Latas de cerveja e um noturno de Chopin

Notícias Magazine

O rio da minha aldeia chama-se Monongahela. O problema com ele não é só o nome, impronunciável. Um dia, era eu garoto, um B-25 da Força Aérea americana caiu no Monongahela. Era inverno, os seis homens da tripulação sobreviveram à queda, mas dois não aguentaram o frio da água. Mas olhem para o mistério: o avião era uma bisarma, que as águas mal podiam cobrir e, no entanto, o bombardeiro nunca mais apareceu. Nem uma pá dos dois motores, nem um assento, nada – até hoje. A minha aldeia tem buracos negros, vive disso, das minas de carvão.
A minha aldeia chama-se Clairton. No oeste da Pensilvânia, onde, no próximo novembro, os votos conservadores dos operários farão bascular o estado, ou não, para a direita, se compensarem os votos democratas dos funcionários de Filadélfia. Lembro-me da tabuleta de entrada – na única rua da aldeia, atravessando-a – que dizia: “Bem-vindos a Clairton, Cidade da Oração.” Estava escrito “city”, que dá para cidade ou aldeia, o que quiserem. Na verdade, a tabuleta nunca lá esteve, só foi posta por causa de um filme. O importante é que foi lá que conheci os meus.

Robert de Niro, Christopher Walken, John Cazale, John Savage, operários da siderurgia, e, claro, a namorada do Christopher, Meryl Streep, acho mesmo que foi ele que ma apresentou. Eles eram todos, ou quase todos, de origem russa, iam à igreja ortodoxa e eu, português (português bizarro, mas português), entendia-me com eles por sermos da mesma aldeia. Definição da minha aldeia: jovens, fim dos anos 60. Por favor, não me emendem, sei que The Deer Hunter, O Caçador, foi realizado dez anos depois (1978), mas quem vos está a falar de um filme? Eu estou dentro de Clairton, fim dos anos 60, como disse.

Eles bebiam como filhos de russos, dançavam como filhos de russos e falavam uma linguagem universal, pois iam para a guerra. Naquele tempo a palavra pronunciava-se assim: “Vietname.” Num dia de bebedeira, um forasteiro vestido de soldado e que já conhecia a tal “vietname”, sabendo que alguns dos meus amigos iam partir para lá, disse: “Fuck it.” Acho que foi a primeira vez que ouvi a expressão.

Depois, fui com os meus amigos caçar veados. Os carros eram espadas, longos, muita chaparia, com a pintura gangrenada pelo sal deitado ao gelo das estradas. O grupo era de jovens sem compreender o que começavam e começavam numa encruzilhada que não o era. Iríamos para onde já estava decidido irmos. Ou talvez não. Quase todos queriam caçar em algazarra, menos Robert, que era metódico. Matou o veado limpamente. Depois fomos beber para o bar da nossa aldeia. Abriam-se as latas de cerveja e era um chuveiro de espuma. Bebíamos mais e gritávamos. O dono do bar calou-nos sentando-se ao piano. É o que tem de bom receber emigrantes do Leste europeu, são bêbados mas têm música dentro deles. O homem tocou um noturno de Chopin sobre a nossa bebedeira.

Não sei se vocês sentiram isso quando viram o filme. Eu, de dentro, senti. Estávamos no início da nossa amizade e percebi o que ia acontecer- nos nas três horas que ela durou. A vida é uma roleta russa, e ela não tem nada a ver com o exotismo de Saigão, que, aliás, é uma rua de Banguecoque. Tão falso como a ilusão de que somos nós a rodar o tambor e premir o gatilho. Não somos nem isso, somos muito mais. Talvez um grupo de amigos bêbados e um piano, como me disse, um dia, um amigo da minha aldeia, que nunca conheci. Adeus, Michael Cimino.