Lojas indianas que salvam cidades

Notícias Magazine

É meia noite quando chego de viagem. Atravesso o Chiado, quase ninguém. Tudo escuro, tudo silêncio, parece que Lisboa inteira fugiu em debandada. Por estes dias, dá medo atravessar o centro da capital depois do pôr do sol. A partir do momento em que as lojas do Chiado e da Baixa fecham portas, o coração lisboeta torna-se um deserto – e a sensação que tenho muitas vezes é a de um lugar perigoso. Em reportagens por países em conflito, aprendi a desconfiar sempre dos lugares silenciosos e vazios. São como aquele momento em enchemos os pulmões de ar antes de mergulharmos, estão à espera de que algo aconteça.

Se mudarmos o nome dos bairros, se mudarmos o nome das cidades, podemos contar a mesma história no Porto, em Coimbra ou em Faro. Centros urbanos que metem medo, vazios e silenciosos, à espera que algo aconteça. Mas depois viro a esquina, passo o Martim Moniz, dirijo-me ao Intendente. Agora as ruas estão cheias, há lojas com luzes, pessoas sentadas nas esplanadas, um sobe e desce de conversas acaloradas. Aqui, num sítio que toda a gente define como perigoso, sinto-me bem mais seguro. Passa da meia noite e há uma frutaria chinesa aberta, dois ou três restaurantes paquistaneses, um café nepalês, três mercearias do Bangladesh.

O comércio está há dois ou três anos a sofrer uma profunda alteração nas maiores cidades portuguesas. As lojas indianas – que não são só lojas e não são só de indianos – chegaram, viram e venceram. E proliferam hoje nas cidades como cogumelos. Na rua onde vivo, por exemplo, há duas mercearias que convivem lado a lado. Uma é portuguesa, outra de nepaleses. Já por várias vezes ouvi os primeiros queixarem-se dos segundos. Que «invadiram o bairro» e «estão a dar cabo disto». Mas eu digo o contrário: as lojas indianas, paquistanesas e do Bangladesh são o melhor que aconteceu à cidade. E não é só por darem vida às zonas vivas em períodos mortos. É porque respondem às novas necessidades.

A mercearia portuguesa do meu bairro, por exemplo, fecha às sete da tarde. Para eles o negócio vai mal. A nepalesa fecha às duas da manhã e, se alguém perguntar ao dono como correm as contas, o homem desfaz-se em sorrisos. Eu uso muito mais a segunda, muita gente usa mais a segunda. A maioria dos habitantes do meu bairro, atrevo-me a dizer, não chega a casa antes das sete da tarde e há dias em que a salvação do mundo é uma garrafa de azeite às dez e meia da noite. Agora podemos exportar esta ideia para fora do centro, levá-la ao subúrbio. As mercearias portuguesas que fecham às sete vão mal, as que estão abertas até às dez desfazem-se em sorrisos. Porque quem vive em Mem Martins (ou Rio Tinto) e trabalha em Lisboa (ou no Porto) dificilmente chega a tempo de apanhar a loja aberta. Não é que o negócio vá mal. É que não se soube adaptar à nova vida das cidades.

Em cinco anos, as populações de imigrantes nepaleses, paquistaneses e do Bangladesh quintuplicou em Portugal. A maioria destas pessoas trabalha nestas lojas, nestes restaurantes, nestas mercearias. E eles não tiraram nada a ninguém, acrescentaram sim valor aos centros urbanos. Não fazem concorrência, somam serviço que antes não existia. Alimentam as cidades todos os domingos, porque os estabelecimentos portugueses estão fechados. Apresentam uma solução para a cidade que deixou de trabalhar das nove às cinco, que é cada vez maior. E decretam luta aos desertos em que estamos a tornar os nossos centros. Enchem-nos de vida e luz. E disso ninguém tem medo.