Lembram-se das viagens de carro nos anos 80? Tinham mais piada, não tinham?

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Pensos rápidos. Compressas. Algodão. Água oxigenada. Tesoura. Álcool. Tintura de iodo. Pinça. Termómetro. Pastilhas para a garganta. Comprimidos – para as dores de cabeça do meu pai, para as alergias, para a diarreia, para a febre. A minha mãe foi enfermeira durante 32 anos e aquele cesto de verga envernizado, com uma pequena tampa e uma pega, que ela organizava religiosamente todos os verões quando íamos para a terra era da responsabilidade dela. Estava ali tudo o que nos pudesse fazer falta em caso de maleita na Beira Baixa.

Na verdade, não era só o cesto de medicamentos. Tudo o que é preciso para uma família se deslocar trezentos quilómetros para noroeste durante duas semanas era tratado por ela. As roupas dela e do meu pai, as nossas, o calçado, as coisas de higiene, a comida para a viagem, a comida que era mais cara na aldeia e por isso era melhor levar de Lisboa, a geleira, alguma roupa de cama, agasalhos, jogos, a caixa de costura dela, os livros para a quermesse organizada pela comissão de festas… Tudo e mais alguma coisa, numa lista infindável de malas, objetos, sacos de plástico e outros volumes que se ia acumulando no hall de entrada da casa na véspera da grande partida, para meu desespero e das minhas irmãs. De nada servia dizer que não valia a pena levar uma caixa de ferramentas porque o meu avô era carpinteiro e devia ter lá o que fosse preciso. E um frasco de azeitonas não era grande ajuda numa terra de onde regressaríamos com mais dois ou três. Além dos garrafões de azeite, dos sacos de batatas e das couves que alguém iria oferecer.

O meu pai tinha um Ford Escort GT azul-celeste, comprado em 1975 por 95 contos – mais tarde pintou-o de castanho-claro e nós nunca lhe entendemos o gosto por aquelas cores. Durante anos, aqueles 1300 centímetros cúbicos de cilindrada puxaram dois adultos, duas adolescentes, uma criança e dezenas de quilos de mercadoria encaixada milimetricamente em todo o espaço que ele visse livre. Era a minha mãe que arranjava as coisas para levarmos na viagem, mas era ao meu pai que cabia a tarefa de as arrumar onde fosse possível. Onde houvesse um buraco livre, ele enfiava um sapato. Há mais espaço atrás daquela mala? Põe duas laranjas. E com jeitinho acolá ainda se pode levar uma cerveja. «Mas por que é que nós vamos levar garrafas de cerveja?» «Não faças perguntas e vai lá acima buscar mais uns sacos.» «Lá acima» era um terceiro andar sem elevador, que subíamos e descíamos dezenas de vezes antes de me darem um Vomidrine para o enjoo e nos fazermos à estrada.

Não trocava por nada as viagens para a terra que fiz com os meus pais e as minhas irmãs. Antes da A23 e de todos os IC e IP com que o país foi alcatifado com dinheiro de Bruxelas, Proença-a-Velha, no concelho de Idanha-a-Nova, era um destino exótico a cinco ou seis horas de distância, onde chegávamos depois de várias paragens para uma bucha, esticar as pernas, beber água ou aliviar a bexiga. Nas viagens boas, eu conseguia esgueirar-me para a chapeleira – se não estivesse cheia de camisas e casacos em cabides – e ainda dormia lá uma soneca. Nas viagens más encostava a cabeça no ombro da minha irmã Dulce, que tentava aconchegar-me apesar de levar alguma coisa ao colo e aos pés.

Ganhei aversão a carros muito cheios e bagageiras a abarrotar. E as cadeirinhas das minhas duas filhas, a que a lei me obriga, ocupam espaço precioso onde podia levar uns bons litros de leite e meia dúzia de camisolas e calças. Mas, de cada vez que fazemos uma viagem grande, invejo a capacidade do meu pai em levar, num carro mais pequeno do que o meu e com mais pessoas a bordo, o dobro da roupa e o triplo da comida. É que possivelmente isso resulta no quádruplo das recordações. Não sei. Daqui a uns anos pergunto às minhas filhas para ficar com a certeza.

[Publicado originalmente na edição de 19 de junho de 2016]