Manual para ir a uma livraria e ficar feliz

Notícias Magazine

Uma pessoa vai a uma livraria e perde-se, vai somando livros que gostava de levar, depois recoloca-os nas estantes porque a soma das parcelas se torna inviável, anda para a frente e para trás, pensa, repensa, escolhe. Sim, há sempre o momento em que se decide e se avança intrepidamente para a caixa. A escolha está feita, lá vai o livro, no singular, em direção a casa.

O grande prazer disto, o sorriso de orelha a orelha, aparece quando se descobre que a escolha foi boa. Não, não foi boa, foi ótima, como se alguém tivesse sussurrado ao ouvido que aquele era o livro certo. Lucia Berlin, Manual para Mulheres de Limpeza, 520 páginas para levar debaixo do braço dentro e fora de casa e, se não fosse ridículo e perigoso, para ler até nos sinais vermelhos.

A verdade é que alguém me tinha sussurrado, não ao ouvido mas numa crítica escrita pela sempre atentíssima e acertada Isabel Lucas, amiga de muitos anos e condutora de muitas leituras minhas. Uma vez fomos as duas fazer uma entrevista e ficámos em choque com o que o entrevistado nos disse, um especialista americano daqueles que não se sabe bem de onde vêm e que defendia que o aborto não devia ser legalizado porque há muitas pessoas que querem adotar e portanto podiam ser abastecidas por quem não quisesse esses filhos, no fundo, a gravidez era a prestação de um serviço. Ficámos a olhar uma para a outra no fim e a perguntar: ele disse mesmo aquilo? Trabalhávamos juntas numa revista, foi nessa redação que nos conhecemos para sempre.

Mas ia dizendo que o Manual para Mulheres de Limpeza é de ler agarrando as páginas, voltando atrás porque «será que ela escreveu mesmo isto?» – mas sem a repulsa que o tal americano nos deixou naquele dia. Acontece que Lucia Berlin me tinha sido aconselhada pela Isabel quando o livro ainda não tinha sido publicado em Portugal e portanto quando olhei para ele na livraria lá estava o aviso, compra-me, compra-me. Também ajudou o selo que diz que foi considerado um dos dez melhores livros do ano pela New York Times Book Review.

E o que é este Manual? Nem mais nem menos do que 43 short stories, pequenos contos de geometria variável, enriquecidos por textos de Lydia Davis e de Stephen Emerson, o escritor amigo de Lucia que organizou a edição, e mais umas páginas sobre a vida da escritora.

As histórias são também a vida de Lucia, contadas com crueza mas sem azedume, com uma atenção extraordinária aos pormenores que nos faz sentir que estamos ali ao lado dela, no meio do cenário que pode ser a lavandaria onde trata da roupa porque gosta de ficar a olhar para as cores a andar à volta na máquina, sentada ao lado do índio apache que olha fixamente as mãos dela. Ou a paragem de autocarro onde ela e outras mulheres de limpeza ficam uma hora à espera porque o autocarro chegou cedo de mais e ficaram em terra: o que levam para casa, oferecido (para deixar no intervalo dos bancos do autocarro se for coisa sem préstimo) ou surripiado, e os risos e truques à volta de tudo isso. E a doença longa e fatal da irmã. E a heroína que afinal destruía o homem de quem tinha sido amante e depois mulher e com quem teve filhos. E o álcool herdado do avô e da mãe. E o defeito da coluna que fez dela uma criatura bizarra na escola e que a obrigou a andar de botija de oxigénio nos últimos anos.

São tantos os episódios, tão ricas as personagens, tão rápido o ritmo que quase se perde a respiração. Na fotografia da capa, a morena Lucia de olhos claros está linda agarrada a um cigarro. Momento inspirado aquele em que entrei na livraria.

[Publicado originalmente na edição de 24 de julho de 2016]