o seu voto?
Estou disponível para ajudar a preparar a sucessão, quando ela for julgada inevitável. Não mais do que isso.

Manuel Serrão

A NOITE DA MÁ‑LÍNGUA
«HOJE, NENHUM CANAL AGUENTARIA UM PROGRAMA DESTES.»
A Noite da Má-Língua, emitido pela SIC entre 1994 e 1997, conduzido por Júlia Pinheiro, abriu um capítulo na sua vida?
Seguramente. Foi um momento especial, um prazer muito grande, até pelas pessoas que conheci. Eu idolatrava o Miguel [Esteves Cardoso]. Lembro-me de grandes momentos de humor e discussão. «Noite dos maus fígados», chamou-lhe Herman José, numa caricatura do programa.

Nunca se arrependeu de nada do que disse durante três anos?
Nunca. Quando tenho dúvidas calo-me.E, portanto, se digo é porque não tenho dúvidas. Por isso, não posso arrepender-me. Uma ou outra vez correu menos bem mas nunca me arrependi. Magoei algumas pessoas? Seguramente. Mas foi deliberado.

Arranjou inimigos?

O Emídio Rangel arranjou muitos. Eu não. Recordo-me apenas de um episódio com a Igreja Universal do Reino de Deus. Houve uma altura em que andaram de megafone no Porto a dizer o pior de mim. Quem se afligiu foi a minha mãe.

Passou a ser uma cara conhecida de todos.

E não gostei. Eu tinha uma vida pacata e a perda da privacidade incomodou-me mesmo. Onde entrava ouvia bocas e piadas e essa exposição permanente constrangia-me. Ainda hoje me limita. E quem está comigo também sofre com essas limitações. A perda de privacidade sempre me incomodou. Sobre a vida profissional, tudo, da vida pessoal, nada. Mas o que eu me divertia no programa compensava. Sobretudo com o Miguel. Eu ria-me com tudo o que ele dizia.

Como depois com o [Rui) Zink. Quando a má-língua o atinge não acha piada nenhuma.
Por acaso acho que não. Podem não perder pela resposta, mas até gosto muito de quem me dá luta. Especialmente se for uma mulher.

Mantém ligação com o Miguel?
Ainda e é bastante forte. Não há mês que não jantemos.

E fazem muita má-língua?

Muita, sobre tudo e sobre todos, amigos e inimigos. Como temos poucos em comum, a lista e infindável.

Gostaria de reeditar o programa?

Na passagem dos vinte anos da primeira edição a SIC fez uma espécie de Noite da Má-Língua Vintage. Foi muito engraçada, muito vista, ao que parece, mas a verdade é que hoje nenhum canal, nem a SIC Radical, teria aqueles legumes vermelhos e redondos que se usam nas saladas para aguentar um programa destes. Demorou três anos, mas a classe política e os grandes grupos económicos e financeiros conseguiram acabar com qualquer má-língua que os importunasse. Seguiram-se cópias envergonhadas, que passaram em horários envergonhados e que não envergonhariam ninguém de jeito.